terça-feira, 25 de junho de 2013

O QUE É SER ANARQUISTA


 
O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas da lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresia e sanções. É antes um conjunto de doutrinas e princípios cujos postulados básicos são convergentes, e que está sempre aberto a novas contribuições. Estes postulados básicos formam um fundo comum que, no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias, são o anarquismo propriamente dito.
O sentido de justiça e equidade, a revolta contra a exploração econômica do homem pelo homem e o combate ao Estado – com a consciência plena de que é a instituição que garante o regime de exploração e privilégio como fonte geradora de opressão e violência sobre o indivíduo e a coletividade – têm a liberdade como um dos mais altos valores humanos; liberdade e autonomia plenas a partir do indivíduo para a associação livre fundada na solidariedade e no apóio mútuo.
O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo, combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano.
Todo o ser humano tem a necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidades – em termos políticos, tem o direito – de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu potencial criativo seria lógico considerar-se uma monstruosidade. No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um absurdo, somente os anarquistas.
A descentralização, a autonomia e o federalismo são as vias pelas quais o anarquismo propõe a construção de uma nova sociedade. A descentralização máxima é o indivíduo. Da plena liberdade e autonomia individuais para a organização segundo os interesses e as necessidades, para as instâncias mais complexas até a completa malha social, os princípios não se alteram. Começando pelo indivíduo como unidade celular da sociedade até o mais amplo tecido social, o princípio da autonomia está presente. Os interesses comuns de diferentes níveis e setores – profissionais, de produção de bens, planejamento, geográficos[1], etc. – resolvem-se pelas federações que as necessidades práticas indicarão. A união de interesses com objetivos comuns, sem quebra de autonomia, é a característica básica do federalismo. Assim, as uniões locais de organizam em nacionais até confederações internacionais.
Em todos os atos, ante todos os fatos, o ser humano analisa, estima, aceita ou repudia o que se dá, o que acontece, formulando um juízo de valor. O tema é vastíssimo e seu estudo pertence à ontologia[2]. Apenas alguns conceitos para nos situarmos enquanto anarquistas. As vias de nosso conhecimento são a sensibilidade, a intelectualidade e a afetividade. Temos portanto uma intuição sensível, uma intuição intelectual e uma intuição páthica (do grego afeto, paixão). Há uma interatuação entre elas. Podemos racionalizar um sentimento de simpatia ou de antipatia[3], como podemos, através de uma dedução lógica, provocar a nossa santa fúria.
Quase todos colocam os valores numa escala hierárquica: uns num grau mais elevado que outros[4]. O filósofo alemão MAX SCHELER (1874-1928) apresenta a seguinte ordem, que não é aceita por todos:
Valores religiosos (santo e profano)
Valores éticos (justo e injusto)
Valores estéticos (belo e feio)
Valores lógicos (verdade e falsidade)
Valores vitais (forte e fraco)
Valores utilitários (conveniente e inconveniente)
Há variáveis, na subordinação dos valores, que se refletem de pessoa para pessoa ou até na mesma pessoa conforme o momento, mas sempre, na maioria das circunstâncias que a vida oferece, um prevalece sobre os outros[5]. Para o anarquista todos os valores se subordinam aos valores éticos, porque todos os atos humanos são passíveis de juízo ético.
O que é ser anarquista? Ser anarquista é antes de tudo uma atitude ética. Ante a iniqüidade, um ímpeto de justiça leva o anarquista a romper racional e afetivamente com o sistema vigente. Romper com a autoridade é afirmar a própria independência humana. Ser anarquista é procurar realizar no quotidiano a plenitude do ato humano, e o ato humano só o é quando livre, fundado na vontade, no conhecimento dos fins e no poder de realizá-lo. Contra toda a desmoralização do ato humano, a luta anarquista não tem limites. Ser anarquista não tem limite. Ser anarquista é lutar pela liberdade de todos, tendo a consciência de que a liberdade dos outros aumenta a minha própria e não a limita.
As paixões humanas [6] sempre foram objeto de estudo dos anarquistas. Apenas para ilustrar, vamos citar as teses apresentadas no 2°. Certâmen Socialista, realizado no dia 10 de novembro de 1889 no palácio de Belas Artes de Barcelona.
Proposta do Círculo Operário de Barcelona: "Suponho uma sociedade verdadeiramente livre ou anarquista e sendo a instrução elevada ao grau máximo concebível, podem ser causas de desarmonia social as chamadas paixões humanas?" Foram apresentados seis trabalhos escritos sobre tal questão. No primeiro, apresentado por Teobaldo Nieva, é destacado o papel das paixões no desenvolvimento físico e mental da humanidade e como as religiões, as correntes filosóficas, os poderes político e econômico têm sufocado esta energia criadora. O autor se estende na crítica às religiões, a todas as formas autoritárias e repressivas e conclui que, apesar de tudo, elas continuam a ser a seiva vivificante da vida. As paixões são definidas e, ao contrário dos pecados capitais que são sete (orgulho, avareza, luxúria, etc.), as paixões são infinitas: o amor sexual, a paixão pelo belo, pela arte, pelo bem comum, etc. E, na sua essência, as paixões são benéficas, libertam.
 
Jaime Cobero( 1926- 1998
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário