terça-feira, 24 de setembro de 2013

DOMÍNIO DO INTENTO

 
Ana Maria Ramo y Affonso
 
Intentar é variar; variar a vibração, a velocidade . .enfocar a atenção., modular a perspectiva, transmutá-la, um ato xamânico (Castaneda EDJ: 36). Os seres humanos temos um ponto de cognição comum, o .punto de encaje. que se situa no mesmo lugar das esferas energéticas que somos. (EDJ: 37). Trata-se de um ponto de passagem e de tradução de campos energéticos, de enfiada de fibras, de planos. E também de uma coordenada, uma conexão individual, um ponto de encontro ou de perspectiva (o ponto de vista de que nos fala Viveiros de Castro(1996)), limite-tensão (ou tensão no limite): .punto de encaje., o .lugar onde ocorre a percepção., a .tradução da energia., a tradução da vibração do escuro mar da consciência, em .dados sensoriais que são interpretados como o mundo que nos rodeia., que nos circunda, que nos limita (Castaneda, 2000b: 35-36).



Os xamãs do México antigo descobriram a possibilidade de movimento volitivo do .punto de encaje., de des-locamento, de variação da posição que ocorria nos estados alterados de consciência ou de consciência intensificada (Castaneda EDJ: 38). Eles aprenderam a variar a perspectiva, mover o ponto de modo a permitir a passagem de outros campos, que forçosamente interpretamos como o mundo (ou a realidade); só que neste caso, um .verdadeiro mundo novo a perceber. (EDJ: 38), ou vários, pois é possível escolher uma dentre as várias .posições clave. que há .dentro da totalidade da esfera luminosa. (EDJ: 38). .Don Juan me aseguró que era un hecho energético que la posibilidad de viajar a cualquiera de esos mundos, o a todos ellos, es el legado de la humanidad. Dijo que esos mundos estaban allí para ser interrogados [.].

(Castaneda EDJ: 38).



O universo, .predatório ao máximo., pressiona os seres orgânicos e inorgânicos a variar, a .acrescentar sua consciência., de modo a .se fazer consciente de si mesmo., a afinar a vibração (Castaneda EDJ: 39). A consciência é, para estes guerreiros caçadores de poder, de velocidades e lentidões, de vibração, a .questão final. que anima seu modo de cognição, seu .mundo cognitivo. (EDJ: 39). O que requer descomprometer-se com a própria descrição, com a própria cultura, aliás, com .qualquer cultura dada. cujo papel seja.restringir a capacidade perceptiva de seus membros. (EDJ: 39); liberar o desejo de variar, de fluir, de sentir . liberar o desejo de sua funcionalidade, dos .ideais e pseudo-metas. dos homens comuns (EDJ: 39), do seu modo finito e imutável de ser no tempo e estar no espaço. Conhecer as múltiplas possibilidades perceptivas, experimentar possíveis. Há função, também, neste modo de percepção dos xamãs do México antigo: .fazer tudo o melhor que puder, e um pouco mais. (EDJ: 39), ser impecável. Ser funcional é afinar o ânimo, entrar em velocidades e lentidões que permitam .seguir o fluxo da energia. (EDJ: 39). A intenção impecável dos xamãs do México antigo da linhagem de don Juan é chegar ao .fato energético mais essencial para cada ser humano sobre a Terra.: a .viagem definitiva..



El viaje definitivo es la posibilidad de que la conciencia individual, acrecentada hasta el límite por la adherencia del individuo a la cognición de los chamanes, pudiera mantenerse más allá del punto en que el organismo es capaz de funcionar como una unidad cohesiva, es decir, más allá de la muerte. [.] llegar al nivel de la energía que fluye en el universo. Para los chamanes como don Juan Matus su búsqueda consistía en llegar a ser, al final, un ser inorgánico, es decir, energía consciente de si misma, actuando como una unidad cohesiva, pero sin un organismo. Llamaron a este aspecto de su cognición libertad total un estado en el que existe la consciencia, libre las imposiciones de la socialización y la sintaxis (Castaneda EDJ: 40).




O segredo está na atenção, na afinação com os modos de vibração que nos perpassam. E essa afinação se traduz no gesto, na ação, no modo de agenciamento de velocidades e lentidões. Cada gesto de um guerreiro pode ser sua última batalha sobre a terra (Castaneda RA: 248); são os gestos que lhe permitem deter-se e ocupar um lugar, um ponto de vista na sua caça ao poder, nas suas lutas. O conjunto destes movimentos, destas posturas, será a coreografia que interpretará nos últimos instantes de sua vida.




"Y así bailarás ante tu muerte, aquí, en la cima de este cerro, al acabar el día. Y en tu última danza dirás de tu lucha, de las batallas que has ganado y de las que has perdido; dirás de tus alegrías y desconciertos al encontrarte con el poder personal. Tu danza hablará de los secretos y las maravillas que has atesorado. Y tu muerte se sentará aquí a observarte. El sol poniente brillará sobre ti sin quemar, como lo hizo hoy. El viento será suave y dulce y tu cerro temblará. Al llegar al final de tu danza mirarás el sol, porque nunca volverás a verlo ni despierto ni soñando, y entonces tu muerte apuntará hacia el sur. Hacia la inmensidad." (Castaneda VI: 218).



Assentir com a morte, travar a última batalha. O gesto é o modo de objetivar o mito, de ocupar um ponto de vista, a fé do desejo. O guerreiro dança perante a morte: este é o seu tributo; e a dança é a coreografia que conta de suas lutas, dos gestos que ao longo de sua passagem pela terra impediram que fosse devorado pela perspectiva alheia. A luta é sentir, trocar e guardar o poder que o permitirá continuar mais uma vez o jogo da variação. Ser perecedouro por um instante, neste instante atual; chegar, em vida, à totalidade de si mesmo, eis a grande tarefa que só um espírito impecável é capaz de empreender. E um espírito impecável é a conquista de um guerreiro, o resultado de suas ações, como o são todas as outras variedades e qualidades de espíritos e as realidades que os espelham. Um espírito impecável se faz, só que aprendendo a não-fazer.




.[.] a lo mejor entonces te das cuenta de que ambos haceres son

mentira, son irreales, que prenderte en cualquiera es una pérdida de

tiempo, porque lo único real es el ser que hay en ti y que va a morir.

Llegar a ese ser, al ser que va a morir es el no-hacer de la persona.

(Castaneda VI: 277).



Peço paciência aos céticos! Assentir com a morte não é abolir ou negar a vida; assentir com a morte não é uma fuga, a projeção transcendental de uma .substância coerente e sólida, satisfeita e repousada. (Tarde 2007b: 70) que representa a si mesma nos mesmos espelhos que a permitem durar. Eis a visão da máquina dual, da máquina de opacidade que produz objetos finitos e projeta a nossa finitude nos objetos, tornando-se assim nossos espelhos. A nossa visão se adaptou à duração do objeto, à sua imobilidade, e é por isso que nosso olhar é rígido. Eis o preço que pagamos pelos resguardos que nosso Tonal déspota nos vende junto com uma imagem de fragilidade perante a inevitável morte. Achamos que podemos esgotar o mistério sem-fim que é o mundo com nossos afazeres de homens comuns, com nossas realidades indiscutíveis e objetivas e com o poder que nos outorga o conhecimento. Também para um guerreiro o conhecimento pode se transformar em poder, mas não no modo da duração, na imobilidade de estantes onde se acumulam palavras e pó, até que alguém venha a tirá-las do lugar. No mundo habitado pelo guerreiro, .cada pedacinho de conhecimento que se torna poder tem a morte como força central. (Castaneda RA: 173).



Um guerreiro é alguém que assente com a sua morte, o que não quer dizer entregar o jogo e quebrar os espelhos num voraz movimento de inquietação. Um guerreiro é alguém que escolhe os elementos que formam o seu mundo, os espelhos que o refletem, e que, com muito esforço e de modo impecável, equilibra o seu espírito e fortalece o seu Tonal pessoal, lutando para viver, para desfrutar ainda um pouco mais no .caminho com coração. que escolheu percorrer. Pois um caminho com coração é uma escolha, o modo pelo qual um homem que assentiu com a morte passa pelo mundo, no mundo. Prazer indizível de realizar cada ato, desfrutar cada momento presente, dando o melhor de nós mesmos, e transformando em .poder mágico nosso tempo ordinário sobre a terra. (RA: 173) . modo de ação daqueles que fazem da morte sua melhor conselheira, que assentem em escutá-la, em percebê-la:




"Sólo la idea de la muerte da al hombre el desapego suficiente para que

sea incapaz de abandonarse a nada. Sólo la idea de la muerte da al

hombre el desapego suficiente para que no pueda negarse nada. Pero un

hombre de tal suerte no ansía, porque ha adquirido una lujuria callada por

la vida y por todas las cosas de la vida. Sabe que su muerte lo anda

cazando y que no le dará tiempo de adherirse a nada, así que prueba, sin

ansias, todo de todo. Un hombre despegado, sabiendo que no tiene

posibilidad de poner vallas a su muerte, sólo tiene una cosa que lo

respalde: el poder de sus decisiones. Tiene que ser, por así decirlo, el amo

de su elección. Debe comprender por completo que su preferencia es su

responsabilidad, y una vez que hace su selección no queda tiempo para

lamentos ni recriminaciones. Sus decisiones son definitivas, simplemente

porque su muerte no le da tiempo de adherirse a nada. Y así, con la

conciencia de su muerte, con desapego y con el poder de sus decisiones,

un guerrero arma su vida en forma estratégica. El conocimiento de su

muerte lo guía y le da desapego y lujuria callada; el poder de sus

decisiones definitivas le permite escoger sin lamentar, y lo que escoge es

siempre estratégicamente lo mejor; así cumple con gusto y con eficiencia

lujuriosa, todo cuanto tiene que hacer. (Castaneda RA: 174-175).



Os atos de um guerreiro são uma forma de passar, pois a .continuidade. do homem carece de sentido neste .mundo de pavor e mistério. (Castaneda VI: 126). A arrogância, a excessiva importância que atribuímos a nós mesmos e a nossas invenções, nos impede a percepção de que o mundo ao nosso redor é um mistério sem-fim, de modo que acreditamos que somos os únicos que podem inventar os modos como queremos estar nele; o resto dos seres, como não pensam ou falam, vêem-se limitados ao reino dos fatos mudos, da motivação inata e, portanto, carentes de escolha. Somos seres isolados em nosso cubículo de verdades, alheios à diferença radical dos outros modos de estar no mundo, o que empobrece, e muito, a nossa experiência do diferir. .Perder a importância. supõe perceber que somos, assim como muitos outros, seres que vão morrer . ou seja, diferença diferindo, ou o diferir da diferença. Tal possibilidade de ação se abre ao guerreiro que aprende, ou seja, que se compromete com a cognição dos xamãs do México antigo, e estabelece uma aliança conceitual com o .fato energético. de que somos seres que vão morrer, que vão mudar, que vão variar (Castaneda EDJ: 33). O guerreiro que assente com a morte, assente com o infinito (EDJ: 33).



