quinta-feira, 10 de outubro de 2013

CURRUTELA (3)


Seu Adamastor tinha dito aquilo de um jeito pavorosamente parecido com o de Don Juan Matus: Me garantiu que o truque para ter eficiência e abandono em situações de alta tensão era enfrentar o adversário abertamente: ''Sempre olhe dentro dos olhos do homem com quem estiver disputando um cabo de guerra. Não se limite a puxar o cabo como um jumento. Levante os olhos e procure os olhos dele. Então você saberá que ele é um homem, igual á você. Não importa o que ele diga, não importa o que ele faça, ele está tremendo dentro das botas igualzinho á você. Um olhar como esse torna seu adversário incapaz, mesmo que seja apenas por um instante: e é exatamente nesse instante que você deve desferir o seu golpe'', parecia que eu tinha lido isso há cinco minutos, enquanto Seu Adamastor andava pelo alojamento como um profeta lunático tomado pela ira de Deus, praguejando tanto sozinho quanto comigo que também estava em pé andando em volta dele e da bagagem espalhada chão: "Puta que pariu mô fio, como cê foi se metê num apuro desse por causa de uma mulhé dessa(...) aquilo ali não vale nada, mô fio: é quenga crackenta de currutela(...) até eu já comi aquela mulhé(!)'', eu comecei a rir e imediatamente interrompi Seu Adamastor e disse que não tinha nenhuma relação com ela e que tinha me limitado a defender a pobre coitada de uma agressão injusta, não sentia nenhuma vontade ou atração física por ela, eu não teria coragem de toca-la nem sob a mais enlouquecedora necessidade sexual: olhava para ela e sabia que a chance dela estar com alguma doença venérea contagiosa era imensa. "Ela faz tudo que eu peço a ela com a maior boa vontade, Seu Adamastor(...) graças á ela eu não preciso ficar entrando toda hora naquela porcaria daquele bar(...) o senhor mesmo viu como aquela gente não foi nem um pouco com a minha cara de filhinho de papai(...)no meio dessa gente daqui eu sou um playboy, Seu Adamastor(...) é isso que eu sou aqui(.)''. Mas a exasperação dele era perfeitamente compreensível: tínhamos ido parar naquele lugar amaldiçoado por Deus em busca de gasolina para poder voltar para casa. Seu Adamastor tinha exagerado na quilometragem subindo rio acima para fazer novos testes, a maldita ganância é sempre o maior inimigo de um garimpeiro, muita gente perde a vida nesse meio querendo aumentar em uma grama o produto exaustivo de quarenta dias de trabalho. E assim apareceu aquela CURRUTELA no nosso caminho, como o único lugar possível onde podíamos agora encontrar gasolina: a gasolina que tinha não era mais suficiente para voltar ao município de onde tínhamos partido. Espalhada arruinadamente em ambas as margens, a currutela era um amontoado de casas marrons de bambu, esteiras e folhas, uma arquitetura tipo material-vegetal, brotando do solo marrom ás margens do rio lamacento. Algumas daquelas cabanas eram verdadeiras ocas indígenas, embora não houvesse índio nenhum ali, e sim garimperios arruinados, doentes deixados para trás, garotas de programa cadavéricas e todo tipo de foragidos da justiça. Os alojamentos eram como ninhos de uma raça aquática contaminada. Aqui e ali, amontoadas como pequenas cordilheiras de telhados marrons caindo aos pedaços sob os inclementes raios verticais do sol, que pareciam entrar pelos pulmões infectados das pessoas com o inspirar das narinas e embeber-se nos membros esqueléticos do corpo de cada infeliz habitante daquilo que eu tinha certeza se tratar do lugar mais próximo do inferno que eu já tinha pisado. Assim que nossa tripulação se acomodou toda espremida num daqueles alojamentos vazios, logo depois Seu Adamastor voltou do armazém da currutela dizendo que íamos ter que aguentar firme por ali quinze ou vinte dias, porque a gasolina deles tinha acabado e só voltariam para reabastecer dentro daquele prazo. "'Que azar, mô fio(...)'', ele disse e acendeu um cigarro, parecia já estar esperando pelo que aconteceu logo