sábado, 1 de junho de 2013

PRINCIPIUM INDIVIDUATIONIS


Ricardo Franco de Lima
Arquétipos e desenvolvimento psíquico
Resumo
A individuação é o processo arquetípico que representa a jornada do ego em busca do Self. O presente artigo aborda os principais arquétipos do inconsciente coletivo como elementos que estruturam o crescimento psíquico e guiam a individuação.

“(...) os conteúdos do inconsciente desencadeiam um desenvolvimento ou uma verdadeira metamorfose da psique” Jung


1. INTRODUÇÃO

Jung (1989, p. 19) inicia o prólogo de sua autobiografia com a afirmação: “minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”. Essa frase resume aquilo que ele dedicou toda a sua vida e representa sua maior contribuição: o estudo do inconsciente.
Esse estudo ocorreu através da análise das produções simbólicas das civilizações, de seus pacientes e principalmente, pelo submetimento aos desígnos de seu próprio inconsciente.
O período de sua vida após o rompimento com Freud que ele chamou de “confronto com o inconsciente” foi particularmente importante, pois segundo ele, foi um período de desorientação em que buscava sua própria posição teórica e de vida (sua visão de homem e mundo) (ibid, p. 152).
A importância que as imagens – símbolos tiveram em sua vida pode ser vista na seguinte passagem:
“Os anos durante os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante da minha vida e neles todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início e os detalhes posteriores foram apenas complementos e elucidações. Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que inicialmente me inundara: era a matéria – prima para a obra de uma vida inteira” (ibid., p. 176).

2. PRINCIPAIS CONCEITOS

Mas como Jung definiu o inconsciente ?
De acordo com sua teoria, há dois tipos de inconscientes: Inconsciente Pessoal e Inconsciente Coletivo. O primeiro abriga eventos pessoais e cotidianos que são reprimidos ou simplesmente esquecidos. Também fazem parte dele, percepções subliminares às nossas sensações. Ele é dinâmico e exerce uma função compensatória à consciência. (JUNG, 1985). Esse conceito aproxima-se do que Freud compreendeu como inconsciente.
O Inconsciente Coletivo representa a dimensão universal do indivíduo. É constituído por conteúdos herdados e que nos ligam simbolicamente à toda a humanidade. Esses conteúdos são imagens primordiais chamadas de Arquétipos (ibid.). A elaboração desse conceito foi um dos grandes divisores de águas entre as teorias de Jung e Freud, pois Jung aprofunda a visão de inconsciente, resgatando as dimensões simbólica e religiosa.
Os arquétipos são princípios, formas sem conteúdo. Segundo Jung (1989, p. 352), eles são “vazios em si”, que serão preenchidos pelas experiências de vida de cada um. Por não possuírem uma forma, eles manifestam-se através de símbolos ou comportamentos. De acordo com Santos (1976, p. 26), eles constituem “possibilidades de o indivíduo agir de uma certa maneira diante de certas situações da vida”. Por exemplo, uma mulher grávida “preencheria” com suas experiências maternas o arquétipo maior de Mãe.
Jung (1989) afirma que esse conceito surgiu através das observações dos mitos, contos, fábulas universais, pois eles abordam temas e representações específicas que apareceram em diferentes povos de todas as partes do mundo. Um exemplo disso ocorre com o conto “As orelhas do Rei” que trata da sombra (defeitos, medos, etc.) presente por trás do herói, possui correspondentes como: as histórias judaicas “O Sonho do Rei” e “O Avarento”, o conto russo “O Czar e o Anjo”, o conto indiano “O Rei que queria ser mais forte do que o destino” ou “Sonhos”, da China.
Segundo Magalhães (1984) seria difícil distinguir ao certo os dois tipos de inconsciente, pois todos os elementos que surgem à consciência possuem algo de arquetípico. Os arquétipos per se não são acessíveis à consciência e sim suas representações ou imagens – símbolos.
Podemos afirmar que as imagens – símbolos atuam como uma ponte de acesso ao nosso inconsciente coletivo. No entanto, elas podem acumular-se no inconsciente pessoal e ligar-se à emoções, sentimentos, vivências positivas, auxiliando o desenvolvimento psíquico ou então, à conteúdos reprimidos, formando complexos (MAGALHÃES, 1984).
Os complexos possuem em sua estrutura, um arquétipo atrelado à conteúdos com elevada carga afetiva que consome grande parte da energia psíquica. É a nossa inconsciência (ignorância) dele que lhe fornece essa carga energética. Quando são mobilizados por conteúdos internos (lembranças, sensações, sentimentos) ou externos (situações específicas), os complexos podem constelar à consciência, influenciando diretamente os comportamentos do indivíduo (ibid.).
Segundo Lindmeier (2000), além de integrarem os complexos, as imagens - símbolos podem ser projetadas para pessoas e objetos do ambiente, limitando nossa percepção. Um indivíduo com um complexo paterno, em função de um trauma, por exemplo, pode projetar essa imago paterna para indivíduos do sexo masculino, manifestando raiva ou rejeitando essas figuras. Ou ainda, pode sentir-se profundamente mobilizado por situações, imagens, histórias, etc, que expressem a relação entre pai e filho.
3. PRINCIPIUM INDIVIDUATIONIS
Segundo Jung (1986), o psiquismo está em constante transformação. Ele chamou de Individuação, o processo universal e arquetípico de mudança e crescimento psíquico.
De acordo com Gorresio (1997, p. 113), esse conceito (principium individuationis) é antigo no pensamento filosófico, ligando – se ao filósofo neoplatônico romano Plotino (205 – 262 d.C.). Contudo, foi Jung quem evidenciou a alienação do homem em relação ao Si – Mesmo (Self – Selbst), vivendo em um constante estado de desarmonia interior. Nesse contexto, a individuação é a grande “jornada do ego na busca e no aumento do Si – mesmo”.
Ele expressa o processo de voltarmos a olhar para nós mesmos e reconhecermos como somos, o que gostamos e o que não, quais são os nossos defeitos, “demônios”, e qualidades. É a reconstrução de nossa identidade individual e universal, já que esse é um processo arquetípico.
Várias histórias, mitos, contos, retratam essa “inclinação” humana ao desenvolvimento psíquico e evolução espiritual. Dentre eles, podemos citar, por exemplo, a lenda do Santo Graal e o mito de Eros e Psique. De acordo com Bulfinch (1965), psique em grego significa borboleta ou alma. No mito, psique representa a purificação da alma, que após uma longa jornada cheia de infortúnios e sofrimentos, pode gozar da mais pura felicidade e tornar-se imortal.
A individuação é o deslocamento do centro da nossa consciência do Ego para níveis mais profundos do Self. De acordo com Von Franz (1964), é como se o ego existisse somente para auxiliar a realização da psique, não consistindo assim, nossa realização última. Dito de outra maneira, a estruturação do ego não é um fim em si, mas necessária para que ele nos auxilie em nosso desenvolvimento mais amplo. Nesse processo, devemos contar com a participação ativa de um ego estruturado que seja capaz de tomar decisões, cooperar e principalmente, escutar atentamente os símbolos (sinais) advindo do Inconsciente, pois eles que indicarão o caminho a seguir.
Segundo Gorresio (1997), isso representa o aspecto ético da individuação, pois o ego se propõe a observar os símbolos do inconsciente e ser fiel à eles. Esta seria uma grande questão da pós – modernidade. Estamos a maior parte do tempo voltados para o mundo externo, para o excesso e acúmulo de informações e negligenciamos os cuidados com o nosso corpo e nossa alma.
Tenzin Gyatso (2000, p. 58) reforça a dimensão social do desenvolvimento interior. Segundo ele “um ato ético é aquele que não prejudica a experiência ou a expectativa de felicidade de outras pessoas”. Seguir o caminho interior nos põe em contato com o Outro. Não estaremos “plenamente” realizados se aqueles que amamos sofrem.