Mas nós, ocidentais, homens modernos, atores mascarados, falsos sábios, mestres do falso verbo, fantasmas, temos uma relação negativa com a morte, pois, como disse Foucault (1999: 382), escolhemos acreditar que a poeira em que se desfazem .as grandes arquiteturas funcionais. é .poeira sem vida.. Que pretensão do sujeito! A poeira, as partículas, os elementos em que nos desmembramos, as mônadas, o infinitesimal infinito de que nos fala Tarde (2007b), testemunham o fim da finitude (Foucault 1999: 516), a cegueira da perspectiva da duração. A variação infinitesimal é o movimento do aparentemente imóvel, a fluidez imanente do sólido, a passagem do durável . percepção do imperceptível aos .olhos de fantasma. que, segundo Kopenawa, nos caracterizam (Kopenawa apud Viveiros de Castro 2007: 02). Variar é alterar, se alterar e ser alterado . o modo de ação do bruxo, ou do xamã, aquele que não é mais um fantasma depois de sobreviver ao apavorante encontro com o aliado que lhe dá a velocidade necessária para vibrar em sintonia com múltiplas consciências. Há uma grande diferença entre as durações dos homens comuns e os encontros dos guerreiros, mesmo que tenhamos o costume de sacrificar os encontros às durações, como afirma Tarde (2007a: 189-190). .O real é apenas um caso do possível., como diz Vargas (2007: 26) parafraseando Tarde; um possível e misterioso mundo.




.El mundo es todo lo que está encajado aquí . dijo, y pateó el suelo .. La

vida, la muerte, la gente, los aliados y todo lo demás que nos rodea. El

mundo es incomprensible. Jamás lo entenderemos; jamás desenredaremos

sus secretos. Por eso, debemos tratarlo como lo que es: ¡un absoluto

misterio!. (Castaneda RA: 253).








O guerreiro ou, nas palavras de Viveiros de Castro (2007: 03), o .''diplomata cósmico.'' procura intencionalmente encontrar as .forças inexplicáveis e inflexíveis. que povoam os mundos que ele habita, percorrendo o que, em outro contexto, Duvignaud (1979: 85) chama de .labirintos de durações diversas. na extensão do cosmos. Mas encontro não quer dizer, no seu caso, explicação ou entendimento ou modificação ou controle das forças. Um guerreiro aprende a usar as forças poderosas graças ao equilíbrio que conquistou com sua impecável .vontade. (Castaneda RA: 246-247).



A .vontade. é um centro de percepção, um modo de ação; um modo que se atualiza, que se realiza, graças à fluidez do Tonal do guerreiro. Os resguardos, escudos, fachadas, limites, são modos de agenciamento do Tonal, modos de individuação, de modulação da velocidade da percepção. Modos que os homens comuns chamamos corpos, que interpretamos e experimentamos como corpo e, muitas vezes, como objetos, delimitados a um espaço, imóveis no tempo. Mas o guerreiro fluido não pode mais datar o mundo cronologicamente, e para ele .o mundo e ele mesmo já não são objetos. (Castaneda RP: 67).



Don Juan, e os bruxos de sua linhagem, percebem os seres humanos como bolhas ou.ovos de fibras luminosas., como diagramas ou figuras geométricas nas quais podemos .manejar. oito coordenadas principais que são oito mundos para perpassar (Castaneda RA: 296); oito pontos interconectados por meio de linhas. que a solidez do corpo dos homens comuns nos impede conceber (Castaneda RP: 129).




.No lo llames el cuerpo. . dijo .. .Ésos son ocho puntos en las fibras de

un ser luminoso. Un brujo dice, como puedes ver en este dibujo, que el

ser humano es, primero que nada, voluntad, porque la voluntad se

relaciona con tres puntos: el sentir, el soñar y el ver: después, el ser

humano es razón. Este es propiamente un centro más pequeño que la

voluntad; sólo está conectado con el habla. (Castaneda RP: 129).



Todos nós, homens comuns, manejamos a fala e a razão. E também sentimos, apesar de fazê-lo de modo vago. Mas só os bruxos manejam o sonhar, o ver, e a .vontade.. Diferença nada simbólica que, se alegorizada a outros contextos, nos permite compreender a impossibilidade de explicar a magia pela ciência. Modos diversos de ação, só isso. O Nagual não pode ser explicado ou entendido pelo Tonal, pois explicar é um modo de percepção e interpretação do Tonal. A razão é um .centro de ensamblagem., um espelho, um modo de testemunhar o Tonal (Castaneda RP: 361). O centro de testemunho do Nagual, o modo de presenciá-lo, é outro: a .vontade..