em seguida. Um dos caboclos da tripulação (ele já estava doente há dias e á todo momento interrogava Seu Adamastor sobre quando voltaríamos para casa, cada vez mais fora de si) se levantou do chão onde estávamos sentados, tirou uma faca da algibeira e partiu pra cima do velho , nitidamente disposto á matá-lo: ''DESGRAÇADO(!)'', e caiu por cima de Seu Adamastor, que deixou o cigarro rolar para o chão e fechou as duas mãos em volta do pescoço do sujeito. Em menos de dez segundos o sujeito já parecia ser apenas um peso inanimado sobre o corpo trincado de nevruras e veias saltadas no pescoço de Seu Adamastor. Antes de eu e os outros caboclos chegarmos para tentar separar a briga Seu Adamastor rolou o corpo do sujeito para o lado e levantou sem fazer esforço absolutamente nenhum. O cara estava morto, com uma repulsiva espuma escorrendo dos cantos da boca. Seu Adamastor passou a mão pela camisa para desamassa-la e antes de acender um novo cigarro fez o sinal da cruz e cuspiu em cima do morto. Ninguém falava nada. Ninguém falou nada. Meia hora depois tiraram o defunto dali e sumiram com ele dentro de um barco rio acima. Fiquei os quatro dias seguintes trancado dentro de um quarto escuro, sozinho, em estado de choque. Ninguém conversava mais absolutamente nada. Seu Adamastor tinha desaparecido, os outros homens passavam a maior parte do tempo embriagados no bar da currutela, jogando sinuca e aguardando a sua vez com alguma das garotas cadavéricas da espeluncaca caindo aos pedaços do outro lado do vilarejo. Eu não comia, nao bebia água e nem dormia direito. Meus cigarros tinha acabado logo no primeiro dia do meu confinamento. Ninguém vinha me chamar ou colocar á par da situação. Ao que parecia, uma epidemia de malária vinha derrubando toda aquela gente do lado de fora da porta do meu quarto. Até que uma enrouquecida voz feminina irrompeu através das paredes do quarto, desferindo leves pancadinhas na madeira oca da porta. "O Seu Adamastor mandou eu vir aqui conversar com você'', ela disse por trás da porta. Abri a porta mais por uma questão de desespero, para não morrer de fome ou enlouquecer completamente. Mas isso aqui é uma boca de garimpo, mô fio, então rebentamos por dentro como melões podres e nada sucede. Vomitamos as proprias tripas e disputamos quem consegue ter a febre mais alta sem morrer e nem por isso o curandeiro vem correndo; delírios, desmaios, reações alérgicas violentas e nada. Talvez já estejamos até mortos. Como podemos ter certeza. Ela trazia um prato de comida, um garrafão de água e um pacote de cigarros: ''O Seu Adamastor mandou eu trazer pra você(...)'', ela disse, colocando tudo em cima da cama. Ela era uma morena pardacenta dos seus trinta e poucos anos, muito magra e de olheiras pretas afundadas no rosto que pareciam buracos negros que a qualquer momento iam engolir os seus olhos: um verdadeiro defunto animado. Aquilo me comoveu a ponto de eu tirar um dinheiro da mochila e dar para ela sem nem pensar no que estava fazendo. Os olhos dela brilharam com o presente e então ficamos amigos. Eu não precisaria mais sair daquele quarto até a gasolina chegar, esse era o meu único pensamento. Durante aqueles dias de epidemia, ninguém entrava no meu quarto. Eu tinha decidido. As poucas vezes que batiam na porta, eu costumava não atender de jeito nenhum. Mas sabia que só poderia ser ela ou Seu Adamastor. Atendi ele uma vez e era como se nada tivesse acontecido. Sétimo, oitavo dia. "Morreu mais um(...) se continuar assim, vamo voltar com a balsa vazia pra cidade(..) eu e você somo os unico que num adoecero ainda, mô fio(...)'', ele disse, e esbugalhou aqueles olhos injetados que pareciam estar vasculhando cada pensamento meu naquele momento. Eu procurei me apegar mais á preocupação com a saúde da tripulação que tentou demonstrar, mas eu sabia que por trás daquelas palavras de preocupação estava fervilhando a maldita ganancia do velho em todas as direções do seu espírito de pirata com uma bandeira de caveira soterrada em cada um dos seus dois olhos de lunático."Trouxe pra você(..)'', ele disse, e me estendeu uma garrafinha plástica com um líquido verde escuro meio barrento dentro. ""Que diabo é isso, Seu Adamastor(?)'', perguntei, hesitando em tomar a garrafinha da sua mão. "Daime(...)'', ele disse, e empurrou a garrafa contra o meu peito. Segurei ela no susto e ele saiu pela porta afora sem dizer mais nenhuma palavra. Por ali circulavam os homens mais mal encarados e casca grossa que eu já tinha visto na vida. Podia-se dizer que uma boa parte era mesmo de foragidos da justiça ou marginais psicotizados pela vida de vício e sofrimento da cidade grande que vieram afundar o resto das suas miseráveis vidas no meio daquele galinheiro de maus elementos. Eu me limitava a sair de manhã até a frente do alojamento para tomar um pouco de sol, para não adoecer. Ela sumia e reaparecia dias depois com o olho roxo, me trazendo bananas, batatas cozidas e cigarros. Eu já não estava nem aí, relendo pela sétima vez seguidao único livro que tinha dentro da mochila: um livro de contos policiais de Raymond Chandler. Voltava do banheiro pensando que nem todo garimpeiro daquela currutela devia ser espancador de putas drogadas, e olhava de longe o calombo grená despontando da testa e maçã do rosto dela. Não tinha absolutamente nenhum assunto para conversar com ela. Eu estava deitado na cama comendo as frutas que ela tinha trazido e folheando revistas e jornais velhos jogados numa cesta. Eram datados do início da ocupação, dez anos atrás. Não fiz nenhuma menção explicita aos machucados. Ela também não. As frutas abundavam e eram emblemas naturais de sonho á nossa volta no quarto mergulhado em lombeira e luz picotada, quando de repente um indivíduo visivelmente transtornado invadiu o quarto com um canivete na mão e berrando uma confusão de palavrões e ameças de morte tão violentamente contra ela que a pobre coitada se encolheu num canto atrás da cama como um ratinho. Agora eu tinha ficado entre os dois, sem tempo de pensar em nada. ''Sái da minha frente, viado(!)'', ele gritou pra mim, encostando as pernas na beirada da cama. Quase vomitando de tanto ódio, abaixou de forma quase imperceptível a mão com o canivete na minha direção e eu imediatamente chutei sua mão e o canivete voou longe, levantei de um pulo e soquei a boca dele com as costas da mão. Ele caiu. Corri e apanhei o canivete do chão. Aqueles dias confinado dentro de um quarto escuro enquanto todos vomitavam as proprias tripas com febre do lado de fora tinha mexido com a minha cabeça, eu tinha ficado mau. Ele ainda estava de quatro no chão, tonto com a pancada na boca, quando eu corri na sua direção e bati um tiro de meta bem no meio da sua cabeça. Uma grande quantidade de sangue e alguns dentes podres voaram contra a parede do quarto. Naquele momento, eu desejava sinceramente que ele estivesse morto. Não sei como ele conseguiu, mas se levantou e saiu correndo do quarto e sumiu pela porta do alojamento. Ela continuva encolhida atrás da cama, mais calma agora. Na currutela só havia aquilo, todo dia era dia de morrer em vida no abafamento do quarto. Antes das dez da noite, só havia uma espécie de limbo escaldante insuportável do lado de fora. Um ou outro vulto de garimpeiro vagando á esmo em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, ou de cair duro na sua rede ou leito ou entrar em coma com febre. Há dias sem receber gasolina, barcos da cidade, nada nem ninguém. Hoje a caminho do vazio quente e inerte em que a abstração agourenta do quarto me dragava como uma draga de balsa á diesel. Depois do almoço, instalava-se aquele tétano vespertino dentro da alma e não tinha jeito. confraternizar porra nenhuma com ninguém, e seria capaz de jurar que meus colegas de balsa também não. A agonia se arrastava lentamente pela tarde, atingia uma espécie de redenção nervosa no crepúsculo... e tudo se desfazia em febre, cachaça e morte novamente. Pela janela, lá embaixo, cachorros entre os canteiros de palmeiras e latões de lixo em frente ao alojamento.. O sol poente vinha aliviar a inflamação da paisagem escaldante e colorir tudo com seu alaranjado digno de um pêssego descarnado ali, onde a natureza destilava o mundo dos homens com um fórceps virulento. Aquela vasta extensão de água brilhando a nossa frente como um fogo perdido no fundo do horizonte vermelho. Mas havia algo de apocalíptico naqueles entardeceres agourentos que eu via cair lentamente sobre a currutela e colorir um pouco a passagem do tempo. O quarto era um dramático quadrado de irrealidade apreensiva desafiando o crepúsculo com seu nada semi-naufragado na boca da noite. Eu estava debulhando toda aquela nauseante rotina do alojamento, quando súbitamente ela entra no quarto com as sacolas transbordando de mais frutas. Repito-lhe dez vezes obrigado e pergunto se o sujeito voltou a ir atrás dela. ''Não(..)'', ela disse... ""Mataram ele ontem á noite(.)''. Não deu tempo de absorver aquilo direito, viro o rosto para o lado e limpo o sangue imaginário da minha mente com a mão. Limpo o sangue imaginário da mão na perna imaginária dela e ela me dá um tapa imaginário no peito. Várias descargas soam ao mesmo tempo no alojamento, cujo som vai sendo engolido rapidamente pelo bafo repulsivo da sua boca semi desdentada. É qualquer coisa de embrulhar o estomago. Olho o relógio no pulso dela. São dezoito e vinte e um. Levanto, fecho a cortina e acendo um cigarro para mim e um para ela. Ela solta um grunhido de expectativa baixinho, esperando que eu diga alguma coisa, quer que eu diga o que, filha? 'Não diga(...)'', falei abrindo um riso rasgado de nervosismo no canto da boca... ''E como, quem foi(?)'' Do momento em que entrou pela porta do quarto até o momento em que deixei ela com a cara paralisada com os meus movimentos indecisos e abruptos de quem já está ficando meio maluco, não deu tempo de falar nada. Nenhuma novidade, da minha parte. Só a dela. ''Seu Adamastor(.), ela responde secamente. Ou é simples indiferença. Aceitação integral da dura e fria objetividade dos fatos. Mas ela parece estar contente. "SEU ADAMASTOR(!)'',eu repito num berro surpreendente e explodo numa diabólica gargalhada que inunda o quarto com a substancia contagiosa da minha loucura...Seu Adamastor havia eliminado o álcool para sempre por haver matado um homem na juventude com uma chave de braço na saída de um brega, numa cidade do Norte. A briga foi unicamente em função do álcool, me disse ele um dia. Com essa, até onde me era dado saber, já eram três mortes nas costas. QUALQUER UMA ME SERVIA, MÔ FIO. UMA QUE LEVANTASSE A SAIA E AGUENTASSE FIRME, ENTENDE... E ELE VEIO PRA CIMA DE MIM JUSTO NA HORA QUE EU TAVA MORDENDO O CANGOTE DA PRETINHA. ERA A TERCERA VEZ QUE EU JÁ IA COMENDO ELA DE NOVO QUANDO, FILHO DE UMA CADELA, ELE CAIU COM A MAO FECHADA NUM CACO DE VIDRO DO LADO DO MEU ROSTO. ABRIU UM ESQUINCHO DE SANGUE NA MINHA BLUSA, MAS NO SUSTO SEGUREI O PUNHO DELE E ESTIQUEI ELE EM VOLTA DO PESCOÇO NA DIAGONAL... NA VERDADE, O GOLPE NÃO ERA BEM ASSIM, E FOI JUSTAMENTE POR ISSO QUE ELE MORREU, O PESCOÇO QUEBRADO ‘’ACIDENTALMENTE’’... Eu não podia mais acreditar em tudo aquilo, já era demais para os meus nervos. Era como um pesadelo saindo de dentro do outro á cada dia, num ritmo lento e enlouquecedor. ''Quer saber, moça(...)'', eu virei para ela e disse inadvertidamente ""Obrigado por tudo que voce tem feito por mim, mas agora eu tenho que ficar sozinho(...)'', eu disse á ela da maneira mais educada que consegui e ela compreendeu imediatamente e saiu pela porta do quarto sem nenhum sinal de ressentimento pela minha abrupta reação de distanciamento. Três dias depois a gasolina chegou e nós fomos embora com três homens á menos na tripulação e sem despedir de ninguém.
(continua)
KALKI-MAITREYA

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