quinta-feira, 18 de abril de 2013

O mito do eterno retorno

 

  O escritor peruano Mario Vargas Llosa, 77, abriu na noite desta quarta-feira a edição 2013 do ciclo Fronteiras do Pensamento com uma conferência sobre a banalização da cultura.

O Prêmio Nobel falou durante uma hora, no teatro Geo, em São Paulo, sobre o tema.

"A cultura não é o mesmo que já foi no passado. O conceito de cultura é tudo, então de certa forma é nada", resumiu o escritor.

Ele exemplificou citando alguns usos do termo cultura na mídia: "Cultura do UFC", "cultura da musica eletrônica", "cultura da cocaína".

 Vargas Llosa disse que teve a ideia de fazer o livro quando visitou há mais ou menos dez anos uma edição da Bienal de Veneza. "Não levaria nenhum daqueles quadros para casa. E pior, tive a sensação de que estavam tirando sarro da minha cara."

As artes plásticas contemporâneas foram os grandes alvos do discurso. Como já havia feito em outras ocasiões, criticou em especial o artista britânico Damien Hirst, que considera o emblema desta frivolização da arte. O universo artístico está virando uma grande Disneylândia, acrescentou.

Segundo o intelectual, que já havia participado do ciclo Fronteiras do Pensamento em 2010, pouco depois de ganhar o Nobel, a mesma cultura que nos tirou das grutas e nos levou às estrelas pode, desprovida de FOGO, de VIGOR, nos fazer retroceder às cavernas. 


 (...)

