quarta-feira, 20 de março de 2013

O poema como via de acesso ao sagrado (2


Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia

Manoel de Barros


(...)

O poeta se faz vidente atra´ves de um longo, imenso e bem calculado desregramento de todos os sentidos'' (A.Rimbaud)

(...)


“Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”.

(M.de Barros)

(...)

Visualizando o ato do poeta moderno constatamos que, de fato, o poeta pratica seu poema como ritual na medida em que acentua o ''extranhamento'' de sua visão, persiste em seu exercício contra a corrente, produz a desautomatização do pensamento e silencia o diálogo interno, ou entra plenamente em uma nova dimensão do real, ascendendo á uma escalada interior que permite conferir um sentido altamente POSITIVO ao seu ofício (Azcuy, 1966, 1999). Como já dizia René Char, o poeta francês que dialogava com Martin Heidegger, o poeta nunca sai ileso de sua página.

G. Maturo

(...)

Há quem aceite a palavra a ponto de osso,

de oco; ao ponto de ninguém e de nuvem.

Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida,

na sarjeta.

Sou mais a palavra ao ponto de entulho.

Amo arrastar algumas no caco de vidro,

envergá-las pro chão, corrompê-las, -

até que padeçam de mim e me sujem de branco.

Exerço com elas o ofício de criado

M. de Barros

(...)

O criador antecipa e assedia esse território desconhecido que em certos momentos é capaz de assaltar y possuir. A abertura da consciência aos dados imediatos da natureza, constitui o primeiro passo de um processo cognitivo que põe em marcha a faculdade SIMBOLIZANTE, o poder de dar sentido ás imagens inicialmente caóticas que vê.

(...)

Queria checar os limites da realidade. Estava curioso em ver no que ia dar. Isso é tudo: apenas curiosidade.
Jim morrison

(...)

O poeta pratica um modo de contemplação próprio das disciplinas mistéricas: é um irregular, dizia Claudel, que põe em ato espontâneamente os passos de um mísitco contemplativo, um yogui ou um iniciado em mistérios antigos.

Contemplar leva em si a raiz de templum, e com efeito, designa o ingresso em uma atmosfera irracional, que amplia o campo do conhecimento e faz possível a apropriação de um novo nível de realidade. Virgínia Wolf falou desses instantes de revelação, e os considerou momentos de acesso á Realidade com maiúscula. Essas epifanias criam no poeta um estado de consciencia particular que permite sintetizar vivências, recordações, sonhos, visões, sob o denominador comum de um viver intuitivo, emocional e imaginário, próximo ao misticismo mas não de todo alheio á sua interpretação racional.

Graciela Maturo)

(...)

No que o homem se torne coisal,

corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana,

que empoema o sentido das palavras.

M.DE BARRIOS

(...)

Poetizar é sempre, em última instância, dar uma linguagem á experiência espiritual, que é experiência de mundo e de si. A mirada poética abre a realidade do mundo e promove a emergência do subconsciente transcendental, señalado como meta por Federico von Hardenberg, conocido como Novalis: A TAREFA SUPREMA DE TODA E QUALQUER CULTURA CONSISTE EM APODERAR-SE DO SUBCONSCIENTE TRANSCENDENTAL, CONVERTENDO-O EM TERRITÓRIO VISITÁVEL Á TODOS (Novalis, 1948, p.51). 


(...)

A escola órfico-pitagórica atribuía esta necessidade á essencia musical da alma, que ao sintonizar os ritmos cosmicos das zonas avançadas do subconsciente tomava consciencia de sua origem divina.


(...)

A esse acordo da natureza interior com o cosmos, pautado por uma conformação psico-física, soma ao poeta a necessidade de uma mímesis criadora que o lvea á expressar-se pela música (http://www.youtube.com/watch?v=s2sCO03QRm0), pela imagem e pela palavra, criando uma manifestação verbal que se acha mais próxima das outras artes que do discurso racional, ainda que sem se divorciar completamente deste. Sente a necessidade de guardar seus estados interiores e imagens plasmadas pela linguagem, criando um ANALOGON do Cosmos. Projeta na linguagem verbal - como outros artistas nas artes do tempo e dos espaço - as dimensões de sua singular experiência consciencial. 

Em tais instâncias de reconhecimento intelectual de seu próprio ofício, a menudo aparece no poeta um redescobrimento do MITO. è prório do poeta e absolutamente natural que ele se instale sinta-se á vonta dentro do PENSAMENTO MÍTICO, confundindo-se e reconhecendo-se em seus personagens, como o fizeram com Orfeu os poetas Jean Cocteau y Rosamel del Valle, o con Narciso, Paul Valéry y José Lezama Lima. 
(Graciela Maturo)

O erro compreende a sua figura
no centro novo e na esfera nova.
Duplo erro, sedento
movem-se os números na parede
da recordação exata e as boas-vindas.
Risco novamente aquelas letras
do convite com que amanheciam
as nuvens novas e a dulcificada
roda da tortura.
Onde se alojaram os mistérios,
as noites gêmeas e as coleções
de ídolos perenes?
A roda da poderosa nuvem imperial
o parafuso já não golpeia
as costas densas.
O parafuso que rompe o mar em dois:
os poderosos deuses abolidos
e o presságio que toca e persegue.
Gira a nuvem sob o sonho
e ali investe contra novos reinos
da pronunciada melodia.
Depois do cordeiro recém-nascido
sem perguntas na apaziguada prata,
os impérios do carvão, os nebulosos
paraísos sem proporção e justiça.
Aqueles que esquecem que a elegância,
corcel alimentado de orvalho ou polpa de neve
cortesã, é o ser iminente que penetra
na nuvem central, o corpo da amêndoa:
a soberania celestial do fogo em evasão.
Fugia da terra grávida,
sedento Marco Pólo entre carbúnculos,
estabelecendo os limites do sonho vago.
Acreditava que encontraria entre as rochas douradas
o peixe ainda sonâmbulo e separado
- única espécie de um metal vivo -
da noite e a sua sombra dançante.
Ali nas flautas a maldição nascente
e a nova cidade do corpo em fúria,
as pontes sombrias onde animais de canela
destroem na noite as coleções de porcelana.
Aberta ali, no instante em que a flor
assimila e se une ao inseto,
grandes pirâmides de orvalho
o golpe que engendra o cravo.
Ecos desabam, rumoroso presságio,
recua a extensa coluna de um fogo trêmulo
incha em ti, soluça o murmúrio,
invoca a ternura dos véus da água.
E as ninfas entre água e escuridão
transbordam de graça e som, os seus mantos,
os cabelos eternos diante do espelho, dizem:
define-me, não é nos meus passos, é na estátua
onde o tempo me devora e na areia
que cai das mãos que está o tempo predileto,
o único tempo criador sem o seu par e não o flanco
sangrando até o crepúsculo, e à nossa frente:
a estátua desconexa e um só centro .

Lezama Lima

(...)


O poeta- a despeito dos alcances filosóficos de seu trabalho - se converte em puro fenomenólogo (Bachelar, 1958); sua experiência, de caracterísitcas singulares, adquira proximaidade com a experiência dos místicos.

Entre nós Leopoldo Marechal, siguiendo a antiguos maestros, remitió el acto poético a la mística (Marechal, 1965). Por su parte, Héctor A. Murena señaló el impulso revelatorio del arte, que va más allá de la forma y de lo mundano (Murena, 1973). La conciencia acerca de estos procesos de revelación, transformación y expresión halla su prueba en las poéticas, modernas enunciadas por poetas y filósofos: T. S. Elliot, Rainer María Rilke, Cavafis, José Ángel Valente, Octavio Paz, Juan Liscano, Lezama Lima, Héctor Delfor Mandrioni, Hugo Mujica. 

(Graciela Maturo)

(...)

 Dentro de esa circularidad, el lenguaje se afirma como función inexcusable. En otros términos lo anticipaba el maestro Swedenborg: La palabra es el puente entre la tierra y el cielo. 


Post Scriptum


"Exploro os mistérios irracionais dentro de uma toca que chamo 'lugar de ser inútil'. Exploro há 60 anos esses mistérios. Descubro memórias fósseis. Osso de urubu, etc. Faço escavações. Entro às 7 horas, saio ao meio-dia. Anoto coisas em pequenos cadernos de rascunho. Arrumo versos, frases, desenho bonecos. Leio a Bíblia, dicionários, às vezes percorro séculos para descobrir o primeiro esgar de uma palavra. E gosto de ouvir e ler "Vozes da Origem". Gosto de coisas que começam assim: "Antigamente, o tatu era gente e namorou a mulher de outro homem". Está no livro "Vozes da Origem", da antropóloga Betty Midlin. Essas leituras me ajudam a explorar os mistérios irracionais. Não uso computador para escrever. Sou metido. Sempre acho que na ponta de meu lápis tem um nascimento."

MANOEL DE BARROS


POST SCRIPTUM

(Perdoai,

A maior riqueza do homem é sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.


(...)





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