sábado, 30 de março de 2013

Mito e arquétipo

No ensaio «La pampa y el suburbio son dioses», publicado no livro El
Tamaño de Mi Esperanza, de 1926, Borges fala do caráter arquetípico do
pampa e dos arrabaldes e os elege como as únicas contribuições genuinamente
argentinas à literatura mundial. Ou seja, se havia algo peculiar à
cultura argentina, deveria ser procurado na vastidão do pampa ou na desordem
dos subúrbios:
De la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la
pampa (Borges 2000:30).
Nesse texto, Borges define o caráter arquetípico como relativo a «coisas
não sujeitas às contingências do tempo». Anos depois, no conto de mesmo
nome, classificaria el Sur como «un mundo más antiguo y más firme»
(Borges 1995:271), ou seja: um território fora do tempo como o conhecemos,
talvez atemporal e ancestral. Borges também escreve que o pampa e
os subúrbios são como «totens, coisas que são substanciais a uma raça ou
indivíduo». Observe-se aí o caráter mítico que Borges começa a imprimir a
esses dois cenários argentinos na medida em que os qualifica como arquétipos.
Para Carl Gustav Jung, de quem Borges era leitor1, arquétipos são
parte do conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, eviden

ciado nos mitos e lendas de um povo. «O conceito de arquétipo, que constitui
um correlato indispensável da idéia de inconsciente coletivo, indica a existência
de determinadas formas da psique, que estão presentes em todo tempo e
em todo lugar» (Jung 2002:53). Borges também pode ter se inspirado nos
conceitos gregos para falar de arquétipos. A doutrina fundamental de Platão
prega a existência de formas arquetípicas ou idéias. O discurso de Borges
coincide com o conceito platônico, para quem os arquétipos manifestam-se no
tempo e são atemporais, constituindo a essência intrínseca das coisas.
No mesmo ensaio, Borges elege Martín Fierro, de José Hernández,
as dois Santos Vega* e Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, como
pontos cardeais literários da Argentina. E enumera as crenças fundamentais
da cultura argentina:
Somos unos dejados de la mano de Dios, nuestro corazón no confirma ninguna
fe, pero en cuatro cosas sí creemos: en que la pampa es un sagrario, en que
el primer paisano es muy hombre, en la reciedumbre de los malevos, en la
dulzura generosa del arrabal (Borges 2000:30).
Esses elementos começam, pouco a pouco, a ser elaborados pelo
escritor para assumir um papel definitivo em seu universo ficcional e poético.
Borges inicia a concepção do que chamaremos de «Sur mítico», um
espaço imaginário que abarca pampa e subúrbio, gaúchos e personagens
suburbanos e, mais do que tudo, traduz sentimentos partilhados pelos habitantes
da região do Prata.

Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico

    (...)

    Borges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura
    construida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la
    inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo
    1995:51).
    Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos
    de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação
    entre civilização (as coisas da cidade) e o «Sur». Essa concepção começou
    a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de
    Borges até o fim.
    Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra «orillas» (margen, filo,
    límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década
    del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos (Sarlo 1995:
    52).
    Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan
    Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território
    regido por outras leis:
    Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía
    decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en
    un mundo más antiguo y más firme (Borges 1995:271).
    Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço
    mítico-imaginário que chamamos de Sur.

    Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
    .

    Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito?
    O Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado
    mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que
    passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante
    para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a
    explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se
    aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações
    de Jung e de Freud. A palavra «fascinante» tenta descrever os efeitos classicamente
    atribuídos ao «sagrado» num mundo dessacralizado. Assim, numa
    sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos
    campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É
    interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início
    de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o
    mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
    Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e
    seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através

    Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico
    .

    das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são
    reconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies
    1997:732).
    O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente
    por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu
    primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da
    sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está
    contido apenas no conto «El Sur», pois um mito não é identificável com um
    único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita
    imagens míticas:
    O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura
    dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com
    uma dialética sempre original (Dabezies 1997:733).

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8 comentários:

  1. SOBREVIVÊNCIAS DE
    BORGES
    Jorge Luis Borges faleceu em 1986 e nesses vinte anos sua figura
    literária só fez crescer e sua obra é lida e estudada como nunca. Nesse
    período foram se esmaecendo os pontos polêmicos em torno do cidadão
    Borges e foram se cristalizando os contornos de um riquíssimo universo de
    imaginação e invenção verbal, construído em espanhol mas patrimônio da
    humanindade. Não por acaso se sucederam nesse período as traduções a
    um grande número de línguas.
    Este número de Fragmentos teve início no já longínquo ano de 1999,
    quando foi realizado um encontro sobre Borges na Universidade Federal de
    Santa Catarina. Foram apresentados nesse evento, em versões preliminares,
    «Borges cuentista, las reglas del arte», de Isabel Stratta e «Borges e o
    uso da história». A esses textos se soma aqui uma variedade de estudos, de
    diversa origem. O primeiro deles, de Júlio Pimentel Pinto, revisa a rica
    bibliografia recente sobre Borges, com ênfase na relação entre literatura e
    história. Segue-se o confronto, feito por Rafael Camorlinga, entre o fantástico
    borgiano e o chamado realismo mágico hispano-americano. Carlos
    García, por sua vez, apresenta uma investigação sobre Borges e Kafka,
    uma relação que já mereceu muitos estudos e que é aqui vista de modo
    rigoroso e perspicaz.
    Pablo Rocca analisa um capítulo pouco conhecido: a complexa
    relação de Borges com o Uruguai, aqui especificamente com os Onetti,
    um dos quais, Juan Carlos, teve sua importância ofuscada pela fama
    avassaloradora de Borges. Entre os países em que essa fama tem sido
    grande e duradoura está, sem dúvida, a Itália, como demonstra Andréia
    Guerini em «Borges na Itália».
    Um dos muitos mitos tecidos ao redor de Borges é que suas
    referências são sistematicamente apócrifas. Ana Cláudia Röcker Trierweiller
    e Andréa Cesco mostram, em «Intertexto real e inventado em Borges», que

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  2. Fragmentos, números 28/29, p. 011/012 Florianópolis/ jan - dez/ 2005

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  3. o mundo real tem um peso maior no vasto corpus do autor de Ficciones do
    que normalmente se pensa.
    Um conjunto de três artigos enfoca aspectos específicos do texto
    borgiano: Cláudio Cruz segue os meandros de um conto especialmente perturbador
    em «Nas pegadas de Marcos: notas a um conto de Borges»; Fernando
    Sorrentino (escritor argentino, autor de um dos melhores livros de
    entrevista com Borges) traz em «Borges e Arlt: paralelas que se tocam»,
    evidências textuais de uma curiosa apropriação borgiana, e Fabiano
    Fernandes, em «Duas onisciências: ‘La escritura del Dios’ e ‘El aleph’»,
    traça um paralelo entre dois relatos de Borges.
    O ensaio, a entrevista e a tradução, merecem estudos
    específicos. Leonil Martínez examina os controvertidos primeiros ensaios
    borgianos em «O ensaísmo inicial de Jorge Luis Borges: apagamento e
    reescritura»; Daisi Irmgard Vogel, em «Borges e a entrevista», visita a ainda
    pouco pesquisada obra oral de Borges e Eleonora Castelli, em «Benjamin e
    Borges: por uma história da tradução», aborda um dos assuntos que
    preocupou Borges ao longo da vida e ao qual dedicou alguns de seus mais
    agudos ensaios.
    Borges, segundo parecer unânime da crítica, excele tanto na técnica
    como no tratamento temático. Dois textos deste número comprovam a destreza
    de Borges nos dois terrenos: «As ruínas circulares e os recuos do
    narrador», de Karla Mascarenhas, e «Borges e o Sur mítico», de Marlova
    Gonsales Aseff.
    Este número da Fragmentos oferece uma ampla «Bibliografia de e
    sobre Jorge Luis Borges», compilada por Fabiano Fernandes e Andréa Cesco,
    algumas resenhas da vasta produção internacional sobre Borges e duas
    entrevistas. A primeira delas, como o escritor Flávio José Cardozo, um dos
    primeiros tradutores de Borges ao português, e a segunda com Javier Torres,
    cineasta argentino.
    Como apêndice, Fragmentos apresenta dois documentos de especial
    importância: «Borges: ‘Examen de metáforas’: edición crítica y anotada», de
    Carlos García, e «El Uruguay de Borges: otros documentos», de Pablo Rocca.
    Registramos, por último, o ensaio «Mário/Borges: diálogos entre dois
    poetas vizinhos», em que se analisa o contato entre as poéticas do modernista
    brasileiro e daquele que foi, no seu momento, o chefe do ultraísmo argentino.
    Seu autor, Ronaldo Assunção, faleceu prematuramente no ano passado,
    enlutando o hispanismo brasileiro. À memória de Ronaldo, que deixa, entre
    outras contribuições, um livro sobre César Vallejo e outro sobre a poesia de
    Borges, é dedicado este volume.
    Walter Carlos Costa

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  4. Walter Carlos Costa, Sobrevivências de Borges

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  5. Borges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura
    construida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la
    inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo
    1995:51).
    Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos
    de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação
    entre civilização (as coisas da cidade) e o «Sur». Essa concepção começou
    a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de
    Borges até o fim.
    Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra «orillas» (margen, filo,
    límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década
    del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos (Sarlo 1995:
    52).
    Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan
    Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território
    regido por outras leis:
    Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía
    decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en
    un mundo más antiguo y más firme (Borges 1995:271).
    Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço
    mítico-imaginário que chamamos de Sur.

    Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico

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  6. Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito?
    O Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado
    mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que
    passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante
    para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a
    explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se
    aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações
    de Jung e de Freud. A palavra «fascinante» tenta descrever os efeitos classicamente
    atribuídos ao «sagrado» num mundo dessacralizado. Assim, numa
    sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos
    campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É
    interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início
    de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o
    mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
    Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e
    seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através

    Marlova Gonsales Aseff, Borges e o Sur mítico

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  7. das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são
    reconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies
    1997:732).
    O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente
    por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu
    primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da
    sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está
    contido apenas no conto «El Sur», pois um mito não é identificável com um
    único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita
    imagens míticas:
    O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura
    dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com
    uma dialética sempre original (Dabezies 1997:733).

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