4. ARQUÉTIPOS
Dentre os principais arquétipos anunciados por Jung, estão aqueles que configuram o psiquismo: a persona, a sombra, a anima, o animus e o Self.
A palavra Persona significa “máscara” e representa a forma como nos apresentamos ou somos levados a nos apresentar à sociedade. Assim, possui relações com o nosso Ego Ideal e nem sempre corresponde com nossa identidade real (MAGALHÃES, 1984). Segundo Jung (1985, p. 32) “como seu nome revela, ela é uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psique coletiva”.
A máscara é expressa por nossos títulos, ocupações, papéis, nomes que são necessários e dizem respeito a nós mesmos, no entanto, não em um nível mais profundo. A identificação extrema do indivíduo com esses conteúdos ou ainda com os complexos constelados, pode levá – lo ao que Jung (1986) chamou de Inflação.
Outro arquétipo o qual no deparamos é o da Sombra. Ela expressa tendências e impulsos que podem ser positivos ou negativos e que negamos em nós mesmos. Geralmente são defeitos e impulsos que não aceitamos como sendo nossos e, portanto, projetamos em outras pessoas (JUNG, 1986).
“Portanto, seja qual for a forma que tome, a função da sombra é representar o lado contrário do ego e encarnar, precisamente, os traços de caráter que mais detestamos nos outros” (VON FRANZ, 1964, p. 173). Por isso, ela pode conter forças vitais positivas que devemos elaborar e assimilar ao invés de reprimirmos. Caberia ao Ego realizar essa diferenciação.
Com essa dimensão arquetípica, compreendemos que a visão de homem na psicanálise é a de um ser com tendências conflitivas (opostas), com aspectos positivos e negativos. No entanto, esse conflito não é visto como um impedimento à realização. Pelo contrário, o ser humano realiza-se pela superação do conflito, pois este o impulsiona `a busca e à transcendência. Aceitar a sombra é aceitar a incerteza, aceitar que falhamos, que muitas vezes não conseguimos, não nos realizamos, nos frustramos, temos defeitos, não ajudamos ou compreendemos ou outros, somos maus.
Esses aspectos dicotômicos também estão presentes nos arquétipos anima e animus. A Anima expressa as tendências psicológicas femininas na psique masculina. É a imago materna, já que a primeira projeção da anima do filho é em sua mãe (JUNG, 1986). Segundo Von Franz (1964, p. 177) são características da Anima, os “humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e, por fim, mas nem por isso menos importante, o relacionamento com o inconsciente”. Algumas funções da anima seriam: a escolha da esposa, sensibilização da mente masculina aos seus valores internos, auxiliar no discernimento interno e mediar o contato do ego com o Self.
Já o Animus são os aspectos masculinos na psique feminina, correspondendo ao Logos paterno. Suas características são: as convicções, opiniões, argumentos, etc. Atender ao seu animus, auxiliar a mulher a ter mais iniciativa, coragem e objetividade em suas decisões, características essenciais do Logos (palavra, verbo, criação) (ibid.).
Esses dois arquétipos mediam nossas relações com o Outro, a alteridade, a diferença, a realização da polaridade (feminino e masculino) (MAGALHÃES, 1984). Eles geralmente são projetados para os indivíduos do sexo oposto. Por esse motivo, a forma como lidamos com o sexo oposto nos fornecem indícios sobre como lidamos com as nossas características femininas e masculinas.
Por fim, temos o Self (Si – Mesmo, Selbst) que é o arquétipo central e regulador do psiquismo. É a totalidade psíquica, integrando todos os arquétipos e característica ao seu redor. Jung (1986, p. 29) afirma que “o conceito de totalidade (...) é hierarquicamente superior à sizígia (anima/ aminus) e à sombra, mas mantém uma relação com estes já que a sizígia representa simbolicamente a união dos opostos”, condição indispensável à individuação.
Sendo o “núcleo mais profundo da psique”, o Self é expresso simbolicamente em sonhos, contos, histórias, etc, sob diferentes formas. Na mulher pode surgir como uma figura feminina superior como uma sacerdotista, uma feiticeira, etc. No homem, como um guru, um velho sábio, etc. além disso pode aparecer sob a forma de um ser gigante que contém em si todo o universo, sob seres andróginos, animais sagrados, uma pedra preciosa (como a pedra filosofal da alquimia, lapis philosophorum), etc. Ele pode se manifestar em nossos sonhos, nos momentos críticos e que devemos tomar importantes decisões ou que períodos de transição (VON FRANZ, 1964, p. 196).
Um símbolo bastante significativo do Self é a mandala.                 As mandalas (sânscrito, círculo) são figuras circulares e simétrias, considerados um dos símbolos mais antigos encontrados em manifestações artísticas e religiosas de diferentes povos e épocas. Jung (1986, p. 30) percebeu que eles apareciam no processo psicoterapêutico de pacientes, em momento de desorientação e desorganização psíquicas. “Eles (os pacientes) exocizam e esconjuram sob a forma de círculos mágicos, as potências anárquicas do mundo obscuro, copiando ou girando uma ordem que converte o caos em cosmos”.
Por ser superior ao Ego, o Self também foi chamado de Deus, Daimon, Voz Interior, que fornece as direções, a energia (“o impulso ético”) para a individuação (GORRESIO, 1997, p. 115).
Ao contrário do que possamos pensar, a individuação não equivale ao individualismo, ou seja, a distinção do homem enquanto uma absoluta individualidade destacada do contexto. A jornada da individuação nos põe em contato com nossos aspectos internos e à medida que aprofundamos esse contato, percebemos a profunda integração existente entre o indivíduo e o contexto. Desse modo, o crescimento psíquico nos põe em contatos mais estreitos com aqueles que nos cercam, pois percebemos que as distinções, em um extremo, não existem. Por isso, podemos pensar que o engajamento social e a assunção da responsabilidade pelo meio são conseqüências desse processo, pois tudo é visto como em um grande sistema de inter-relações.
“(...) e o fim de vossa viagem será chegar ao lugar de onde partimos. E conhecê-lo então pela primeira vez”
T.S. Eliot

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula. História de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 1965.


GORRESIO, Z. M. P. A ética da individuação: um estudo sobre a ética do ponto de vista da psicologia junguiana. Hypnos, v. 2, n. 2, p. 112 – 118, 1997.


JUNG, C, G. O eu e o inconsciente. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

______. Aion. Estudos sobre o simbolismo do si – mesmo. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986.

______. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.


LINDMEIER, K. Avaliação experimental da interferência dos arquétipos junguianos no fenômeno parapsicológico da clarividência. Psico – USF, v. 5, n. 2, p. 25 – 63, jul./ dez., 2000.


MAGALHÃES, L. M. A. A teoria psicológica de Jung: principais conceitos. In: REIS, A.O.A.; MAGALHÃES, L.M.A. & GONÇALVES, W.L. Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung. São Paulo: EPU, 1984 (Temas básicos em Psicologia, v. 7). p. 132 –162.


SANTOS, C. C. Individuação Junguiana. São Paulo: Sarvier, 1976.


TENZIN GYATSO (Dalai Lama). Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.


VON FRANZ, M. L. O processo de individuação. In: JUNG, C. G. (org). O homem e seus símbolos. 5ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.


Ricardo Franco de Lima
Graduando em Psicologia (9º semestre) pela Universidade São Francisco –
Itatiba/ 2004

2 comentários:

  1. 'Segundo Sócrates, o que inspirava uma pessoa era seu daimon ou estado de consciência tutelar; para os poetas da Antiguidade, esta ou aquela musa que, nas palavras de Hesíodo, ''ampliam a mente do homem com conhecimento, e fazem sua língua falar desde os céus''. Para os primeiros filósofos e os teóricos da medicina dos tempos greco-romanos, a inspiração e a expansão da consciência eram o Pneuma, a alma e a substância indiferenciada do universo. Para Platão e Aristóteles era o Nous, ou a Razão interior. Segundo os estoicos o deus imanente era chamado Logos. O Logos ingressa na cristandade como ''O VERBO'', uma tradução muito pobre e parcial do original, que possui muitos significados. ''No principio era o Verbo...''. Do grego passamos ao latim e á palavra Spiritus, que, como Pneuma, significa 'alento'' e é, como sua etimologia sugere, a ‘’fonte’’ da ''inspiração''. Havia um Spiritus de los dioses, de onde vinha a ''Inspiratio Divina''. Havia um espírito impessoal ou alento de vida (Atman no sânscrito:’’isso é você’’(Upanishades)). Y finalmente, após a Cristandade, estava o ESPÍRITO, a terceira pessoa da Trindade. Mescladas sem coerência nenhuma, essas concepções variadas ((médicas, místicas, filosóficas, teológicas, espirituales) foram utilizadas, ao longo dos séculos, para dar conta de explicar fatos e feitos diretamente originados pela inspiração. Hoje preferimos falar de "'O Inconsciente'' e ''erupções no consciente de matéria sublimar''. As palavras têm uma aura poderosamente científica; mas que expliquem as coisas mais satisfatoriamente que Espírito, Logos, Pneuma e Daimon, é discutível.




    Aldous Huxley

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  2. ''Os arquétipos per se não são acessíveis à consciência e sim suas representações ou imagens – símbolos''

    Na verdade, o arquétipos, assim como o tempo mítico (inconsciente coletivo) são acessíveis através dos estados de consciência ampliada ou expandida da meditação.

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