O MITO DO ETERNO RETORNO

MIRCEA  ELIADE
Tradução
 José Antonio Ceschin
O reaparecimento das teorias cíclicas no pensamento contemporâneo está repleto de significado. Incompetentes que somos para passar julgamento sobre sua validade, devemos nos limitar a observar que a formulação de um mito arcaico, em termos modernos, representa, quando menos, uma traição ao desejo de encontrar um significado e uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos. Assim, encontramo-nos uma vez mais na posição pré-hegeliana, com a validade das soluções "historicistas", de Hegel a Marx, sendo implicitamente questionada. A partir de Hegel em diante, todo esforço é concentrado no sentido de conservar e atribuir um valor ao acontecimento histórico como tal, o acontecimento em si mesmo e para si mesmo. Em seu estudo da Constituição alemã, Hegel escreveu que, se reconhecermos que as coisas são necessariamente como elas são, isto é, que elas não são arbitrárias e nem resultam da casualidade, teremos ao mesmo tempo de reconhecer que elas
devem
ser como são. Um século mais tarde, o conceito da necessidade histórica vai desfrutar de uma aplicação prática cada vez mais triunfante: na verdade, todas as crueldades, aberrações e tragédias da história têm sido, e ainda são
justificadas pelas necessidades do "momento histórico". Hegel provavelmente não pretendia ir tão longe. Mas, como tinha decidido reconciliar-se com seu próprio momento histórico, considerou-se obrigado a ver em cada acontecimento a vontade do Espírito Universal. Por isso é que ele considerava "a leitura dos jornais matinais como uma espécie de bênção realista da manhã".Para ele, só o contato diário com os acontecimentos podia orientar a conduta do homem em suas relações com o mundo e com Deus. Como podia Hegel saber o que era
necessário
na história, o que,conseqüentemente, tinha de ocorrer, do jeito que havia ocorrido? Hegel acreditava saber qual era o desejo do Espírito Universal. Não pretendemos insistir sobre a audácia de suas teses, que, afinal de contas, servem para abolir precisamente aquilo que Hegel pretendia salvar na história — a liberdade humana. Mas existe um aspecto na filosofia da história defendida por Hegel que nos interessa muito, porque ainda preserva algo da concepção judaica-cristã: para Hegel, o acontecimento histórico era a manifestação do Espírito Universal. Agora, é possível encontrar um paralelo entre a filosofia da história, de Hegel, e a teologia da história defendida pelos profetas hebreus: para estes últimos, assim como para Hegel, um acontecimento é irreversível e válido em si mesmo enquanto é uma nova manifestação da vontade de Deus — uma proposta que, verdadeiramente, consideramos revolucionária, do ponto de vista das sociedades tradicionais, dominadas pela eterna repetição dos arquétipos. Portanto, na visão de Hegel, o destino de um povo ainda preservava um significado trans-histórico, porque toda a história revelava uma nova e maiscompleta manifestação do Espirito Universal. Mas, com Marx, a história lançou fora todo o seu significado transcendental; já não era coisa alguma, além da epifania da luta de classes sociais. Até que ponto uma tal teoria justifica o sofrimento histórico? Para obter uma resposta, precisamos apenas nos voltar, por exemplo,para a patética resistência de um Belinsky ou um Dostoyevski, que perguntavam a si mesmos como, a partir do ponto de vista das dialéticas hegeliana e marxista, seria possível redimir todos os dramas da opressão, dos sofrimentos coletivos,das deportações, humilhações e massacres que enchem a história universal.
No entanto, o marxismo preserva um significado da história. Para o marxismo, os acontecimentos não são uma sucessão de acidentes arbitrários; eles demonstram ter uma estrutura coerente, e, acima de tudo, levam a um propósito definido — à eliminação final do terror da história, à "salvação". Desta maneira, no ponto final da filosofia marxista da história, encontramos a ERA DE OURO das escatologias arcaicas (como a hindu, por exemplo). Neste sentido, é correto afirmar não apenas que Marx "trouxe a filosofia de Hegel de volta à terra", mas também que ele reconfirmou, em um nível exclusivamente humano, o valor do mito primitivo da ''era de ouro'', com a diferença de que coloca a era de ouro no final da história, ao invés de colocá-la também no seu ponto inicial. Para o militante marxista, é aqui que está o segredo do remédio para o terror da história: da mesma