sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Reconhecimento de padrões

 
Reconhecimento de Padrões, de William Gibson (tradução de Fábio Fernandes; Aleph; 416 páginas; 46 reais) – William Gibson é o inventor do cyberpunk, gênero que, ao combinar informática e tramas violentas, se tornou a vertente mais pop da ficção científica. O escritor americano consagrou-se como um criador de histórias futuristas com o romance Neuromancer (1984). Embora seja seu primeiro livro ambientado no presente, Reconhecimento de Padrões ainda guarda forte teor futurista, com sua trama povoada por criminosos tecnológicos que se deslocam entre Londres, Tóquio e Moscou. Cayce Pollard, a heroína, é uma espécie de profetisa do espaço virtual: ganha a vida antecipando tendências de consumo na internet.
 
Leia trecho
 
Capítulo 01
 
Cinco horas de jet lag em relação a Nova York e Cayce Pollard acorda em Camden Town como se seu ritmo circadiano interrompido fosse uma matilha de lobos maus trotando ao seu redor.
 
É aquela não-hora vazia e espectral, encharcada em ondas límbicas, o tronco cerebral reagindo de acordo, piscando exigências reptilianas inadequadas de sexo, comida, sedação, todas as alternativas anteriores, e, falando sério, nenhuma delas uma opção agora.
Nem sequer comida, porque a cozinha nova de Damien está tão despida de conteúdo comestível quanto as vitrines da Camden High Street estão vazias dos displays de seus designers. Muito bonitos, os gabinetes superiores apresentam uma parte dianteira de laminado amarelo-canário, os inferiores de compensado de alta densidade Appleply laqueado e sem manchas. Muito limpa e quase inteiramente vazia, a não ser por uma caixa contendo dois saquinhos ressecados de cereais Weetabix e umas bolsinhas soltas de chá de ervas. Absolutamente nada na geladeira alemã, tão nova que seu interior tem cheiro somente de frio e de monômeros de cadeia longa.
Agora ela sabe, com certeza absoluta, ao ouvir o ruído branco que é Londres, que a teoria de jet lag de Damien está correta: que sua alma mortal ficou a léguas de distância e está sendo rebobinada por algum cordão umbilical fantasma seguindo a trilha já desaparecida do avião que a levou até ali, a centenas de milhares de pés de altura sobre o Atlântico. Almas não conseguem se mover assim tão rápido, são deixadas para trás, e precisam ser aguardadas, no desembarque, como bagagens que se perderam.
Ela se pergunta: isso vai ficando pior com a idade, essa hora sem nome fica mais profunda, mais nula, e seu efeito é ao mesmo tempo mais estranho e menos interessante?
Anestesiada ali na semi-escuridão, no quarto de Damien, debaixo de um negócio prateado da cor daquelas luvinhas de fogão, que seus criadores provavelmente nunca imaginaram que alguém pudesse usar para dormir. Ela estava cansada demais para procurar um cobertor. Os lençóis entre sua pele e o peso daquela colcha industrial são sedosos, feitos com um tipo luxuoso de fibra, e exalam um cheiro suave de, ela deduz, Damien. Mas não é ruim. Na verdade, não é desagradável; qualquer ligação física com um companheiro mamífero parece um bônus a essa altura do campeonato.
Damien é um amigo.
As pecinhas menino-menina do Lego deles não se encaixam, diria ele.
Damien tem trinta anos. Cayce é dois anos mais velha, mas ele tem um certo módulo de imaturidade cuidadosamente fabricado com isolamento, alguma coisa tímida e teimosa que assustava o pessoal do dinheiro. Ambos são muito bons no que fazem, mas parece que nenhum dos dois tem a menor idéia de por que isso ocorre.
Coloque Damien no Google e você encontrará um diretor de videoclipes e comerciais. Coloque Cayce no Google e encontrará "coolhunter", caçadora de tendências, e se você procurar com mais atenção vai encontrar sugestões de que ela é uma "sensitiva" de alguma espécie, uma rabdomante no mundo do marketing global.
Embora a verdade, Damien diria, esteja mais próxima da alergia, uma reatividade mórbida e às vezes violenta à semiótica do mercado.
Agora Damien está na Rússia, evitando renovação e alegando que está rodando um documentário. Cayce sabe que a tênue atmosfera que o local tem hoje de ligeiramente usado é trabalho de um assistente de produção.
Ela rola para fora da cama, abandonando a paródia sem sentido do ato de dormir. Tateia à procura das roupas. Uma camiseta masculina pequena e preta da Fruit of the Loom, completamente amarrotada, um pulôver cinza-clarinho com gola em V adquirido num lote de meia dúzia das mãos de um fornecedor de uniformes para escolas preparatórias na Nova Inglaterra e um par novo e acima de seu tamanho de Levi’s 501, cada marca registrada removida cuidadosamente. Até mesmo os botões dessa calça foram limados até ficarem lisos, sem nenhuma marca, por um chaveiro coreano intrigado, no Village, há uma semana.
O interruptor da luminária de chão italiana de Damien parece alienígena: um clique diferente, projetado para conter uma voltagem diferente, uma eletricidade britânica estrangeira.
Agora em pé, depois de vestir os jeans, ela endireita o corpo e estremece.
Mundo-espelho. As tomadas dos aparelhos eletrodomésticos são enormes, com três pólos, para uma espécie de corrente que nos Estados Unidos só alimenta cadeiras elétricas. Os carros são ao contrário do lado de dentro: a esquerda fica à direita; os aparelhos telefônicos têm um peso diferente, um equilíbrio diferente; as capas dos paperbacks parecem dinheiro australiano.
Pupilas dolorosamente contraídas pelo brilho solar da luz halógena, ela aperta os olhos para se enxergar em um espelho de verdade, encostado em uma parede cinza, esperando que o pendurem, onde ela vê um boneco desconjuntado de pernas pretas, cabelo dormido espetado para cima igual a uma escova de vaso sanitário. Ela faz uma careta para ele, pensando por algum motivo em um namorado que insistia em compará-la à foto de Jane Birkin nua tirada por Helmut Newton.
Na cozinha, ela abre uma torneira que deixa a água passar por um filtro alemão e cair dentro de uma chaleira elétrica italiana. Brinca com os interruptores, um na chaleira, um na tomada do aparelho, outro na tomada de parede. Inspeciona com neutralidade a vastidão amarelo-canário de gabinetes laminados enquanto deixa a água ferver. Um saquinho de algum substituto para chá californiano importado em uma caneca branca grande. Derrama água fervendo.
Na sala principal do flat, ela descobre que o fiel Cube de Damien está ligado, mas no modo sleep, o brilho de luz noturna de seus interruptores estáticos pulsando suavemente. A ambivalência de Damien para com o design se revela aqui: ele não admite que decoradores passem daquela porta a menos que basicamente concordem em não fazer aquilo que eles fazem, mas ele se agarra a este Mac pela maneira como se pode virá-lo de cabeça para baixo e remover suas entranhas com um pequeno puxador de alumínio mágico. Como o sexo de uma das garotas-robô em seu vídeo, agora que ela parou para pensar no assunto.
Ela se senta na cadeira de espaldar alto da estação de trabalho dele e clica no mouse transparente. Infravermelho piscando na madeira clara da longa mesa armada sobre cavaletes. O browser aparece. Ela digita Fetiche:Filme:Forum, que Damien, determinado a evitar contaminação, jamais colocará entre seus bookmarks.
A página da frente se abre, familiar como a sala de estar de um amigo. Um fragmento de frame do No 48 serve de fundo, escuro e quase monocromático, sem personagens à vista. Esta é uma das seqüências que gera comparações com Tarkovski. Na verdade, ela só conhece Tarkovski de stills, embora uma vez tivesse caído no sono durante uma exibição de Stalker, descendo em uma panorâmica infinita, a câmera apontada direto para baixo, em close, em uma poça de água enlameada sobre um piso de mosaicos arruinado. Mas ela não é uma daquelas pessoas que acham que vão ganhar muita coisa analisando as pretensas influências do cineasta. O culto ao filme está fervilhando com subcultos, cada qual alegando uma influência possível. Truffaut, Peckinpah... O pessoal do Peckinpah, que se encaixa na categoria dos mais improváveis, ainda está esperando alguém sacar alguma arma.
Então ela entra no fórum propriamente dito, automaticamente escaneando com os olhos os títulos dos posts e os nomes dos que postaram nos tópicos mais novos, procurando amigos, inimigos, novidades. Mas uma coisa está clara: não apareceu nenhum filme novo. Nada desde aquela panorâmica da praia, e ela não é partidária da teoria de que aquilo é Cannes no inverno. Fãs franceses do filme foram incapazes de traçar uma correspondência com o local, apesar das incontáveis horas gravando panorâmicas em cenários aproximadamente semelhantes.
Ela também vê que seu amigo Parkaboy está de volta a Chicago, após férias viajando de trem pela Amtrak até a Califórnia, mas quando abre o post dele, vê que ele está apenas dizendo oi, literalmente.
Ela clica em Responder, declarando-se como CayceP.
Oi Parkaboy. Boa noite.
Quando volta à página do fórum, seu post já está lá.
Agora isso é uma maneira, aproximadamente, de estar em casa. O fórum se tornou um dos lugares mais consistentes em sua vida, como um café familiar que existe em algum lugar fora da geografia e além das zonas de tempo.
Existem talvez umas vinte pessoas que postam regularmente no F:F:F, e um número muito maior, não contabilizado, de lurkers. E neste exato instante existem três pessoas no chat, mas não há como saber exatamente quem são até você entrar, e ela não acha a sala de chat assim tão confortável. É estranho até mesmo com amigos, como se você estivesse sentado em um porão escuro como breu conversando com pessoas a cinco metros de distância. A velocidade louca e a brevidade das linhas no tópico, além da sensação de que está todo mundo falando ao mesmo tempo, com objetivos contrários uns aos outros, a deixam travada.
O Cube exala um suspiro suave e faz sons subliminares com seu drive, como um carro esporte vintage mudando de marcha em uma rodovia distante. Ela experimenta um gole do substituto de chá, mas ainda está muito quente. Uma luz cinza e indeterminada está começando a preencher o aposento no qual ela está, revelando uma coleção de Damieniana que sobreviveu ao recente remake.
Robôs parcialmente desmontados estão encostados numa das paredes, dois deles, torsos e cabeças, como elfos, decididamente bonecos de testes de impacto. Aquelas são unidades de efeitos de um dos vídeos de Damien, e ela se pergunta, dado seu humor naquele momento, por que ela as acha tão reconfortantes. Provavelmente porque são genuinamente bonitas, ela deduz. Expressões otimistas do feminino. Nada de sci-fi kitsch para Damien. Coisas oníricas à meia-luz do amanhecer, os peitinhos delas brilhando, o plástico branco reluzindo de leve como mármore antigo. Mas de um fetiche personalizado; ela sabe que ele mandou fazê-las a partir do molde do corpo de sua antepenúltima namorada.
O Hotmail baixa mais quatro mensagens, nenhuma das quais ela tem vontade de abrir. Uma de sua mãe, três spams e também Aumente Drasticamente o Tamanho de Seus Seios.
Deleta os spams. Toma um gole do substituto de chá. Observa a luz cinza ficando aos poucos com mais cara de dia claro.
Depois de algum tempo, ela vai ao banheiro recém-renovado de Damien. Tem a sensação de que é o lugar onde ela poderia tomar uma ducha antes de visitar uma sonda esterilizada da nasa, ou como se estivesse saindo de algum cenário de Chernobyl para ter seu traje de chumbo removido por dois técnicos soviéticos com trajes de borracha, que então esfregariam seu corpo com escovas de cabos longos. As torneiras do chuveiro podem ser ajustadas com os cotovelos, preservando a esterilidade das mãos limpas.
Ela tira o suéter e a camiseta e, usando as mãos, não os cotovelos, abre o chuveiro e ajusta a temperatura.
Quatro horas depois ela está em um reformer num estúdio de Pilates em um beco de classe alta chamado Neal’s Yard, o carro e o motorista da Blue Ant esperando na rua, seja lá qual for o nome dela. O reformer é uma peça de mobiliário cheia de molas muito comprida e muito baixa, ligeiramente sombria e com cara de móvel tipo República de Weimar, sobre a qual ela se reclina agora, fazendo a posição em V contra a barra para os pés na ponta. A plataforma acolchoada sobre a qual ela repousa roda para a frente e para trás ao longo de trilhos de cantoneiras de ferro dentro da estrutura, as molas rangendo suavemente. Dez assim, dez com os dedos dos pés, dez a partir dos calcanhares... Em Nova York ela faz isso numa academia freqüentada por profissionais de dança, mas ali em Neal’s Yard, naquela manhã, ela parece ser a única cliente. O lugar aparentemente acabou de ser inaugurado, e talvez esse tipo de coisa ainda não seja tão popular aqui. Tem também aquela ingestão de substâncias arcaicas do mundo-espelho, ela pensa: as pessoas fumam e bebem como se isso fosse bom para elas, e parece que ainda estão em algum tipo de lua-de-mel com a cocaína. Ela leu que a heroína aqui está mais barata do que nunca, o mercado ainda está empanturrado com o dumping inicial de carregamentos de ópio do Afeganistão.
Assim que termina nos dedos dos pés, ela passa para os calcanhares, virando o pescoço para conferir se os pés estão alinhados corretamente. Ela gosta de Pilates porque não é meditativo da maneira que ela acha que o yoga é. Aqui, você precisa manter os olhos abertos e prestar atenção.
Essa concentração contrabalança a ansiedade que ela está sentindo agora, o nervosismo pré-trabalho que ela não vivenciava já havia algum tempo.
Ela está ali por conta da Blue Ant. Relativamente pequena em termos de equipe permanente, distribuída globalmente, mais pós-geográfica do que multinacional, a agência desde o começo se anunciou como uma forma de vida de grande agilidade em uma ecologia publicitária de herbívoros lentos e desajeitados. Ou talvez como alguma forma de vida não baseada em carbono, que saltou totalmente pronta da cabeça sem rugas e irônica de seu fundador, Hubertus Bigend, um suposto belga que parece Tom Cruise depois de uma dieta à base de sangue de virgens e chocolates com trufas.
A única coisa que Cayce gosta em Bigend é que ele parece não ter a menor noção de que seu nome parece ridículo para todo mundo, sempre. Caso contrário, ela o teria achado ainda mais insuportável do que já acha.
É inteiramente pessoal, embora num grau apenas superficial.
Ainda nos calcanhares, ela dá uma olhada no relógio de pulso, um clone coreano de um Casio G-Shock antigo, a caixinha plástica sem nenhum logotipo com uma raspagem feita por um microabrasivo japonês. Ela tem que estar nos escritórios da Blue Ant no Soho em cinqüenta minutos.
Ela joga um par de almofadinhas de espuma verde moles sobre a barra e posiciona os pés cuidadosamente, levanta-os sobre sapatos de salto agulha invisíveis e começa seu elever.
 
 
 

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