quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Emergência espiritual e renovação


 
John Weir Perry, M.D., é psiquiatra e analista junguiano na Califórnia. Formou-se na Harvard Medical School em 1941 e serviu na China em equipes médicas de Friends Ambulance Unit durante a Segunda Guerra.Seu contato com uma cultura tão radicalmente diferente da sua teve nele profundo impacto, mostrando-lhe o caráter relativo das perspectivas culturais e inspirando-o a buscar elementos universais na psique humana. Sua compreensão da filosofia e da cultura orientais também o ajudou a aceitar as idéias psicológicas e psiquiátricas fundamentalmente inovadoras de Jung e dos seus seguidores, visto que o próprio Jung foi profundamente impressionado e influenciado pelas psicologias espiritualistas do Oriente.

 

Surpreendo-me com freqüência diante da extrema turbulência que acompanha a mudança psíquica profunda. Quando um despertar e uma transformação espirituais verdadeiros acontecem, deparamos com imagens de morte e de destruição do próprio mundo. A psique não se exprime com suavidade, mas gostaríamos de pensar que esse movimento do espírito viria a ocorrer de maneira mais organizada por meio da exposição a tarefas práticas, exercícios e outras técnicas de instrução. Nossa esperança, como psicoterapeutas profissionais, é a de que essas tendências possam produzir a mudança de modo mais delicado. Mas, como o observou Jung, há com freqüência períodos deveras incômodos de desadaptação ao lado de episódios de estados alterados de consciência
Qual a necessidade de tanta balbúrdia? Há boas razões para isso, que dependem de uma segunda pergunta: O que é o espírito e qual a sua natureza?As pessoas costumam definir a palavra

espiritual
de maneira frouxa, designando com ela tudo o que eleve; no outro extremo, ela significa coisas imponentes, seráficas, rarefeitas, bem acima da natureza, que ocorrem em algum outro nível e, portanto, sobrenaturais. Na descrição das culturas, o termo costuma ter o sentido de aspectos não materiais, não econômicos e não políticos.Observando a fenomenologia real do espírito, obtemos uma impressão diferente. Suas antigas designações implicam o alento ou o ar, especialmente o ar em movimento e
portanto, o vento - em hebraico,
ruach
; em latim,
animus
; no Extremo Oriente,
prana
ou
ch'i
. A própria palavra "espírito" traz o sentido de alento, sendo derivada do vocábulo latino
spiritus
. Tudo isso denota de modo claro um dinamismo invisível como o ar, mas com um poder comparável ao do vento. Ele "sopra onde quer", diz a Bíblia, sugerindo uma vontade própria. Em suma, o espírito é um dinamismo de forte movimento livre de estrutura material. Essas descrições nos levam a pensar o espírito como pura energia; mas numa observação mais detida, descobrimos mais do que isso - tipicamente, as experiências com o espírito dão dele a impressão de que tem voz, sendo as pessoas "movidas pelo espírito". Assim, ele parece ter a propriedade da intenção, de estar pleno de informação, aspecto que poderia ser definido como "energia informada" ou energia com a qualidade da mente. Não podemos separá-lo da sua forma plural, "espíritos". Nas antigas sociedades tradicionais, trata-se de dinamismos invisíveis que habitam o mundo natural, a vida biológica em especial, mas também as montanhas, os córregos, as fontes, e um sistema de crença chamado animismo. Para os clarividentes, eles parecem ter uma voz e assumir uma visibilidade personificada. Eles também exigem muita atenção da comunidade humana, na forma de oferendas e sacrifícios. Quando se vive numa sociedade dessa espécie (como eu vivi, na China), tem-se uma permanente consciência dessa outra dimensão da existência, uma existência que há muito relegamos ao esquecimento.Menos incomuns nas sociedades não-sofisticadas são as experiências com espíritos pertinentes ao reino da vida depois da morte, as experiências com os mortos. A morte é considerada uma libertação do espírito do corpo por meio de um processo de transformação chamado transfiguração. Na China, o Céu é reverenciado como uma presença que rege os assuntos do mundo, sendo composto por um conglomerado de espíritos ancestrais (realezas) e dotado de intenção e de vontade. Nas tradições antigas
de todo o mundo, os espíritos são seres ancestrais altamente prezados que se fazem ouvir, dão instruções e conselhos e até fazem exigências. Ao visitar comunidades negras na África, surpreendi-me com a constante atenção dada a esses espíritos como um fato corriqueiro da vida cotidiana.A partir dessa visão panorâmica da gama de manifestações do espírito e dos espíritos, podemos ver que o espírito tanto pode ser livre de estrutura corporal como engajado numa luta para libertar-se desta. Considero esse entendimento útil à compreensão da maneira como o espírito opera em experiências psicológicas. Porque,aqui também, encontramos o espírito em luta constante pela libertação do seu estorvo: estruturas mentais ou convencionais rotineiras. O trabalho espiritual é uma tentativa de libertação dessa energia dinâmica, que deve se livrar de sua sufocação em formas antigas: padrões emocionais como os complexos engendrados no sistema familiar; pressupostos sobre a natureza do mundo e da vida humana; valores que precisam de revisão à medida que as condições mudam; e formas culturais advindas da família, das subculturas ou do condicionamento cultural dominante, que devem mudar com o tempo.Mais uma vez, há antigas tradições que exprimem essa obra do espírito libertador, tal como o fazem os labores emocionalmente dolorosos dos Filósofos da Natureza, que se dedicavam a libertar o
NOUS
da
PHYSIS
- o espírito da prisão à matéria - no mundo natural e no corpo.No curso do processo de desenvolvimento de uma pessoa, o fato de esse trabalho de libertação do espírito tornar-se imperativo mas não ser realizado voluntariamente com conhecimento do alvo e com esforço considerável, a psique pode vir a assumir o comando e sobrecarregar a personalidade consciente com a força dos seus próprios processos. Observei esses processos em muitos casos e vi neles uma seqüência específica que formulei sob a denominação de "processo de renovação" (Perry,1953,1974,1976).

O Processo de Renovação
 
Qual a maneira pela qual a psique executa o processo de renovação? Nessa discussão, continuarei a descrever as manifestações mais extremas, por serem elas passíveis de observação mais clara.O momento de entrada na torrente de confusão e na miscelânea de imagens visionárias assemelha-se à experiência de morrer e passar para a vida depois da morte. Para a pessoa chegar a esse ponto, ocorre antes, de modo geral, uma passagem gradual da atenção - que passa do envolvimento com a realidade convencional para preocupações com a realidade mais intensa da vida interior. Nesse ponto, a energia do campo consciente cai de maneira dramática; ao mesmo tempo, o nível arquetípico da psique profunda, com a sua profusão de imagens míticas, sofre intensa ativação. Essa sobrecarga de energia produz o que Roland Fischer denomina "estado de elevada excitação". Esse termo psicológico é adequado como descrição desapaixona da mente objetiva desses eventos; mas, do ponto de vista subjetivo, devemos pensar na linguagem das quedas d'água esmagadoras da ideação mítica e das formas simbólicas. Durante esse processo, toda manifestação traz em si uma multiplicidade de significados.O foco dessa ativação e dessa energia é o arquétipo do centro, aquilo que Jung descreveu como o
SELF
, representado por círculos quadrados e mandalas. O curso do processo e as imagens que o acompanham apontam para esse centro (tomado como aquilo que é renovado), e todas as partes e fases da renovação são representadas como eventos que ocorrem nesse centro, seu recipiente de transformação. Descrevi antes os componentes e estágios do processo de renovação, bem como seus paralelos míticos e ritualísticos da antigüidade (Perry, 1966, 1976). O processo tem uma Venerável história de cinco mil anos e sempre tomou a forma de um drama ritual que se desenrola num centro de trabalho estabelecido no interior do
Self
. Depois da experiência da morte e de vida depois da morte, vem uma regressão no tempo até os primórdios - no caso do passado individual, de volta à mãe, como o seu bebê, ao próprio nascimento e até o estado intra-uterino -, de volta à dimensão mais ampla do passado do mundo, à criação e até ao estado de caos anterior a ela. A auto-imagem e a imagem do mundo refletem-se mutuamente e seguem em paralelo entre si ao longo dessa seqüência.Todavia, nem tudo é suave nessa representação dos primórdios. Os opostos passam por uma vívida constelação; forças que se empenham em destruir toda a existência entram em conflito cósmico com as forças benignas de preservação e de regeneração do mundo. Ao mesmo tempo, opostos de todos os níveis batalham entre si pela ascendência.
Esses são os elementos pesados, assustadores e até causadores de terror da progressão da renovação; há elementos mais leves, tais como a imagem inflada de si mesmo, numa apoteose de herói ou heroína, de santo, de salvador, de messias ou rei. Nesse caso, temos a experiência de participar de um ''hieros gamos'' , de um matrimônio sagrado ou celestial com alguma figura mítica ou divina, com toda a descarga correspondente de emoção erótica. Nessa função messiânica, a pessoa também crê que foi especialmente escolhida para promover reformas religiosas ou sociais em escala universal, realizando assim um aspecto significativo da regeneração do mundo. A auto-imagem é renovada num renascimento ou, por vezes, num novo nascimento provocado por um resultado proveitoso do matrimônio sagrado. Por meio dessa interação de opostos, podemos discernir o choque, a reversão e a união. Na profusão de desenhos e pinturas que surgiram como expressão desses acontecimentos interiores, cada elemento do processo tende a ser representado em forma de mandala (que simboliza o centro arquetípico, o Self ), que é bem conhecida como continente de opostos.
Mas, pode-se objetar, o Self não é transcendente e eterno? Como pode ele passar pela morte e pela desintegração? Não é do ego que se espera a passagem por uma morte oblativa? Para obter a resposta, examinamos o mito e o ritual. Na tradição cristã, Jesus foi a encarnação da divindade eterna e a representação do Self ; sua morte e transfiguração simbolizaram o processo de renovação nessa fé. O batismo, por exemplo, era originalmente uma iniciação no reino espiritual de que Jesus era o rei. Três milênios antes, o cerimonial da coroação sacra do antigo Oriente Próximo foi desenvolvido. Funcionários reais, na qualidade de delegados da divindade e personificações do centro, submetiam-se ao ritual anual de morte-e-renovação nos grandes festivais comunitários do Ano Novo. Eis a fonte de estreitos paralelos dos atuais processos de renovação individual. Podemos pensar nos deuses mortais - Baal no Oriente Próximo, Adônis nas culturas mediterrâneas ou Freyr nas nórdicas - como espíritos da vegetação e da fertilidade, mas cada um desses nomes é traduzido por Senhor na conotação real, implicando o papel de centro ( Self ). A recente ênfase no egocídio ou morte do ego pode deixar de lado o essencial, visto que esses termos implicam um evento conscientemente desejado. A verdadeira morte transformadora costuma vir de modo inesperado, se não mal-recebido, acontecendo conosco e apesar de nós. Trata-se de um processo autônomo, arquetípico, um movimento do espírito no reino do mito e do ritual. A natureza do centro arquetípico ( Self ) supõe a passagem por seqüências cíclicas de nascimento, morte e ressurreição. As pessoas de culturas antigas ou arcaicas compreendem bem isso. Contudo, essa natureza tornou-se estranha para o homem moderno, que ama o progresso linear (se é que ele existe) ou uma presença residente que de algum modo consegue evitar o mundo cíclico da natureza. Podemos resolver toda a contradição aí existente se aprimorarmos a nossa compreensão da diferença entre o próprio centro arquetípico e a imagem que o representa - que não é um retrato, mas a forma e a qualidade que o centro assume na nossa experiência real. Por exemplo, quando minha exploração analítica das profundezas estava em curso, esse centro foi apresentado inicialmente, nos sonhos, na forma de igrejas extraordinárias, semelhantes a mandalas - decorrência da minha formação espiritual. Sonhos ulteriores anunciaram um abalo desse contexto cultural: uma cena mostrou a Abadia de Westminster transformada numa concha de pedra, rara e delicadamas vazia, ao mesmo tempo que um guia apontava para as montanhas misteriosamente moldadas e coloridas da China como a área em que o numinoso, o espírito vivo, passara a viver (essas montanhas marcam o centro e os quatro pontos cardeais do mundo chinês). Hoje, minha visão de mundo é mais taoísta do que cristã.O centro arquetípico permanece, mas a imagem que o representa precisa ser renovada ciclicamente, com todas as implicações que isso acarreta para o quadro, para o estilo de vida e para o sistema de valores que determinam a existência de cada um. Só podemos apreender o centro por meio da sua personificação em imagens, que sofrem uma transformação periódica no desenvolvimento da psique; nenhuma de suas formas é estática. A psique em processo de individuação tem tanta ojeriza do estático quanto a natureza tem do vácuo; nela, o espírito se furta à prisão em formas ou estruturas que não possam crescer. Os taoístas entendiam muito bem o fato de os opostos não serem por si entidades reais, mas sim, tal como o Yin e o Yang, elementos num fluxo perpétuo que giram em torno um do outro em suas alternâncias de ascendência e submissão, enquanto o Tao continua sem nome e sem definição. Portanto, de tempos em tempos, a forma do Self é designada por um certo símbolo ou imagem mítica, que capta a essência dinâmica dessa fase da vida de uma pessoa até que ela termine seu trabalho e chegue a hora de sua dissolução. O ego sente que alguma coisa está morrendo e só muda secundariamente, em função da queda da imagem do Self , o centro. O que acontece com o ego reflete os dinamismos da psique
arquetípica. Dentre os dois níveis da auto-imagem, cabe ao arquetípico, a realização de transformações profundas, enquanto o pessoal, presente na personalidade consciente, reflete essas mudanças mais superficiais. Desse modo, a reorganização do eu ocorre em ambos os níveis.O processo de renovação começa com a predominância de imagens e de sentimentos de prestígio e de poder, muitos dos quais compensam uma auto-imagem depreciada, uma baixa opinião sobre si mesmo; essas imagens refletem o idioma da subcultura familiar em que a pessoa foi criada. Mas a direção do processo é a ativação de motivações e de capacidades que levem ao amor e à compaixão. Trata-se do principal fruto do trabalho do espírito, seu alvo primordial e último podendo ser vivido tanto como calor e intimidade nos relacionamentos quanto como um sentido direto da unidade de todos os seres – não apenas como uma crença ou concepção sobre o modo de ser das coisas, mas como a percepção concreta disso. O resultado do processo tem implicações evolutivas; entre os paralelos no mito e no ritual ao longo da história, podemos remontar à ascensão dessa capacidade humana numa percepção e numa expressão culturais que substituem uma predileção anterior pelo domínio e pela violência. Isso ocorreu nas várias partes do mundo em que as culturas sobreviveram por um número de séculos suficiente para alcançarem a sua plena maturidade.

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