forma que os contemporâneos de uma "era obscura" consolavam-se, diante dos seus sofrimentos cada vez maiores, com o pensamento de que o agravamento do mal acelera a libertação final, os militantes marxistas dos nossos dias interpretam o drama provocado pelas pressões da história como um mal necessário, um sintoma premonitório da aproximação da vitória, que colocará um fim permanente a todos os "males" históricos.O terror da história torna-se cada vez mais intolerável a partir dos pontos de vista proporcionados pelas várias filosofias historicistas. Porque nelas, naturalmente, cada acontecimento histórico encontra seu único e total significado apenas em sua realização. Não precisamos aqui entrar nas dificuldades teóricas do historicismo, que já serviram para perturbar Rickert,Troeltsch, Dilthey e Simmel, e que os recentes esforços de Croce, de Karl Mannheim, ou de Ortega y Gasset conseguiram apenas parcialmente ultrapassar
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. Este ensaio não exige que discutamos o valor filosófico do historicismo como tal, nem a possibilidade de estabelecimento de uma "filosofia da história" que definitivamente transcendesse ao relativismo. O próprio Dilthey,aos setenta anos de idade, reconheceu que "a relatividade de todos os conceitos humanos é a última palavra da visão histórica do mundo". Em vão ele proclamou uma
allgemeine Lebenserfahrung
como meio final de transcender a esta relatividade. E foi também em vão que Meinecke invocou o "exame de consciência" como uma experiência transubjetiva, capaz de transcender à
relatividade da vida histórica. Heidegger tinha se dado ao trabalho de mostrar que a historicidade da existência humana proíbe toda esperança de transcendermos ao tempo e à história.Para nossos propósitos, só uma questão deve nos preocupar: como pode o "terror da história" ser tolerado a partir do ponto de vista do historicismo? A justificação de um acontecimento histórico, pelo simples fato de ele ser um acontecimento histórico, em outras palavras, pelo simples fato de ter"acontecido dessa maneira", não caminha no sentido de libertar a humanidade do terror que o acontecimento inspira. Deve-se compreender que não estamos aqui preocupados com o problema do mal, que, independente do ângulo a partirdo qual possa ser visto, permanece como um problema filosófico e religioso;estamos preocupados, isto sim, com o problema da história como história, do"mal" que está limitado não pela condição do homem, mas pelo seu comportamento em relação aos outros. Deveríamos querer saber, por exemplo,como seria possível tolerar e justificar os sofrimentos e a aniquilação de tantas pessoas que sofrem e que são aniquiladas pela simples razão de que sua situação geográfica as coloca no caminho da história; por serem vizinhos de impérios que se encontram em estado de permanente expansão. Como justificar, por exemplo, o fato de o sudeste da Europa ter sofrido durante séculos— sendo portanto obrigado a renunciar a qualquer impulso no sentido de uma existência histórica mais elevada, na direção da criação espiritual no plano universal — pela única razão de que estava no caminho dos invasores asiáticos e, mais tarde, vizinho do Império Otomano? E, em nossos dias, quando as pressões históricas já não permitem mais qualquer fuga, como pode o homem tolerar as catástrofes e horrores da história — desde as deportações e massacres coletivos até os bombardeios atômicos — se, além deles, não consegue ver qualquer sinal nem significado trans-histórico; se esses acontecimentos são apenas as jogadas cegas de forças econômicas, sociais ou políticas, ou, pior ainda, unicamente o resultado das "liberdades" que uma minoria toma e exercita de modo direto sobre o cenário da história universal? Sabemos como, no passado, a humanidade conseguia suportar os sofrimentos que já tivemos oportunidade de enumerar: eles eram considerado
como uma punição aplicada por Deus, a síndrome do declínio da "era", e assim por diante. E era possível aceitar os acontecimentos precisamente porque tinham um significado meta-histórico, porque, para a maior parte da humanidade, ainda apegada ao ponto de vista tradicional, a história não tinha, e nem poderia ter, valor em si mesma. Todos os heróis repetiam o gesto arquetípico, todas as guerras ensaiavam a luta entre o bem e o mal, cada nova injustiça social era identificada com os sofrimentos do Salvador (ou, por exemplo, no mundo pré-cristão, com a paixão de um mensageiro divino ou deus da vegetação), cada novo massacre repetia o glorioso fim dos mártires. Não nos compete aqui decidir se tais motivos eram pueris ou não, nem se uma tal rejeição da história mostrava-se sempre eficaz. Em nossa opinião, só um fato importa: em virtude deste ponto de vista, dezenas de milhões de homens, século após século, foram capazes de suportar enormes pressões históricas sem se desesperar, sem cometer o suicídio nem cair naquela aridez espiritual que sempre traz consigo uma visão relativista ou niilista da história. Além do mais, como já tivemos oportunidade de observar, uma parte considerável da população da Europa, sem falar naquela de outros continentes, ainda vive, hoje em dia, à luz do ponto de vista tradicional, anti-"historicista". Portanto, são as "ELITES", acima de tudo, que se vêm confrontadas pelo problema, uma vez que apenas elas são forçadas, e cada vez com maior rigor, a tomar conhecimento de sua situação histórica. É verdade que o cristianismo e a filosofia escatológica da história não pararam de satisfazer a uma considerável proporção dessas elites. Até certo ponto, e em relação a determinados indivíduos, pode-se dizer que o marxismo — especialmente em suas formas populares — representa uma defesa contra o terror da história. Somente a posição historicista, em todas as suas variedades e matizes — desde o "destino" de Nietzsche até à "temporalidade" de Heidegger — permanece desarmada
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.De modo algum se pode considerar apenas como coincidência fortuita que, no caso desta filosofia, o desespero, o
amor fati e
o pessimismo sejam elevados ao grau de virtudes heróicas e instrumentos de conhecimento.No entanto, esta posição, embora seja a mais moderna, e, num certo sentido, quase inevitável para todos os pensadores que definem o homem como
um "ser histórico", ainda não conseguiu realizar uma conquista definitiva do pensamento contemporâneo. Algumas páginas atrás, tivemos oportunidade de observar diversas orientações recentes que demonstram uma tendência no sentido de reconferir valor ao mito da periodicidade cíclica, e mesmo ao mito do ETERNO RETORNO. Essas orientações desprezam não só o historicismo, mas até mesmo a história como tal. Acreditamos dispor de justificativa que nos permite ver nelas, ao invés de uma resistência à história, uma REVOLTA CONTRA O TEMPO HISTÓRICO, uma tentativa que visa restaurar esse tempo histórico, carregado que está de experiência humana, a um tempo que é cósmico, cíclico e infinito. De qualquer modo, vale a pena observar que o trabalho de dois dos mais significativos autores de nosso tempo — T. S. Eliot e James Joyce — acha-se saturado de nostalgia pelo mito da eterna repetição e, em última análise, pela abolição do tempo. Também encontramos razão para prever que, do mesmo modo como o terror da história vai piorando, ao mesmo tempo em que a existência se torna mais e mais precária por causa da história, as posições do historicismo irão perdendo cada vez mais o seu prestígio. E, num momento em que a história poderia fazer aquilo que nem o Cosmo, nem o homem, nem a casualidade conseguiram ainda fazer — isto é, aniquilar a raça humana por completo —, talvez estejamos testemunhando uma tentativa desesperada no sentido de proibir os "acontecimentos da história", por intermédio de uma reintegração das sociedades humanas dentro do horizonte dos arquétipos e de sua repetição. Em outras palavras, não é de modo algum inadmissível pensar numa época, e uma época não muito distante,na qual a humanidade, para garantir sua própria sobrevivência, ver- se-á reduzida a desistir de qualquer nova tentativa de "fazer" a história, no sentido em que a começou a fazer a partir da criação dos primeiros impérios, limitar-se-á a repetir gestos arquetípicos prescritos, esforçando-se no sentido de esquecer,por serem insignificativos e até perigosos, determinados gestos espontâneos que poderiam trazer consigo algumas conseqüências "históricas" Seria até interessante comparar a solução a-histórica das sociedades futuras com os mitos paradisíacos ou escatológicos da era dourada do princípio ou do fim do mundo.Mas, como nossa intenção é perseguir essas especulações em outra obra,devemos agora voltar ao nosso problema, ou seja, à posição do homem histórico
148em relação ao homem arcaico, e procurar compreender as objeções levantadas contra este último, com base na visão historicista.
 
Liberdade e história
Em sua rejeição dos conceitos de periodicidade e, portanto, em última análise, dos conceitos arcaicos de arquétipos e repetição, nós nos consideramos justificados em ver a resistência do homem moderno em relação com a natureza, a vontade do "homem histórico" no sentido de afirmar sua autonomia. Conforme Hegel observou com uma elevada auto-segurança, nada de novo ocorre na natureza. E, a diferença crucial entre o homem das civilizações arcaica e moderna, o homem histórico, reside no valor cada vez maior que este atribui aos acontecimentos históricos, isto é, às "novidades" que, para o homem tradicional, ou representavam conjunturas insignificantes ou a infração de normas (portanto "faltas", "pecados", e assim por diante) e que, como tal, tinham de ser expelidas (abolidas) periodicamente. O homem que adota o ponto de vista histórico estaria justificado em considerar a concepção tradicional de arquétipos e repetição como uma aberrante reidentificação da história (isto é,de "liberdade" e de "novidade") com a natureza (na qual tudo se repete).Porque, assim como o homem moderno observa, os próprios arquétipos constituem uma "história", já que são feitos de gestos, atos e decretos que,embora supostamente tenham sido manifestados
in illo tempore,
foram, ainda assim, manifestados, isto é, apareceram no tempo, "tiveram lugar" como qualquer outro acontecimento histórico. Os mitos primitivos freqüentemente mencionam o nascimento, atividade e desaparecimento de um deus ou herói,cujos gestos "civilizadores" são, a partir de então, repetidos
ad infinitum.
Isso equivale a dizer que o homem arcaico também conhece uma história, muito embora seja uma história primordial, situada num tempo mítico. A rejeição da história por parte do homem arcaico, sua recusa no sentido de situar-se num tempo concreto, histórico, seria, então, o sintoma de um desgaste precoce, um medo do movimento e da espontaneidade; em suma, colocado entre a aceitação
da condição histórica e seus riscos, de um lado, e sua reidentificação com os modos da natureza, de outro, ele escolheria uma tal reidentificação.Nesta aderência total, de parte do homem antigo, aos arquétipos e à repetição, o homem moderno teria o direito de ver não só a admiração dos primitivos diante de seus próprios primeiros gestos livres, espontâneos e criativos e de sua veneração, repetida
ad infinitum,
mas também uma sensação de culpa de parte do homem mal saído do paraíso do animalismo (isto é, da Natureza), uma sensação que o leva a reidentificar com a repetição eterna da Natureza os poucos gestos primordiais, criativos e espontâneos que tinham sinalizado o aparecimento da liberdade. Continuando com sua crítica, o homem moderno poderia até mesmo ler nesse medo, nessa hesitação ou fadiga na presença de quaisquer gestos sem um arquétipo, uma tendência da Natureza no sentido do equilíbrio e do descanso; e ele poderia ler essa tendência no anticlímax que fatalmente se faz seguir a qualquer gesto exuberante da vida, e que alguns chegaram ao ponto de reconhecer na necessidade sentida pela razão humana no sentido de unificar o real por intermédio do conhecimento. Em última análise, o homem moderno, que aceita a história ou que afirma aceitá-la, pode repreender o homem antigo, aprisionado dentro do horizonte mítico dos arquétipos e da repetição, com sua impotência criativa, ou, o que acaba dandono mesmo, sua incapacidade de aceitar os riscos inerentes a qualquer ato criativo. Porque o homem moderno só pode ser criativo enquanto ele é histórico; em outras palavras, toda criação está proibida para ele, exceto aquela que tem sua fonte em sua própria liberdade; e, conseqüentemente, tudo lhe énegado, exceto a liberdade de fazer a história fazendo-se a si mesmo.A essas críticas levantadas pelo homem moderno, o homem das civilizações tradicionais poderia responder com uma contracrftica que seria, ao mesmo tempo, uma defesa do tipo de existência arcaica. Ele poderia dizer que está ficando cada vez mais em dúvida se o homem moderno pode fazer história.Pelo contrário, quanto mais moderno
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ele se torna — isto é, sem defesas contra o terror da história — menos chance tem de fazer história ele próprio. Porque ou a história se faz (como resultado da semente lançada pelos atos ocorridos no passado, vários séculos ou até mesmo diversos milênios antes; vamos citar as
conseqüências da descoberta da agricultura ou da metalurgia, da revoluçãoindustrial no século XVIII, e assim por diante), ou terá a tendência de deixar-se fazer por um número cada vez menor de homens, que não só proíbem a massa de seus contemporâneos de intervir de modo direto ou indireto sobre a história que eles estão fazendo (ou que o grupo menor está fazendo), mas, além disso, têm à sua disposição os meios suficientes para forçar cada indivíduo a suportar,por sua vez, as conseqüências dessa história, ou seja, de viver imediata e continuamente apavorado diante da história (COMO OCORRE NOS DIAS DE HOJE). A decantada liberdade do homem moderno no sentido de fazer história é ilusória, para a quase totalidade da raça humana. No máximo, o homem é deixado livre para escolher entre duas posições: 1) opor-se à história que está sendo feita por uma pequena minoria (e,neste caso, ele tem liberdade para escolher entre a cadeia ou a deportação); 2) buscar refúgio numa existência subumana ou na fuga. A "liberdade" que a existência histórica implica era possível — e mesmo então dentro de determinados limites — no princípio do período moderno, mas a tendência que demonstra é de tornar-se inacessível, ao mesmo tempo em que o período vai- se tornando mais histórico, ou, em outras palavras, mais alheio a qualquer modelo trans-histórico. É perfeitamente natural, por exemplo, que o marxismo e o fascismo devam levar ao estabelecimento de dois tipos de existência histórica: a do líder (o único homem "livre" de fato) e a dos seguidores, que encontram, na existência histórica do líder, não um arquétipo de sua própria existência, mas o legislador dos gestos que lhes são provisoriamente permitidos.Assim, para o homem tradicional, o homem moderno não dispõe do tipode um ser livre, nem de um criador da história. Ao contrário, o homem das civilizações antigas pode orgulhar-se de seu modo de existência, que lhe permite ser livre e criar. Ele tem liberdade para não ser mais o que era, livre para anular sua própria história por meio da periódica abolição do tempo e da regeneração coletiva. Essa liberdade com respeito a sua própria história — a qual, para o homem moderno, não é só irreversível, mas constitui a existência humana —não pode ser reclamada pelo homem que deseja ser histórico. Nós sabemos que as sociedades antigas e tradicionais davam liberdade todos os anos para se começar uma nova e "pura" existência, com possibilidades virgens. E não há
qualquer dúvida de se ver nisso uma imitação da natureza, que também passa por uma regeneração periódica, "começando de novo" a cada primavera, com a primavera recuperando todas as suas forças. De fato, enquanto a natureza se repete, cada nova primavera representando a mesma primavera eterna (ou seja,a repetição da Criação), a "pureza" do homem antigo, depois da periódica abolição do tempo e da recuperação de suas virtualidades intactas, permite-lhe,às portas de cada "nova vida", uma continuada existência na eternidade, e portanto a abolição definitiva,
hic et nunc,
do tempo profano. As "possibilidades"intactas da Natureza a cada primavera, e as possibilidades do homem antigo às portas de cada ano, portanto, não são homólogas. A Natureza recupera apenas a si mesma, enquanto que o homem antigo recupera a possibilidade de transcender definitivamente o tempo, e de viver na eternidade. Enquanto não conseguir fazer isso, enquanto ele "pecar", isto é, cair na existência histórica, no tempo, ele estará, todos os anos, fazendo abortar essa possibilidade. Pelo menos ele retém a liberdade de anular suas faltas, de abolir a memória de sua "queda na história", para fazer uma nova tentativa de escapar definitivamente do tempo
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.Além do mais, o homem antigo por certo tem o direito de considerar-se mais criativo do que o homem moderno, que vê a si mesmo como criativo apenas em relação à história. Em outras palavras, todos os anos o homem antigo toma parte na repetição de sua cosmogonia, o ato criativo par
excellence.
Poderíamos até acrescentar que, durante algum tempo, o homem foi criativo no plano cósmico, imitando sua cosmogonia periódica (que ele também repetia em todos os outros planos da vida, cf. pp. 73 ss.) e participando nela
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. Devemos ter em mente também as implicações de caráter "criacionista" das filosofias e técnicas orientais (especialmente a indiana), que encontram assim um lugar no mesmo horizonte tradicional. As técnicas orientais procuram, acima de tudo, anular ou transcender à condição humana. Neste
aspecto, achamos justo falar não só de liberdade (no sentido positivo) ou libertação (no sentido negativo), mas até de Criação; porque, o que se acha envolvido aqui é a criação de um novo homem, e de criá-lo em um plano supra-humano, um homem-deus, tal e qual a imaginação do homem histórico jamais sonhou ser possível criar.
 
 
 
 
 

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