quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A narrativa que constitui mundos (a literatura de Mircea Eliade)


http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/2820/3549

Vitor Chaves de Souza

Introdução

Mircea Eliade, além de pesquisador e historiador da religião, foi um escritor


romancista. Inspirado no trabalho polivalente de Voltaire (ELIADE, 1990a, p. 70)1,


Eliade utilizou diversas ferramentas da linguística para realizar suas obras: escreveu

livros acadêmicos, monografias, novelas, romances, diários e contos. Enquanto escritor,

Eliade foi um artista. Logo cedo descobriu uma dupla vocação: a de acadêmico e de

escritor literário. "Enquanto jovem", registrou Eliade, "eu percebi que independentemente

de ser cativado pelos estudos orientais e história das religiões, eu nunca seria capaz de


abandonar a literatura"2 (ELIADE, 1985, p. 172). Eliade, de fato, ficou conhecido



internacionalmente por conta de sua vasta obra acadêmica – a qual lhe dera status e

reconhecimento como um dos nomes mais importantes da pesquisa em arquivos

religiosos. Raffaele Pettazzoni, um dos pioneiros da Religionswissenschaft, afirmou que

graças a Eliade a história das religiões "é atualmente compreendida, de uma maneira mais

vasta e completa, na Itália do que em muitos outros países europeus" (PETTAZZONI

apud GUIMARÃES, 2000, p. 89). Eliade influenciou, por exemplo, filósofos como Kurt

Hübner e sua explicação do pensamento mítico. Devido a importância de Eliade para o

estudo das religiões e sua inestimável contribuição, também, à literatura (que é ainda

pouco estudada), pretendemos destacar neste artigo o Eliade escritor romancista, que teve

mais de 40 romances e contos publicados, e alguns deles, inclusive, receberam adaptação

para o cinema.




1 O mundo que constitui a literatura de Mircea Eliade

Ao invés de listarmos as obras literárias de Eliade e comentá-las, procuraremos

analisar a intenção do autor com a literatura e sua unidade com a pesquisa em Ciências da

Religião. Inicialmente, a sensibilidade literária de Eliade, segundo David Tracy, provém

da herança da teologia cristã ocidental que lhe despertou a consciência para a

possibilidade de participação da manifestação do sagrado através da natureza humana

divinizada. (TRACY, 1998, p. 208). Se Eliade, assim como Rudolf Otto, humanizou o

mundo de tal modo que o ser humano se encerra em si mesmo, a composição artística se

torna numa das celebrações possíveis da significação humana. Independentemente de

trabalhar com a história das religiões, Eliade, herdeiro da religiosidade romena,

identificou na narrativa, tanto a religiosa como a fantástica, elementos característicos do

ser humano. Sua missão era compreender e descrever a presença do sagrado na história

humana. Seu itinerário se deu na busca incansável pela ontofania no símbolo religioso e

na literatura. Ambas manifestam e revelam condições essenciais do ser. Os mitos

cosmogônicos e as narrativas de ficção fizeram parte, simultaneamente, da vida de Eliade

e de seu pensamento.

Decisivo na relação entre literatura e religião feita por Eliade foi a influência de

um dito de Ricoeur: a interpretação do intérprete é uma interpretação sobre o próprio

intérprete. (RICOEUR, 1978, p. 18). Eliade incorpora pressupostos de Ricoeur (apesar de

não desenvolver questões ricoeurianas, como a identidade narrativa) e descobre a

compreensão de si diante de símbolos religiosos e de narrativas literárias. A porta de

entrada para a relação literatura e religião de Eliade, ao lado da identificação individual

através do texto, foi a deificação na teologia cristã, onde o autor compreendeu que a

experiência de significação comporta uma base experimental de exteriorizações humanas.

Desta forma, a theosis lhe possibilitou a encarnação dos interesses transmutados em arte

(APOSTOLOS-CAPPADONA In: ELIADE, 1985, p. XIV) – que, no caso dele, habitou a

casa da literatura. A "divinização" presente na literatura de Eliade é, na linha de Ricoeur,

a compreensão de Eliade sobre ele mesmo. De forma que esta divinização reflete um

mundo de experiências extáticas que ele viveu em sua adolescência, como também em

sua estadia na Índia quando tornou-se um mestre no yoga. Portanto, religião e literatura

compõem um solo comum das vivências de Eliade.

