terça-feira, 9 de julho de 2013

"Não sou eu que falo, é o deus que fala por mim"

Poesia e hipertexto: construções de sentido
 
Vinícius José Alves
Mestrando em Estudos de Linguagens (CEFET-MG)
Em época de transformações radicais marcadas pela técnica e pela tecnologia e em que falta um ponto de vista mais conceitual, cabe avaliar novas linhas de pensamento para áreas como a poesia e o hipertexto. Em um mundo dominado pela mídia, torna-se necessário indagar: o que pode ser considerado poesia hoje? Para refletir sobre essa questão, mais do que respondê-la, faz-se necessário analisar o fenômeno do processo de criação e recepção da imagem poética, do estranhamento que fomenta o pensamento crítico e criativo para criar sentido. A poesia, tradicionalmente, não depende de meios eletrônicos para realizar a sua forma de virtualidade, já que advém de possibilidades múltiplas, criando imagens, sons, ritmos e sensações.
Poesia tem algo a ver com a narração de sonhos, a transformação de imagens em palavras. E é por meio da linguagem que isso pode ser feito. A linguagem é algo que põe em cena a ausência, mediando o mundo e o sujeito. O sujeito tem sua experiência poética é no exercício da linguagem. Na verdade, tanto a obra poética quanto o sujeito precisam da linguagem para existir. Em O livro por vir, Maurice Blanchot diz que a literatura vai para sua essência, que é o seu desaparecimento, já que no passado a arte estava mais próxima do absoluto, da glória. Então nos mostra um Mallarmé que se vira para uma busca obscura e contraria o pensamento dizendo "não sou eu que falo, é o deus que fala por mim", propondo assim o desaparecimento do sujeito, a neutralidade e, com isso, afirmando que arte, obra, verdade e linguagem são postas em causa e entram em um "espaço de risco".
Sobre o devir, Blanchot entende que tem de haver atração para a "obra" acontecer; para ele, "o que atrai o artista não é a obra, mas a busca da obra", pensamento compartilhado, segundo ele, por Valéry e Kafka quando dizem "toda minha obra não passa de exercício". Para Blanchot, a literatura tem de preencher os espaços não preenchidos. É preciso ler os processos formadores da escrita quanto às origens e destinação para que se atinja o "acontecimento", pois a literatura começa com a escrita; o que está escrito pertence à literatura, quem lê lê literatura, um espaço sagrado, fechado, espaço literário onde a escrita deve acontecer, acontecer na neutralidade ou na "experiência da neutralidade" de uma escrita branca, ausente e neutra. Blanchot lembra, ainda, que Mallarmé incita-nos a decifrar um enigma: "existe algo como as letras?", para em seguida responder "sim, a literatura existe, e se quiserem, sozinha, à exceção de tudo". Isso significa que a literatura só pode ser concebida a partir da experiência. Para ele "onde existe ritmo, há verso", só o verso tradicional pode vencer o acaso, fundar o espaço (abismo e fundamento da palavra), espaço este que é o que não permanece.
Michel Foucault disse um dia que a literatura é um "oco aberto no interior da linguagem"; seria um "espaço vazio", uma "brancura essencial" o espaço vazio da linguagem que não cessa de esvaziar a literatura. Propõe uma distinção entre literatura e linguagem: literatura seria nem obra nem linguagem, mas uma relação entre obra e linguagem. O autor de Pensamento do Exterior nega, recusa a literatura. Para ele, a obra é a distância que há entre a linguagem e a literatura, uma espécie de desdobramento, um simulacro. Tudo isso dentro de um espaço virtual, um espaço de troca onde não há nem literatura nem obra, mas uma troca incessante. A ausência e a iminência da literatura, que vai para sua distância. Para Foucault, o livro-obra é um assassino que assume o projeto frustrado de fazer literatura, em que a literatura encontra e funda o seu ser, "o livro de Mallarmé", com seus espaços vazios e suas brancuras essenciais como formas de devir. Senão, façamos a leitura de um dos poemas de Mallarmé, "Brisa Marinha", na tradução de Augusto de Campos:
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar.
Ò noites! Nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio.
Vamos agora comparar com "A lição de poesia", de João Cabral de Melo Neto:
Toda a manhã consumida
Como um sol imóvel
Diante da folha em branco
Princípio do mundo, lua nova
Já não podias desenhar
Sequer uma linha;
Um nome, sequer uma flor
Desabrochava no verão da mesa.
Percebe-se claramente que há nos versos uma representação da materialidade de escrever, ameaçada no limite da esterilidade. Nota-se o trabalho dos poetas em conhecer as palavras para dar origem à criação do poema, para preencher o "branco do papel" com a escrita. Vê-se como o poeta se sente estéril, já que nenhuma palavra "desabrocha" no papel; como o poeta não precisa da inspiração, passa então a utilizar a emoção, os gestos e sonhos para poder criar a sua "obra", dar visibilidade ao invisível, encerrar a sua criação e, a partir desse suposto encerramento, iniciar outras criações. A "literatura imagina sempre outra coisa": a obra e o segredo do devir. Blanchot afirma que a presença da poesia é uma presença por vir: vem para além do futuro e não cessa de vir quando aí está. A obra é a espera da obra. Só nessa espera se reúne a atenção impessoal que tem por caminhos e por lugar o espaço próprio da linguagem. Nesse espaço – o próprio espaço do livro –, jamais o instante se sucede ao instante de um devir irregular; o acontecimento que serve de ponto de partida ao poema não é dado como fato, é como que outra linguagem instituindo o novo jogo do espaço e do tempo. A obra literária está aí, indecisa entre a sua presença visível e a sua presença legível.
O escritor de Pena de Morte leva a pensar uma nova compreensão do espaço literário:
Se (um pouco apressadamente) admitirmos que Mallarmé sempre reconheceu no verso tradicional o meio de vencer o acaso <<palavra a palavra>>, veremos que há em Un coup de dés uma estreita correspondência entre a autoridade da frase central que declara invencível o acaso e a renúncia à menos arrojada de todas as formas: o verso antigo. A frase Jamais um lance de dados abolirá o acaso mais não faz que produzir o sentido da nova forma cuja disposição traduz (Blanchot, 1984, p. 245).
Sem dúvida, ao realizar uma leitura acurada das proposições de Mallarmé, nota-se a sua busca por um livro sem autor e sem leitor, não necessariamente fechado, mas sempre em movimento, que necessita de um mediador. "Ele é a leitura: o movimento de comunicação pelo qual o livro se comunica a si próprio – a princípio, segundo as diversas trocas físicas que as mobilidades das folhas tornam possíveis" (Blanchot, 1984, p. 254).
A partir de 1866, Mallarmé pensou e disse sempre a mesma coisa sobre o livro: que significava esta palavra? Em nota de pé de página, Blanchot explica:
O livro constituído de folhas móveis. Poderíamos mudá-las de lugar e lê-las, certamente não por uma ordem qualquer, mas segundo várias ordens distintas, determinadas por leis de permuta. O livro é sempre outro, muda-se e troca-se ao confronto da diversidade das suas partes, e assim se evita o movimento linear – o sentido único – da leitura. Além do mais, o livro, desdobrando-se de novo, dispersando-se e reunindo-se, mostra que não tem qualquer realidade substancial: nunca esta aí, incessantemente a desfazer-se enquanto se faz (p. 254).
Atualizando as noções de Mallarmé sobre o livro, podemos pensar em uma antecipação daquilo que entendemos como hipertexto? Parece-nos haver, sim, a possibilidade de perceber a contribuição e a influência do hipertexto no ato da escritura; o poeta se depara com o hipertexto. Que impactos poderá ter a prática do hipertexto em um gênero tradicional como a poesia? O primeiro impacto parece ser o do fluxo, quando a poesia movimenta-se para outras mídias, a expansão do texto literário, no caso para a hipermídia, passando a incorporar outras linguagens. O segundo impacto evidentemente é o do retorno ou refluxo, que advém das intervenções radicais sobre a subversão da produção poética ganhando novas possibilidades estruturais. O hipertexto, por ser um ambiente novo e único, permite a presença do leitor na história e a possibilidade de o poema ser observado por esse leitor. A poesia fica suscetível a mudanças contínuas no texto, dando-lhe fluidez, pluralidade e descontinuidade.
Debater sobre o hipertexto é debater sobre os assuntos da natureza das linguagens, ou, como diz Lúcia Santaella:
Um dos aspectos evolutivos mais significativo dessa conjuntura revolucionária está no aparecimento e rápido desenvolvimento de uma nova linguagem: a hipermídia. (...) Para ela convergem o texto escrito, o audiovisual e a informática. (Santaella, 2001, p. 390).
Trata-se, de fato, de uma linguagem em um novo tipo de meio ou ambiente de informação no qual ler, perceber, escrever, pensar e sentir adquirem características inéditas (Landow, 1994, p. 11). Como afirma, então, Santaella, "a hipermídia é uma linguagem interativa".
Pensando nesse debate sobre a poesia no hipertexto, com a intenção única de refletir acerca do tema, não podíamos excluir um pensamento fundamental de Octávio Paz, em O arco e a lira:
A dispersão da poesia em mil formas heterogêneas poderá nos levar a construir um tipo ideal de poema. O resultado seria um monstro ou um fantasma. A poesia não é a soma de todos os poemas. Por si mesma, cada criação poética é uma unidade autossuficiente. A parte é o todo. Cada poema é único, irredutível e irrepetível (Paz, 1982, p. 12).
Percebe-se na citação que a concepção de Octávio Paz é aquela na qual a experiência do poema é algo único e intransferível. É essa íntima relação entre o poeta e a sua poesia que vai ao encontro da concepção bandeiriana de poesia como fenômeno vital, inexorável e irreprimível, noções traduzidas nos versos de "Desencanto":
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
(...)
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
(...)
- Eu faço versos como quem morre.
"Lirismo informe", observou judiciosamente Mário de Andrade, "é o estado poético, mas não é poesia. Poesia é justamente o lirismo que se enformou". Nesse jogo envolvente podemos associar lirismo à poesia e linguagem ao hipertexto como formas de aproximação, legitimação e construção de sentidos? Indagações como essas devem ser formuladas nos dias de hoje?
As respostas não são fáceis e podem apenas ser pensadas como tentativas iniciais de compreensão precária.


Referências bibliográficas
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio d’água, 1984.
CAMPOS, Augusto. Mallarmé. In: Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1974.
FOUCAULT, Michel. Pensamento do exterior. Trad. Inês A.D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990
MELO NETO, João Cabral de. A biblioteca imaginária. São Paulo, Ateliê, 1996.
PAZ, Octavio. O Arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
SANTAELLA, Lúcia. Linguagens Híbridas. In: Matrizes da linguagem e pensamento – sonora, visual e verbal. São Paulo: Iluminuras, 2001.

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