terça-feira, 8 de outubro de 2013

Cut-up: a técnica do recorte


A princípio, pode soar inusitado e antitético falar em "método ou técnica" de composição literária. Entretanto, numa observação mais detida, pode-se constatar que muitos autores se pautam em idiossincrasias específicas no processo da escrita, com o objetivo de alcançarem um determinado efeito. Nesse sentido, cito os célebres casos de Joyce e sua minuciosa criação de "casewords"- as "palavras-valise" - ; Aldous Huxley e a técnica do "contraponto" narrativo, que influenciou o Érico Veríssimo de Caminhos cruzados; o "fluxo de consciência" - "stream of consciousness" - nas obras de Gertrude Stein; o "real maravilhoso" e a "linguagem neobarroca", defendidos por Alejo Carpentier para a realização de uma literatura latinoamericana essencialmente participativa; a "desmemorização" nos escritos de Virginia Woolf; assim como a atmosfera que J. G. Ballard institui por meio do estilo que ele denomina "waking dreams": "[...] isto é, mostrar a realidade como se fosse um sonho, de modo que nada seja real e nos encontremos lançados em um universo onde tudo é imaginação ou pesadelo."16 Esses são alguns romancistas que nomearam seus respectivos estratagemas narrativos, que foram usados na exploração formal e/ou na condução de tramas. Alguns de concepção pessoal, outros, baseados em formulações alheias, mas que tiveram suas perspectivas sensivelmente ampliadas; como foi o caso de Gertrude Stein, Carpentier e, no esteio da influência musical, Kerouac e sua "prosódia Bop". Ainda, o procedimento em criar vocábulos polissêmicos a partir da junção de palavras e/ou morfemas, como em Joyce – riverrun, laughtears, roaratorios, reembody –, teve em Lewis Carrol um cultor precedente, que denominou esse expediente de "portmanteau word", em Alice Através do Espelho, de 188617. 16 Entrevista à revista Animal!, São Paulo, n. 18, p. 30-31, 1991. 17 A respeito do aproveitamento de recursos técnicos literários, sabemos que em Ulisses há uma verdadeira ostentação desses, inclusive o monólogo interior - que Joyce explorou e estendeu as possibilidades -, que foi aplicado, efetivamente, por Édouard Dujardin em seu livro Les lauries sans coupés, de 1887.
62Detournement - palavra francesa que significa "desvio", "rapto" ou "roubo - era a
maneira como Lautréamont (Isidore Ducasse) chamava o método que empregava ao
selecionar frases e expressões existentes, adicionando palavras e/ou suprimindo e substituindo
por outras, a fim de modificar a idéia, fazer galhofa, ou homenagear o autor da sentença.
Alfred Hitchcock, enquanto cineasta e escritor, possuía seu artifício particular, que
batizou de "Mac Guffin": a pista falsa, forjada para ludibriar personagens e o próprio
espectador.
Ainda no que se refere ao cinema, Oswald de Andrade flertou com a montagem de
cenas, típica desse meio, nas seqüências narrativas de suas obras, mais especificamente nas
duas primeiras partes de Os condenados e no clássico Memórias sentimentais de João
Miramar. Todavia, bem a sua maneira satírica e paródica, foi impreciso em conceituar a
técnica, como Antonio Candido nota no ensaio "Estouro e Libertação":
Certa vez, em entrevista, o sr. Oswald de Andrade referiu-se ao fato de ter
lançado a técnica contrapúntica no romance. Não me parece exato. Seria
mais certo dizer, como já se disse, que lançou, ostensivamente e em larga
escala (no Brasil, pelo menos), a técnica cinematográfica.18
Em tempo, convém lembrar que os procedimentos cinematográficos – especificamente
a maneira de captar imagens e a edição procedente – foram determinantes na constituição de
novas formas e idéias nos romances que surgiram no século XX.
E os expedientes não param por aí, há uma gama de outros autores que chegaram a
usar de algum artifício em específico, pré-concebido, na construção do texto literário, porém,
não o designaram, ao menos não em público. Thomas Mann, por exemplo, que aproveitou o
recurso do "dodecafonismo" - desenvolvido por Arnold Schoenberg (1874-1951) na música
- para a elaboração de Doctor Fausto, mas que no entanto deixou de denominar sua
artimanha - revelando a proposta somente em Diário de um romance.
18 CANDIDO, Antonio. Brigada Ligeira e outros escritos. São Paulo: Unesp, 1992. p. 20.
63Todavia, é possível afirmar que entre as técnicas empregadas em romances, uma das
mais inusitadas, sem dúvida, é o "cut-up".
O cut-up, o "recorte", teve seu nascimento nas artes-plásticas com Brion Gysin, amigo
próximo de Burroughs, que havia sistematizado uma maneira outra de agir sobre a tela, que
consistia em dispor recortes de jornais e outros, sobre sua superfície, para em seguida aplicar
uma, ou mais, emulsão cromática. Técnica não de todo inédita, pois Pablo Picasso e Georges Braque, entre o "outono de 1912 e a primavera de 1913", produziram telas montadas a partir de: [...] materiais ‘usados’, como jornal, rótulos, e cartão. Também são utilizados palavras letras e tipografia. Como essas obras não podiam ser incluídas na categoria de objeto de arte convencionais, foi cunhada uma
‘nova’ categoria: papiers collés, ‘papéis colados’ ou ‘colagens’. [...] Os
critérios aceitos para os media artísticos estavam sendo questionados quando não revistos. O mesmo se dava, ao que parecia, com as noções convencionais de ‘representação’. 19 Como se pode ver, o Cubismo é uma das vanguardas do começo do século XX, cuja concepção artística auxiliou a fundamentar o método do cut-up. E não se restringe às colagens, mas também englobam as considerações referentes às novas e revolucionárias perspectivas, no campo artístico, em encarar e representar os fenômenos e objetos. A sistematização da técnica cut-up ainda se filia a outra manifestação de vanguarda, o
Dadaísmo, que trouxe à tona dois ardis que sobremaneira inspiraram Burroughs, a saber: o
conceito de readymade20 de Marcel Duchamp, e a "receita" de "Como fazer um poema
dadaísta" de Tristan Tzara.
Sincrônica à pintura em estilo cut-up, estava a realização de poemas elaborados de
maneira análoga, cujos resultados logo entusiasmaram Burroughs, inclusive, pelo caráter de
destituição autoral sobre os versos, que eram retirados de seu contexto original - quase
sempre de autoria de poetas consagrados - e rearranjados com outros diferentes. Essas
"poesias-montagens" possuíam a intenção de expandir o sentido semântico das palavras
contidas nos excertos, privilegiando o detalhe, além de apresentarem implicações acerca de
questionamentos extra-artísticos.
Nessas "poesias" não se poupava o emprego de trechos das mais diversas procedências
– da Bíblia a bulas de remédio –, a fim de alcançar a impressão de simultaneidade, típica da
modernidade, em que cotidianamente somos bombardeados por avisos, anúncios,
propagandas, diretrizes e demais mensagens diretas e subliminares. Essa cacofonia do mundo
moderno, como sabemos, é produzida graças aos diversos meios de comunicação, como o
rádio, televisão, alto-falantes, outdoors, panfletos etc.
Assim, Burroughs também utilizou gravadores para misturar diferentes sons, falas e
discursos, colhidos no cotidiano, para em seguida transcrever a cacofonia que lhe interessava.
Uma outra intenção, presente nesses poemas e escritos elaborados de maneira
aleatória, é o desejo em representar o fenômeno das sensações despertadas quando
presenciamos um evento, contemplamos uma paisagem ou vemos um objeto. Em outras
palavras, por meio desse processo salienta-se o fato de não sermos receptáculos passivos do
que é observado, mas seres em interação com o meio em que nos encontramos, na medida em
que esse contexto nos desperta sentimentos e lembranças, não de maneira linear e estanque,
mas conforme a memória vai aleatoriamente sendo estimulada.
Essas são características que legitimam a técnica do cut-up enquanto produção
tipicamente modernista21.
Burroughs foi o responsável por levar o cut-up ao romance. Elaborou vários a partir da
técnica; todavia, diversificou no processo das composições. Assim, alguns foram realizados
de forma mais análoga à poesia cut-up, como na chamada "trilogia cut-up", composta pelos
livros: The Soft Machine (1961), The Ticket That Exploded (1962) e Nova Express (1964).
Nesse último, a técnica foi empregada maciçamente, sendo a obra, quase que por completo,
construída com trechos colhidos em outros autores. Como Burroughs relata nesta entrevista a
Conrad Knickerbocker da Paris Review:
Joyce está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores de quem as pessoas
não ouviram falar, alguém chamado Jack Stern. Há Kerouac. Não sei,
quando você começa a fazer esses folding e cut-ups, você perde a conta. [...]
Também Kafka, Eliot; e um dos meus favoritos é Joseph Conrad. [...] E
Graham Greene.22
O folding, mencionado por Burroughs, possui efeito parecido com o do cut-up, mas
enquanto "dobradura": processo em que basta pegar uma página de Os ratos, por exemplo, e
dobrá-la em seções, de modo que resulte num texto com alterações sintáticas inusitadas.
 

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