Eliade pertenceu a uma tradição cultural romena que não via com bons olhos a

incompatibilidade entre a investigação científica e o mundo artístico. Os melhores

acadêmicos, como Mihail Eminescu, eram, para Eliade, também notáveis artistas – no

caso de Eminescu, este foi, além de filósofo, um dos principais poetas romenos.

(ELIADE, 1985, p. 172). Comumente, um estudante ou professor romeno destacava-se na

novela ou na poesia. Eliade é fruto dessa cultura romena. Ele acreditava que a literatura

tratava das coisas significativas e exemplares do humano. A literatura busca investigar e

compreender os significados universais da criação e dos fenômenos – em especial, na

literatura de Eliade, o fenômeno religioso. Sua vida incluiu aquilo que é pertinente do

escolar (academia e ciência) e do cotidiano (religiosidade e criatividade), ou, como ele

mesmo diz, a imaginação diurna e a imaginação noturna:


Eu disse para mim mesmo que meu equilíbrio espiritual – a condição da qual é

indispensável para a criatividade – estava assegurado por esta oscilação entre a

pesquisa de natureza científica e a imaginação literária. Como outros, vivo

alternativamente entre um modo diurno do espírito e um modo noturno. Eu sei,

evidentemente, que estas duas categorias da atividade espiritual são

interdependentes e expressam uma unidade profunda, pois elas têm a ver com o

mesmo "objeto" – o ser humano ou, mais precisamente, o modo de ser no

mundo específico do ser humano, e suas decisões para assumir seu modo de


ser.3 (ELIADE, 1985, p. 173, tradução nossa).



O mundo dialético de Eliade se dá na interdependência da imaginação literária e

do intelecto científico. (APOSTOLOS-CAPPADONA In: ELIADE, 1985, p. XIX) Sua

pesquisa é caracterizada por aquilo que ele chamou de "equilíbrio espiritual",

representado em suas obras literárias: a postura existencial de abertura para o mundo

através da religião. Diferente da produção literária de Søren Kierkegaard, seus livros

possuem uma unidade fundamental (ELIADE, 1989, p. 164): a preocupação ontológica

inaugurada pelo mito, pelo símbolo e pelo sagrado. O corpo de seu trabalho literário e

científico apresenta a concepção filosófica de religião natural, "homem universal" e um

novo humanismo, como também suas preocupações sobre a criação, o tempo e o sagrado.

A humanidade moderna e a arcaica, cada uma com suas preocupações míticas, simbólicas

e sagradas, interessa Eliade não apenas para pesquisa, mas para reflexão e expressão

literária, e vice-versa.


Eu sei também pela minha própria experiência que algumas de minhas criações

literárias contribuíram para uma compreensão mais profunda de certas estruturas

religiosas, e que, às vezes, sem ter a consciência de tal fato no momento da

escrita de ficção, a imaginação literária utilizou materiais ou significados que eu


estudei enquanto um historiador das religiões.4 (ELIADE, 1985, p. 173).



Os romances e os diários de Eliade são elaborações e anotações com detalhes e

especificidades de seu pensamento que devem interessar ao pesquisador e leitor das

religiões. Eliade comenta sobre sua jornada ao conciliar investigação científica e

imaginação literária. No início Eliade tinha dificuldades para tal conciliação e investiu

todo esforço numa das duas habilidades. Num dos casos, Eliade precisou suspender a

composição do livro acadêmico O Xamanismo por cinco anos para escrever o romance O

Bosque Proibido. Já em relação a seus diários, esses são mais versáteis que um exclusivo

"diário de romance", como era o Le Journal des faux-monnayeurs, de André Gide: são

registros de apontamentos e insights (ELIADE, 1963, p. 6), anotações das mais diversas

experiências pessoais e profissionais, desde situações do cotidiano, ideias filosóficas,

impressões de uma viagem ou de uma pessoa. Servem como recurso de trabalho

acadêmico como também fonte para poesias e romances. (ELIADE, 1990a, p. 62-63).

Em suas obras acadêmicas, Eliade é cuidadoso ao sistematizar movimentos

ontológicos e descrições filosóficas. No entanto, questões e impressões pessoais

específicas como o tempo e o mal, que geralmente aparecem cercadas pelo assunto que

lhe são pertinentes em suas obras, são aprofundadas, de forma mais livre e pessoal, com

certos julgamentos, em seus diários e romances. No diário ele diz: "Eu nunca acreditei no


Diabo nem tive obsessão pelo pecado, e era indiferente ao ‘problema do mal’"5



(ELIADE, 1990a, pp. 167-168) (diferentemente de Paul Ricoeur, do qual uma das

preocupações originais foi o mal) (RICOEUR, 1986, p. 24). Segundo Mac Linscott

Ricketts, um historiador das religiões que aprendeu romeno e viajou para a Romênia para

escrever uma biografia de Eliade, o maior inimigo para Eliade era o tempo (RICKETTS

In: ELIADE, 1990a, p. X), pois era a única coisa que o impedia de estender e aprofundar

sua obra. Essa preocupação com o tempo é fundamental para compreendermos a pesquisa

de Eliade; ela está representada de forma autobiográfica no romance Le temps d'un


centenaire, traduzida para o inglês por Youth Without Youth6, e sistematizada em sua obra



onde há o mito do eterno retorno (negação do tempo) e a busca pelo tempo primordial, in


illo tempore, das coisas e do ser.7 É interessante registrar que Eliade e Ricoeur, mesmo



com motivações diferentes, utilizaram da análise do símbolo para expressar suas

preocupações.

Outro aspecto que notamos nas obras literárias e romances de Eliade, além de

haver uma unidade central, é que são obras praticamente autobiográficas do autor. Cada

romance reflete uma situação que Eliade viveu ou uma etapa de sua vida. Vemos, por

exemplo, no livro Bosque Proibido – a mais importante obra literária declarada pelo


próprio autor8 – o personagem principal, Stefan Viziru, preocupar-se com "os ritmos



cósmicos e eventos históricos camuflam significados de ordem espiritual; e, sobretudo

[...] espera que o amor possa irromper no plano da existência, revelando uma nova


dimensão existencial – isto é, a experiência da liberdade absoluta"9 (ELIADE, 1988, p.



136, tradução nossa). Nessa breve afirmação está resumido todo o projeto filosófico de

Eliade. Na maioria de suas obras encontramos as preocupações com os ritmos cósmicos,

principalmente aqueles que revelam significados espirituais camuflados. Dentre suas

obras acadêmicas, seus textos principais trazem todas aquelas preocupações

desenvolvidas com referencial teórico e rigor metodológico. Novamente, tais

preocupações fazem parte do Eliade escritor e pesquisador, e estão projetadas no


personagem Stefan Viziru que, na história, também apresenta uma esperança paradoxal



ao questionar a possibilidade de estar apaixonado por duas mulheres (outra dúvida que o

perturbou, conforme anotações em seus diários).

Youth Without Youth recebeu uma adaptação para o cinema, em 2007, filmado

pelo diretor Francis Ford Coppola, estrelado pelo ator Tim Roth e pela talentosa


Alexandra Maria Lara.10 Nele, temos o personagem Dominic Matei. Talvez esse



personagem seja o retrato mais fiel de Eliade. Na história temos um enredo que se volta

para a questão do tempo. Dominc Matei é um professor de filosofia com seus 70 anos de

idade e se questionava se ele teria tempo suficiente para terminar sua obra filosófica e

linguística sobre a origem do ser humano (Eliade teve em seus objetivos mapear a origem

do humano através da religião, linguagem e símbolo). A estória de Dominic se passa no

início da Segunda Guerra Mundial, quando, após sair da universidade, Dominic é atingido

por um raio que o desconfigurou completamente – mas não o matou. Após se recuperar

milagrosamente no hospital, ele rejuvenesceu e seu corpo ficou jovem. No entanto, sua

mente estava lá, intacta, com seus 70 anos de idade. Fora dada uma segunda vida a

Dominic. Ele continua seu projeto filosófico e encontra uma mulher que o auxilia a

alcançar as raízes da humanidade, através de experiências espirituais que vivenciavam os

profundos mistérios. Dominic conclui que, depois de rejuvenescer milagrosamente e de

ter recebido a dádiva de viver a vida novamente a partir do ponto que havia parado,

mesmo se ele pudesse mudar todos os percursos para outros e novos caminhos, ele ainda

assim retornaria para a sua preocupação primeira, onde todo seu trabalho começou e toda

sua jornada existencial ganhou sentido: a filosofia da religião. (ELIADE, 2007, p. 67).

Portanto, no romance Youth Without Youth vemos o Mircea Eliade falando através do

personagem principal. A preocupação com o tempo, a pesquisa nas religiões arcaicas para

descobrir a origem de humano e a busca incansável dos mais profundos sentidos do ser

mostram que a literatura teve o papel de estender seus conteúdos acadêmicos em tom

quase autobiográfico.

Nós brasileiros desconhecemos o "Mircea Eliade escritor", que logo jovem já

fazia parte da Sociedade Romena de Escritores (ELIADE, 1990a, p. 296) e tinha uma

renda acima da média (maior até que o salário de seus professores) por causa da venda de

seus contos e livros de literatura. Podemos até desconfiar que foi um "acidente" Eliade se

especializar no estudo das religiões. Tudo indicava que ele seria um escritor de romances.

Porém, ao analisar a biografia e preocupações de Eliade, descobrimos que o motivo que o

levou a ser um filósofo das religiões foi justamente o aspecto ontológico que buscava

como fundamento de sua vida. Reconheceu tal aspecto não apenas na literatura, mas,

principalmente, na prática espiritual, identificando-se com a ontologia dos mitos,

celebração dos ritos e a dinâmica do símbolo das religiões. Os grandes temas

apresentados em seus trabalhos acadêmicos (como a dialética do sagrado e o mito do

eterno retorno) são aprofundamentos daquilo que apareceu primeiro na sua literatura

como exercício de um pesquisador que buscava compreender a existência humana –

destaque para Bosque Proibido, Sarpele, La Tiganci e Podul, que são anteriores aos seus

trabalhos acadêmicos de maior expressão. Assim, a aproximação entre literatura e religião

no pensamento de Eliade destaca os eixos fundamentais no mundo do autor.


2 A literatura que constitui o mundo de Mircea Eliade

Para prosseguirmos com a investigação da literatura de Eliade, vale notar que

Eliade foi um escritor com influências existencialistas e ontológicas. Ele não foi, a

princípio, um filósofo que desenvolveu o existencialismo e a ontologia em aspectos

empíricos e metodológicos. Eliade reproduziu o existencialismo corrente e vivenciou a

ontologia na religião. No essencial, sua literatura, assim como sua pesquisa

fenomenológica sobre as religiões, confrontou existencialmente e ontologicamente a

preocupação com o tempo e o espaço mítico, as qualidades de reconhecimento da

manifestação do sagrado e a redução eidética da questão pelo sentido último da vivência

de mitos e a leitura de narrativas heróicas. Enquanto para Northrop Frye a literatura

remete apenas ao imaginário (FRYE, 2004, p. 23), para Eliade a literatura modifica o ser

do indivíduo. Esta posição existencial que seus textos literários, até o final de sua vida,

demonstraram, comportam, também, a preocupação ontológica original sobre a condição

do ser humano que busca o transcendente. Outro autor influente em Eliade foi Martin

Heidegger. A influência de Heidegger atingiu escritores e filósofos como Gabriel Marcel,

Jean-Paul Sartre, Albert Camus e, evidentemente, Mircea Eliade. No caso de Eliade,

Heidegger o despertou para a ontologia na poesia. Conforme Diane Apostolos-

Cappadona, Eliade é o melhor poeta no sentido heideggeriano do termo, pois assumiu a

ontologia em seus escritos. (APOSTOLOS-CAPPADONA In: ELIADE, 1985, p. XII)

Ainda podemos destacar que Eliade se inspirou no existencialismo de Kierkegaard e

Friedrich Nietzsche. Resumindo, a literatura existencial corrente na época de Eliade

expressa a preocupação ontológica dos autores. Eliade, em paralelo com Sartre, Marcel e

outros, conquistou leitores preocupados com as questões do ser. Conhecer tal cenário

geral ajuda a compreender a função existencial da literatura em Eliade e seus paralelos

com o papel da religião.

A ficção e o romance, de maneira geral, são, para Eliade, uma das maneiras de

explorar, aprofundar e expressar seu trabalho acadêmico e suas preocupações ontológicas,

pois "revelam algumas dimensões da realidade que são inacessíveis para outras


abordagens intelectuais".11 (ELIADE, 1970, p. XIII, tradução nossa). Eliade acredita que



o romance supre, de certa forma, os mitos no mundo moderno – e mais: uma imagem ou


um conto podem comunicar mais do que uma vasta pesquisa num determinado assunto.12



"A narração", diz ele no prefácio da sua obra Bosque Proibido, "constitui uma

experiência literária autônoma e irredutível; e isto pela simples razão de que a narração

épica corresponde, na consciência do homem moderno, à mitologia na consciência do

homem arcaico" (ELIADE, 1963, p. 6). Em sua condição de homo religiosus, o homem

moderno, assim como o homem arcaico, não pode existir sem mitos. O mito se refere às

narrações exemplares: pois qualquer mito que relata uma estória ou conto de uma criação,


diz-nos como algo veio a ser. (ELIADE, 1970, p. XII).13 O mito, para Eliade, é uma



história exemplar que se oferece como paradigma para o presente enfraquecido. Há um

"valor exemplar" (ELIADE, 1970, p. XII) do mito na narração do romance/ficção. O

romance narrativo, a narração em si, possui uma função metafísica, pois nos diz algo que

aconteceu e que tal acontecimento influi na existência de certas pessoas; evidentemente

este sentido metafísico não foi significado por gerações realistas e psicologizantes (que

atribuíram importância à análise psicológica, espectral e psicomental do texto), mas a

narração do romance, com sua dimensão metafísica, revela significados inesperados e

esquecidos para a contemporaneidade e para o leitor sofisticado. (ELIADE, 1970, p. XII).

Para Eliade, "a dignidade metafísica da narração está em vias de ser redescoberta pelo

homem moderno" (ELIADE, 1963, p. 7). "A narração só readquire sua dignidade

metafísica se os acontecimentos que descreve correspondem – de um modo misterioso e

sem a consciência do autor – aos acontecimentos exemplares da mitologia" (ELIADE,

1963, p. 7). O autor de romances usa da fonte obscura e inesgotável dos mitos e dos

símbolos, pois os mitos e os símbolos estão na gênese da humanidade. Questões como a

criação e o tempo podem ser exploradas tanto academicamente como literariamente. A

abordagem literária, por exemplo, não é algo abstrato nem uma técnica simples de

apreender e realizar, mas, como comentou Paul Tillich (1973, p. 178) sobre a função da

poesia, uma tentativa de superar a "limitação de nossa função cognitiva".

A narrativa moderna da literatura e do cinema é marcada por mitos e símbolos. O

sagrado sobrevive camuflado na era secular. Há uma dimensão de "universo simbólico"

na literatura, correspondida em Ernst Cassirer (1992), em Mito e linguagem, onde o ser

humano, negando sua condição de ser racional, afirma-se como ser simbólico. Para

Eliade, isso acontece com o uso de imagens e imaginação. Ambos os conceitos são

importantes na pesquisa de Eliade, tanto na investigação da história das religiões como na

literatura fantástica, pois estão relacionados com a criatividade da narrativa e a dinâmica

do símbolo. A dinâmica do símbolo move o ser humano num mundo de sentidos

apreendidos pelas narrativas. No caso específico da literatura, invoca a "nostalgia de um

passado mistificado, transformado em arquétipo, que esse passado contém, além da

saudade de um tempo que acabou, mil outros sentidos: ele expressa tudo que poderia ter

sido, mas não foi" (ELIADE, 2002, p. 13). De tal forma, Eliade trabalhou as questões

simbólicas e hierofânicas no mesmo nível de referência da literatura. Essa dialética

caracteriza o pensamento de Eliade e lhe dá unidade ao realizar seus escritos.

Por isso, diante da postura existencial e preocupações trabalhadas na literatura,

Eliade concluiu que um escritor ou um crítico literário está melhor preparado para

compreender os documentos investigados pelos historiadores das religiões do que um

sociólogo ou antropólogo. (ELIADE, 1985, p. 176). O escritor acredita nos sentidos e na

realidade da criação artística do mundo do texto, uma vez que este transmite valores do

mundus imaginalis que comportam significados. Há uma experiência de nostalgia nas

narrativas literárias, estéticas e cinematográficas equivalente ao processo espiritual de

regeneração e espiritual. Para Eliade, a necessidade natural do ser humano por grandes

narrativas está na analogia estrutural do universo de significados revelados tanto nos

fenômenos religiosos como nas mensagens expressadas nos trabalhos literários. O ser

humano, em sua estrutura e condição carrega, dentre outras coisas, uma necessidade


existencial e orgânica por estórias, contos e sonhos14, isto é, uma necessidade por



mitologias (cf. ELIADE, 1985, p. 175), concluiu Eliade ao estudar trabalhos psicológicos


acerca do sono e do REM.15 Assim como na religião há aspectos de hierofania (a



manifestação do sagrado, que configura um mundo ordenado por sentidos espirituais), na

literatura há exemplos de valores humanos que se diferenciam de dados concretos,

materiais e históricos. Tanto a narrativa religiosa como a composição literária carregam

aspectos universais de significados exemplares e sentidos profundos, de tal modo que a

literatura resgata (e reconstitui) o papel do fenômeno religioso enquanto fundador de

mundos. A criação literária, portanto, pode revelar sentidos e significados inesperados ou

esquecidos pelo indivíduo moderno.

Dessa forma, podemos explicitar que a pesquisa de Eliade caminha ao lado da

criação de narrativas, imagens e textos que propõe aproximar a preocupação religiosa da

literária. Para o autor, a gênese de seu pensamento está no inconsciente: lugar onde

sobrevivem os símbolos iniciatórios e os cenários mitológicos. A intencionalidade do

indivíduo em relação à literatura e à religião demonstra certos aspectos da existência – no

caso, a arte literária revela estruturas do mundo que foram percebidas apenas na narrativa.

Tanto o marxismo como a psicologia do profundo, notou Eliade, apontaram a eficiência

da desmistificação do mundo para o indivíduo que quer descobrir a essência do

comportamento ou da cultural criadora de sentidos – mas, no caso de Eliade, ele sugere o

inverso: deve-se "desmistificar" o que é aparentemente profano na literatura para

perceber seus elementos sagrados. A idéia de desmistificar o profano pode parecer

contraditória. Entretanto, para Eliade, todo o mundo é sagrado, de forma que o sagrado

possui uma camuflagem profana nas exteriorizações artísticas e culturais, pois fazem

parte da experiência total do ser humano (e são tão importantes como o conhecimento

científico, sem o qual o ser humano não pode viver). Portanto, conclui Eliade, "a

nostalgia por experiências e cenários de iniciação, decifrada em tantas obras plásticas e

literárias, revela a vontade do ser humano moderno pela renovação total e definitiva, pela


renovatio capaz de mudar radicalmente sua existência"16. (ELIADE, 1985, p. 177,



tradução nossa).


Conclusão

Neste ensaio buscamos descrever a relação de Mircea Eliade com a literatura,

sobretudo as ideias e características acerca da aproximação entre literatura e religião no

pensamento do autor. A literatura existencial possui um papel fundamental na vida de

Eliade. A força da narrativa e a dimensão simbólica de imagens da literatura fantástica de

romances, enquanto capacidade imaginativa e reflexiva de primeira ordem, imitam e

reproduzem variações da realidade profunda da vida e da própria alma humana. A

literatura, também chamada de criatividade noturna, é tão importante quanto a

investigação científica, uma vez que ela apresenta outros mundos habitáveis. E não

apenas expressa mundos, como ela própria comporta um instrumento de conhecimento

sobre o mundo – um conhecimento que outras aproximações não poderiam apreender.

Eliade, portanto, Fiel à sua tradição interdisciplinar, Eliade expressa enquanto escritor

suas preocupações ontológicas e, de modo semelhante, encontra na religião o caminho

para aprofundar seus conteúdos: encontra no sagrado a ontofania, encontra no mito a

ontologia. Na literatura, através da narrativa, o mundo para Eliade se constitui e ganha

sentido.


Nenhum comentário:

Postar um comentário