terça-feira, 16 de abril de 2013

RENASCIMENTO PLURAL

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/resenha/rs1204200303.htm

Modernas Tradições - Percursos da Cultura Ocidental (Séculos 15-17)
Berenice Cavalcanti, João Masao Kamita, Marcelo Jasmin e Silvia Patuzzi
Access (Tel. 0/xx/21/2535-1724)
368 págs., R$ 14,00

NEWTON BIGNOTTO

A partir de 1860, com a publicação da obra de Jacob Burckhardt, "A Civilização do Renascimento Italiano", os estudos dedicados ao período foram marcados pela vontade de oferecer ao leitor uma compreensão global do que se convencionou chamar de Renascimento. Na verdade, a designação mesma da época compreendida entre o final da Idade Média e o início da Moderna representou uma criação, que contou com a colaboração decisiva de Michelet no decorrer de seus famosos cursos do Collège de France na metade do século 19.
Antes dele, que de fato não inventou o termo, mas o popularizou, era comum falar de renovação e mesmo renascença das artes e das letras no período indicado, mas não se operava com um conceito capaz de designar com precisão uma época histórica e um sentido único para seus movimentos criativos.
A marca dessas gerações iniciais de estudiosos acabaria sendo a busca de uma síntese capaz de dar ao leitor a chave do "espírito" da época. Influenciados pelas filosofias de Kant e de Hegel, os trabalhos seminais de F. von Bezold , de Wilamowitz e mesmo de Cassirer seriam marcados por esse desejo de encontrar um sentido coerente para um movimento de idéias extremamente complexo em seus desdobramentos. Esse esforço inicial seria parcialmente abandonado por intelectuais que cada vez mais se dedicaram ao estudo de aspectos particulares das artes, da filosofia ou da política, como foi o caso de Hans Baron e de Eugênio Garin.
No entanto a especialização das abordagens não impediu que a inspiração inaugural dos estudiosos do século 19 continuasse a ser explorada, como prova o abrangente "The Civilization of Europe in the Renaissance", de John Hale, um dos grandes especialistas vivos da questão, publicado em 1993.
Podemos dizer que "Modernas Tradições" retoma a herança dos pioneiros, mas a transforma ao contato com as análises mais atuais. De fato, os vários capítulos que compõem o livro tratam de temas tão variados quanto a descoberta dos novos mundos, as utopias do século 16, a nova antropologia, o retorno da herança romana e suas relações com o cristianismo, a teoria da perspectiva e a revolução artística levada a cabo por autores como Leonardo da Vinci e Michelangelo.
Só isso já bastaria para mostrar que o livro pretende oferecer uma introdução ao leitor, um panorama vasto e diversificado da época, o que é útil não apenas para iniciantes, mas também para aqueles que possuem um interesse mais direcionado a um dos aspectos abordados pelos autores.

Painel interpretativo
A referência, entretanto, à variedade dos temas não deve nos equivocar. Os autores não partem de uma convicção única sobre o significado do Renascimento e não partilham a mesma adesão a uma filosofia da história, que pudesse servir de pano de fundo a todas as análises. Diferentemente dos manuais e das grandes sínteses, o livro oferece um painel de possibilidades interpretativas, que ao final acabam dando ao leitor a idéia de que a discussão sobre a natureza do Renascimento é ainda uma questão aberta e de grande atualidade.
O primeiro capítulo, assinado por Berenice Cavalcanti, serve como uma grande introdução. Partindo do resgate operado pelos renascentistas do patrimônio cultural e teórico da Antiguidade, ele tem seu momento forte na associação que a autora faz entre a modificação da geografia do mundo, resultado das grandes navegações, e as transformações acontecidas na cartografia das idéias. Se a apresentação do tema da imitação dos antigos é algo sumária na primeira parte, a ligação entre as viagens marítimas e o que a autora chama de "viagens imaginárias" das utopias é instigante.
Abandonando uma certa tendência da crítica em associar o fenômeno das utopias à busca pela cidade ideal dos antigos e dos medievais, a autora consegue mostrar que o uso da imaginação era uma ferramenta poderosa não apenas para aproximar o possível do ideal, mas, sobretudo, para expandir os horizontes do humano.
O capítulo de Silvia Patuzzi retoma a questão do resgate da Antiguidade e oferece uma espécie de diário de bordo da travessia que liga as idéias dominantes no final da Idade Média e o mundo moderno. Menos preocupada em mostrar a originalidade e as diferenças entre as concepções do passado e os autores que estuda, a autora é precisa em fornecer as informações sobre as escolhas de rota que foram sendo tomadas ao longo dos séculos 15 e 16 e que acabaram produzindo o rosto do que hoje chamamos de Renascimento. Ao prestar atenção ao desenvolvimento do cristianismo no período, a autora contribui para uma compreensão muito mais refinada das transformações operadas pelo humanismo.
Marcelo Jasmin tem razão em centrar sua atenção na obra de Maquiavel, quando trata da relação entre historiografia e política. Afinal nenhum outro autor foi tão importante para estabelecer os vínculos entre seu tempo e a modernidade no tocante aos dois assuntos. Se Silvia Patuzzi mostra os laços do secretário florentino com o movimento de idéias que revolucionou o pensamento político, Jasmin explora a vertente mais conhecida, mas não menos importante, da originalidade do pensador em relação a seus contemporâneos.
A lamentar o fato de que, tendo feito referência ao nome de Francesco Guicciardini, o autor não tenha lhe dedicado mais atenção. Pouco conhecido fora dos círculos mais especializados, esse amigo de Maquiavel deu uma contribuição expressiva justamente no campo estudado pelo intérprete. Seria de muito proveito para o leitor brasileiro tomar contato com esse escritor.
O capítulo de João Masao, escrito com precisão e elegância, completa o diário de bordo iniciado por Silvia Patuzzi no segundo capítulo. Centrado nos problemas da arte e da criação artística, o texto fornece uma série de explicações para os caminhos que levaram os artistas do período a realizar uma das maiores revoluções que a arte ocidental já conheceu.
Ao interligar progressos técnicos, como os avanços no campo das idéias, o autor ajuda-nos a compreender de forma nuançada um desenvolvimento que tende a ser visto pela ótica de uma evolução, culminando nas obras geniais de Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo. Ao contrário, o intérprete insiste em que o século 16 combinou a grandeza de suas descobertas com a angústia diante do desconhecido.
Nesse sentido, a questão do barroco, levantada no último capítulo, poderia ser um meio eficaz para mostrar como a modernidade foi gerada nas veredas de uma época luminosa e ao mesmo tempo sombria. Centrado no século 17, o texto não cumpre essa função, como também não funciona como uma conclusão, que está ausente no livro. Da mesma forma, a reunião das diversas bibliografias no final, acrescidas de obras clássicas de referência, seria útil para o leitor, como certamente serão os índices e o glossário apresentados.
"Modernas Tradições" é uma obra de introdução ao Renascimento e dá uma contribuição inegável para os estudos de um período pouco visitado pelos especialistas brasileiros.

Newton Bignotto é professor de filosofia política na Universidade Federal de Minas Gerais e autor de, entre outros, "O Tirano e a Cidade" (Discurso Editorial).

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