Razão, fala, .vontade., sonhar, ver, sentir: seis dos oito pontos que formam a .totalidade de nós mesmos. (Castaneda RP: 129) . coordenadas das relações entre os elementos do racimo, que don Juan chama .bolha da percepção. (RP: 356). Modos de passagem e de individuação, de formatar o ovo em corpo, de tradução. A razão e a fala nos permitem conhecer, entender e explicar o mundo de modo elaborado, e tem nos mantido em vigília durante séculos, enquanto povoamos o mundo de objetos que refletem o nosso modo de interpretar a matéria como algo sólido e durável. Mas há outros espelhos possíveis, accessíveis .sob condição., como diria Tarde (2007a: 167), outros modos de organizar e reorganizar o racimo de que nos fala Don Juan; e a condição é submergir-se no Nagual através da .vontade. e experimentar a .totalidade de si mesmo. ao .abrir as assas da percepção. (Castaneda RP: 332); des-organizar o Tonal e liberar os elementos da liga da vida, durante um momento (RP: 332). Assentir com a morte.






Yo era una miríada de yo mismo y todos eran "yo", una colonia de

unidades independientes que tenían una alianza especial entre sí e

inevitablemente se unirían para integrar una sola conciencia, mi

conciencia humana. No era que yo "supiese" sin duda alguna, porque no

había nada con lo que hubiera podido "saber", pero todos mis yo mismos

"sabían" que el "yo" de mi mundo familiar era una colonia, un

conglomerado de sentimientos separados e independientes que poseían

una inflexible solidaridad mutua. La solidaridad inflexible de mis

incontables conciencias, la alianza mutua de esas partes, era mi fuerza

vital (Castaneda RP: 350-351).




Aliança mútua que é a vida: a .goma da vida. cola os sentimentos, os seres e as individualidades, inventando modos de povoar o Tonal (Castaneda RP: 355). Um guerreiro fluido consegue expandir o seu racimo um pouco nas suas incursões ao Nagual (RP: 355- 356) . experimentar a Totalidade de si em vida é morrer, mas só durante um momento; é ter a própria consciência, liberar as mônadas, as partículas infinitesimais (Tarde 2007b), da liga, da cola da vida, e perceber que somos uma associação, uma .miríade de eu mesmos (Castaneda RP: 350), um racimo. Vibração da consciência sem organismo (o duplo energético ou sósia), ou sem o compromisso inalienável com um organismo.



Organismos são modos de agenciamento, produtos da interpretação da percepção. Dentre os possíveis organismos há os organismos fantasmas, interpretações não de percepções, mas de outras interpretações30 (Deleuze & Guattari 1996: 12) que formam o roteiro do nosso modo de estar no mundo, e é com estes modos que os atores comuns costumamos nos comprometer, confundindo o que fazemos da nossa percepção com o que somos enquanto perceptores. Os olhos de fantasma dos homens comuns não conseguem ver muitos dos mundos aos quais os olhos dos xamãs, amigos dos espíritos, aqueles que sobrevivem (após morrer) no seu encontro com o aliado, se abrem. O importante, diz Castaneda, é .ter experimentado com meu corpo, ou nele, as premissas da explicação. (RP: 357). O corpo de um guerreiro, o organismo fluido, é um modo de organizar a experiência perceptiva, um modo de sentir o mundo e a possibilidade de testemunhar o Nagual, de .apreender a alteridade., a .marca da presença Outrem. (Viveiros de Castro 2001: 10). Marca que é como um espelho, ou uma miríade de espelhos infinitesimais . de cristais pluridimensionais que refratam a luz, o movimento, em inúmeras direções.



Movimento modulado pelo crivo de um olhar, de um modo de agenciamento, de atualização momentânea e passageira. Um espelho é um modo de agenciamento, o .instrumento de passagem entre as experiências da intensidade luminosa e da inumerabilidade dos espíritos. (Viveiros de Castro 2007: 19); um meio de transporte: ponto de vista, marca ou modo da ação. E quando a ação é variação, o que ser além da imagem? O corpo é como um jogo de espelhos, compêndio de cristais polifacéticos, multidimensionais . pluriverso em ação.



A etnologia de Viveiros de Castro (2007: 11) chega ao ponto: o xamã, o .modulador de perspectivas., é alguém que .possui corpos demais., que possui espelhos demais. É alguém que enxerga outros modos de organizar a energia, outros modos de consciência, outras modulações da vibração; alguém que os espelhos infinitesimais da floresta, os .corpos. dos xapiripë, que .sempre brotam de novo.. Conforme diz Kopenawa, citado por Viveiros de Castro (2007: 20): .Nós não fazemos senão viver entre os espelhos [dos espíritos]; ...nossa floresta pertence aos xapiripë e ela é feita de seus espelhos..



.Ambigüidade trans-específica. dos xamãs (Viveiros de Castro 2007: 06), os heróis dos mitos, os que passam por entre os intervalos da ciência e seus modos de diferenciar o semelhante, seus modos de especiação. Se há oposição caberia dizer que o modo de ação dos bruxos do México antigo da linhagem de don Juan se opõem à mesmificação simbólica dos filósofos-sabios. Pois, apesar de ser a física ocidental por demais metafísica (como a amazônica) e de que seus representantes, seus tradutores, experimentam velocidades de percepção, usando .próteses. que lhes permitam enxergar o invisível, a sua função não é a mesma. Ser xamã, como ser filósofo socrático, é um .funcionamento., mas ser funcional é no primeiro caso ser impecável (Castaneda EDJ: 39) e no segundo, razoável. O poder do pensamento não é o poder pessoal que don Juan ensina a Castaneda caçar e guardar. O poder do guerreiro é poder variar. O guerreiro, como as mônadas de Tarde (2007b), está lá onde age; aqui e ali, às vezes, num mesmo momento.




.El secreto del doble radica en la burbuja de la percepción, que en tu caso

estaba, aquella noche, en lo alto del peñasco y en el fondo del barranco al

mismo tiempo. . dijo. .El racimo de sentimientos puede agruparse al

instante en cualquier parte. En otras palabras, podemos percibir a la vez

el aquí y el allí. (Castaneda RP: 358).



Don Juan e don Genaro aprenderam a ser inorgânicos, eis o legado, eis o segredo. Algum dia voltarão a entrar nos olhos do antropólogo, como .poeira no caminho. (Castaneda RP: 384); poeira cintilante, luminosa, viva, consciente de si.



O mestre e o .benfeitor. se despedem do antropólogo no final de Relatos de poder (Castaneda, RP). Castaneda, agora guerreiro, tem um longo caminho pela frente; um caminho com coração, um caminho que serve de metáfora à continuação deste trabalho antropológico, desta investigação acadêmica que estou iniciando. Diferentes Tonais são diferentes modos de ação e, portanto, diferentes mundos. Que mundo nós queremos habitar, homens modernos embebidos numa construção frenética de máquinas que fabricam objetos? O nosso mundo, a nossa invenção cultural de fato durará. Pelo menos o tempo da digestão da matéria, dos elementos sobre e sob o solo da terra que não cessamos de extrair e transformar em papéis, plásticos, metais e gases. Provavelmente os objetos que fabricamos testemunharão nossa finitude, como lhes pedimos para fazer. Este é o fim com o que nos comprometemos no cotidiano dos hábitos. Mas há outros possíveis modos de nutrição, de variação, como podemos testemunhar nas entrelinhas, nas linhas de fuga do texto antropológico. Há risos e .festas interdimensionais também no texto antropológico (Duvignaud 1979:202). E principalmente nos textos antropológicos de Castaneda, cujo autor é antes o mestre que o aprendiz. A função do guerreiro devora a funcionalidade da antropologia da duração. A morte é um presente pedindo para ser utilizado corretamente. Como é um presente a impecabilidade do guerreiro; um presente conquistado para o ser amado: um guerreiro .toca o menos possível o mundo ao seu redor. (Castaneda VI: 107), retirando do mundo só o que precisa para percorrê-lo e mastigando pouco a pouco o poder á medida que sua história pessoal se dissolve no ar, na planta, no animal, no vento, na água, na terra, nos elementos que se agrupam nesse ser esplêndido que ele ama, que ele escolhe amar: A TERRA.. . a predileção do guerreiro é a vida na terra.




.El amor de Genaro es el mundo. . decía . .Ahora mismo estaba

abrazando esta enorme tierra, pero siendo tan pequeño, no puede sino

nadar en ella. Pero la tierra sabe que Genaro la ama y por eso lo cuida.

Por eso la vida de Genaro está llena hasta el borde y su estado,

dondequiera que él se encuentre, siempre será la abundancia. Genaro

recorre las sendas de su ser amado, y en cualquier sitio que esté, está

completo. (Castaneda RP: 381).

Poderá a antropologia dar testemunho deste modo de estar no mundo, de ser mundo? Ou não é esta a tarefa que lhe compete? De qualquer modo, a antropologia é um veículo, e o caminho dependerá da escolha de quem viaje nela. Neste trabalho tentamos mostrar como a escolha de Castaneda de usar os .termos. de Don Juan para expressar os seus postulados é um modo de fazer antropologia que permite não só uma aproximação do Outro que queremos compreender, como também possibilita um modo diferente de experimentar os nossos próprios postulados, o nosso próprio mundo, a nossa descrição. E é justamente esta descrição que foi esquadrinhada na presente dissertação, a qual serve de ponto de encontro entre antropólogos, sociólogos, filósofos e xamãs, uma vez que suas produções, seus textos, suas palavras e seus conceitos pareciam, aos nossos olhos, ter muitos pontos em comum.



Carlos Castaneda mostra que é possível uma antropologia que, menos que produzir explicações, procura ser um veículo de expressão de modos de conhecimento e de experimentação do mundo que diferem dos nossos. Uma antropologia pronta para dialogar e deixar de reduzir os postulados dos povos que estuda a exemplos ou exceções que confirmem as suas próprias regras. Esta é uma difícil empresa que requer uma transformação e uma flexibilização conceitual que já vem acontecendo há algum tempo, como mostram os autores apresentados nesta dissertação. Porém, trata-se de um processo que requer ainda mais esforços de nossa parte, principalmente no que se refere aos estudos sobre o xamanismo. Pretendemos continuar nesta linha de investigação com nossos aportes ao modo (conceitual) da passagem, no intuito de propor alternativas ao modo do intervalo, da oposição e, inclusive, da dialética e da contradição, que tem preponderado na prática antropológica e na episteme ocidental como um todo.



Concluímos, então, que a fluidez conceitual, a fluidez do pensamento e do entendimento, enfim, o modo fluido da passagem são necessários para qualquer aproximação antropológica aos diversos postulados do que se chamava magia e agora se denomina xamanismo. Somente a partir deste ponto de vista, desta escolha conceitual nos parece possível aceitar como fato, e não só como valor, a .descrição mágica do mundo., na qual .a comunicação através de palavras com os animais era assunto rotineiro. (Castaneda RP: 15); na qual existe uma série de técnicas que .dão fluidez à personalidade e ao mundo. de modo a .eliminar a impraticabilidade de ter um duplo no mundo ordinário. (RP: 67); na qual não é mais preciso o apego à duração, uma vez que qualquer instante pode ser uma passagem ao infinito...




.¿Sabes que puedes extenderte hasta el infinito en cualquiera de las

direcciones que he señalado?. . prosiguió .. .¿Sabes que un momento

puede ser la eternidad? Esto no es una adivinanza; es un hecho, pero sólo

si te montas en ese momento y lo usas para llevar la totalidad de ti mismo

hasta el infinito, en cualquier dirección. (Castaneda RP: 19).



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário