sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ESTRANHOS EMBORA ÍNTIMOS (9)


 
À medida que eu ia avançando na tarefa de arrumar as mesas na beira da piscina e limpar sozinho toda aquela sujeira que trinta e poucos hóspedes de goela e intelecto hiper-ativos tinham deixado para trás, notei que todos foram se debandando para dentro da pousada ou dos próprios quartos, a maioria já um pouco altos, desiteressados do que o sábado á noite poderia lhes oferecer além dos limites daquela praia e casa. A ilha, em si, não tinha lá muitos atrativos urbanos, a não ser os habitantes locais andando no calçadão do centro comercial do distrito para lá e para cá monotonamente até as dez ou onze da noite. A última vez que entrei na pousada, para pegar um pano de chão, notei que Carmen e as outras garotas estavam tentando preparar um peixe assado na cozinha á oito mãos. Ainda faltava uma boa quantidade de serviço pela frente quando, saindo da cozinha, eu percebi ela sentada sozinha na cadeira de vime na varanda frontal ao mar. Com um copo de gim na mão, ela olhava fixamente para a escuridão silenciosa da praia através dos quiosques e coqueiros em frente á piscina iluminada. Tinha a compacta serenidade de uma árvore. Os cabelos loiros, a pele bronzeada e os olhos azuis-cinzentos eram de um só matiz na varanda cheia de sombras. Assim que me percebeu olhando para ela de dentro do quiosque, se moveu imperceptivelmente com uma ligeira presteza e me sorriu com um ar vago, como se tivesse acabado de examinar uma possibilidade de algo abstrato e, ao me ver ali, prontamente abandonasse a idéia. Continuei olhando para ela inquisitivamente e as pequenas reações imperceptíveis de seus movimentos foram ganhando uma rapidez de apreensão. --- O que foi(?), ela perguntou de lá. Não respondi. Apenas sorri, olhando para baixo, e acendi um cigarro. Os olhos dela agora mostraram um brilho mais duro, fora do comum. Talvez ela tivesse bebido e pensado demais, de longe eu já podia sentir um fator imprevisto agindo nela, um agente químico não usual interferindo em seu corpo. Como eu não respondi e permaneci impassível dentro da meia-escuridão do quiosque, fumando com um sorriso parcialmente camuflado por sombras, ela recuou calada para a posição inicial de árvore imóvel. Parecia divertidamente aborrecida de que, tendo sentido de um ângulo inesperado a propalada força do meu olhar inquisitivo, tivesse se mostrado também inesperadamente tímida diante dos próprios pensamentos ou acusado um sinal de fraqueza. À noite, sob a luz da Lua, sua amorfa instabilidade de ânimo era menos ameaçadora, mas sempre digna de algum cuidado. Meu sorriso tinha deixado ela francamente curiosa e meus olhos, que por um momento ela tinha encarado de frente á distância, refletiam, na completa ausência de reflexão racional do momento, o alumínio, o vento e o céu preto das grandes provocações silenciosas. Ela sabia que eu vivia permanentemente exilado lá no alto, na metálica vastidão acima das nuvens demasiadamente humanas e sentimentais. A súbita maneira dela tinha sido uma provocação também, ou contra-provocação, que procurava diminuir a importância da minha com um súbito dote de véus virginais ocultando o real conteúdo de sua mente diante de mim. Aquilo lhe devolveu imediatamente a leveza. Nosso relacionamento era como uma religião feita de ficções instáveis. Acabei de fumar e fui até lá falar com ela, assim que pisei na varanda eu disse: ---Não há mais nada para se fazer aqui senão ser feliz a cada dia que passa (...) ----, ela riu vagamente. Acertei: ela tinha bebido demais e estava envolta em névoas reminescentes profundamente alcóolicas. ---No quê você estava pensando, antes de me ver ali no quiosque(?)---, perguntei. Ela soluçou como uma garotinha antes de falar e eu não resisti ao impulso de pegar nos seus cabelos e me oferecer para ir até a cozinha pegar um copo de água. ----Só uma desculpa esfarrapada para ir ver a Carmen, ela e as outras garotas estão fazendo o jantar. Disse aos hóspedes que sábado á noite aqui era cada um por si, nem lembrei de ir no mercado fazer compras. Só tinha um monte de peixe congelado no freezer. ---, ela disse e colocou o copo sobre a mesa ao lado. Subiu os pés na cadeira e apertou os joelhos contra os seios como uma adolescente num camping. Continuei pegando em seus cabelos e perguntei de novo: --- No quê você estava pensando, parecia intenso á distância. ---, ela hesitou, um pouco contrariada, e respondeu: --- Credo, você parece uma ave de rapina premonitória, já não se pode mais pensar impunimente por aqui(.) Estava pensando sobre um monte de coisas que nunca te contei(.) ----, ela confessou, rindo um riso diferente, enlançou seus braços nos meus e continuou: --- Adoro suas mãos(.) ---, soluçou novamente. ----Você me disse isso outro dia(.) Vou lá dentro buscar um copo de água pra você e aí você me conta todas essas coisas que nunca me contou, ok(?!) ---, eu disse e me dirigi á cozinha, onde me deparei com um pequeno carnaval romano em volta do fogão industrial: Carmen, as outras três garotas, Arthur e Susana, Juan e Vitória, e um jovem pálido, alto e esquelético que com algum esforço eu identifiquei como sendo o junkie ciberpunk rico e leigo que apenas buscava ajuda para se livrar das drogas. Saulo, seu nome. Os homens estavam lado á lado contra a porta da geladeira segurando copos de cerveja. Em volta do fogão industrial, o trio de garotas comandava a preparação de um verdadeiro cardume esquartejado sobre o tabuleiro, temperados e arrumados em postas de filé com molho verde em cima. Minha primeira impressão foi de que eram exóticas e exageradamente bonitas, levemente esfuziantes entre as outras pessoas, simpáticas e repetitivas ao mesmo tempo, como se estivessem sempre sozinhas e amarradas uma na outra, tentando demonstrar espírito gregário por seis, quando na verdade eram apenas três e essa última qualidade simplesmente lhes faltava. Mas me pareceu também que se tornariam aceleradamente interessantes depois da segunda ou terceira dose de qualquer coisa. Juntas traziam consigo um estilo, algo como uma amabilidade distraída e auto-suficiente que as outras mulheres ali achavam extremamente charmoso e tentavam imitar sem suscesso. Divertidas á medida que bebiam e suportavam melhor a carga excessiva de gentileza com que eram tratadas pelos outros hóspedes. Pedi licença para os três homens e abri a porta da geladeira em busca da garrafa de água. Eles estavam rindo de alguma coisa que Arthur tinha falado antes de eu entrar: o riso dele era ainda aquele inervante rosnado, espantosa reversão facial que lhe transformava os olhos em estreitas fendas e lhe deformava o rosto como o rugido na cara de um leão num baixo-relevo assírio. Carmen, por sua vez, ainda que muito novinha, sentia que seu sexo lhe dava o direito de se aproximar e interagir naturalmente com as garotas em volta do fogão. Ela me olhou com o rabo do olho assim que eu entrei na cozinha e ficou surpresa com a rapidez e presteza com que enchi o copo de água e me retirei. Devia saber áquela altura que a única pessoa que restava lá fora era ela, sua mais recente ídola. E não descarto que tenha sentido uma infantil pontada de ciúmes... digo: dela, não de mim. Resta dizer que Susana e Vitória me pareceram completamente embriagadas e risonhas e que permaneci muito pouco tempo ali para perceber mais do que isso. Voltei para a varanda e ela continuava olhando para a praia escura fixamente com os braços em volta dos joelhos. --- Então(?) ---, eu disse, --- Você adora minhas mãos(.) Agora, me conte todo o resto(.) ---, ela pegou o copo de água da minha mão e sorveu-o de um só gole. ---- Você sempre com esse ar trivial e sem afetação, como se fosse o mais seguro e complacente dos homens, sempre(.) Não sei bem porque deixei de te contar todas essas coisas: por exemplo, que eu era ainda casada e dormia com meu marido na época em que começamos a nos encontrar(.) Digo: aquele tempo todo, sabe... estive com ele e com você ao mesmo tempo(.) ---, ela confessou, mas eu não sentia nenhum sentimento de culpa no tom levemente alcoolizado de sua voz, mesmo por que nunca tínhamos assumido nenhum tipo de compromisso até hoje. ---- Bem, é estranho só me contar agora(.) Mas que diferença poderia fazer se nunca nos prometemos nada(?) ---, ponderei neutramente, com o ar sóbrio de quem não estava se sentindo particularmente afetado pela sua revelação. --- Sei lá, acho que estava buscando inconscientemente ''apagar minha história pessoal'', como em Castaneda(.) Talvez tenha sido um pouco vulgar tudo aquilo(.) ---, agora ela falava como se procurasse afastar de nós dois aquele detestável ar de comadres cochichando entre si e realçar a perspectiva de que éramos dois bruxos amantes que nunca deveram nada um ao outro. --- Deixa isso pra lá, já passou(...) --- eu disse desinteressadamente e ela retrucou: ---Você é o tipo de homem com quem as mulheres gostam de fazer experiências gratuitas, além do mais já morou junto com várias mulheres e acabou perdendo aquela aflição irritante dos homens muito obedientes ás regras do circuito social, aquela baixa energia constante de quem vive constantemente defendendo a imagem social de si mesmo entre os outros(.) --- interrompi sua tentativa de comentário elogioso antes que ele mergulhasse nas sombras dos meus evidentes defeitos anti-sociais e ela concluísse dizendo que eu era apenas uma alma penada munida de volúpia carnal. Perguntei: --- Você ficou com medo de que eu fizesse alguma coisa para que ele ficasse sabendo de nós(?) Acha que ele teria vindo se entender comigo(?) Com um revólver, por exemplo(?) ---, círculos de vibração, tão finos como molas de relógio, oscilaram na superfície do gim dentro do seu copo. Eu ri, pensando que havia surgido agora uma inesperada e nova poesia noir nos olhos daquela mulher. ----Claro que não, como você é bobo(!) Mas se ele tivesse me apresentado alguma prova acho que teria contado sobre você(.) Ele já quase não me procurava mais na cama, era como um navio com o casco trincado afundando lentamente no mar de um casamento extinto(.) Sempre que tentava provocar nele alguma reação de ciúme, ele se mostrava tão tristemente sem tato e irônico que eu acabava me sentindo magoada e deprimida(.) Quando eu te conheci naquela festa, imediatamente senti que estava diante de um futuro parceiro sexual(.) Calculei tudo: que você era jovem e não tinha muito dinheiro, possuía uma saúde de ferro e poucos vínculos humanos, vivia longe da família ou nem sequer tinha uma, que provavelmente andava pelo mundo ao léu como um cigano solitário e indiferente á dureza da vida a sua volta(...) Por isso logo me tornei sua amiga, pedi o número do seu celular e perguntei aonde você estava hospedado(.) É um defeito feminino, tentar sexualizar a amizade tão rápidamente(.) ---, ela disse e olhou para mim com um golpe de água reminescente brilhando nos olhos. --- De jeito nenhum, faça o favor de continuar sexualizando nossa amizade(.) É um dom, não um defeito feminino(.) De fato, lembro que você me chamou na recepção daquela pensão caindo aos pedaços em Amaralina, onde eu estava morando provisoriamente, e ignorou completamente a presença do porteiro, dizendo: --- ''Escuta, estou com uma fixação por você desde aquela noite em que dormimos juntos(.) não sei como me expressar direito, você vive num mundo muito diferente do meu(.)'', e me beijou(.) ---, eu relembrei, achando graça de quando olhei para o porteiro e supreendi ele com o olhar suspenso num transe de expectativa, como se fôssemos dois personagens que tivessem invadido aquela pensão de repente para gravar uma cena da novela das oito. --- É verdade, foi assim que começou(...) he he(...) ---, ela concluiu e me puxou pelo braço para perto de si, agachei desajeitadamente e beijei seus braços e joelhos. A partir de então, passamos a buscar áreas mais imprevisíveis de Salvador no carro dela. Descíamos depois de rodar muito por todos os lados da cidade e andávamos de mãos dadas através dos odores marinhos no cais da Cidade-Baixa ou da luz ofuscante dos holofotes em frente ao Soho, sempre em busca do restaurante obscuro perfeito, com mesa no canto, ausência de conhecidos do mundo de negócios imobiliários dela ou da clínica do marido. Falávamos de nós dois, de frente um para o outro, fazendo confissões que mesmo depois de horas de conversa continuavam seladas em âmbar, roçando nossas mãos longamente em pequenas admoestações recíprocas carregas de paixão sexual violenta. --- Adoro suas mãos, de novo(.) Gosto que elas peguem em mim(.) Quer saber: me senti culpada pelo meu marido, naquela época(...) Nunca foi difícil para mulher nenhuma enganar um cônjugue na primeira vez, porque a pessoa enganada não dispõe de anti-corpos, não está vacinada pela suspeita e não dá atenção aos atrasos, aceita as explicações mais absurdas, permite que os mais desajeitados remendos de histórias e horários consertem os grandes rasgões de ausência do cotidiano(.) ---, ela disse, parecendo falar com a propriedade de uma perita no assunto. ---- Uma vez uma namoradinha me passou para trás, mas eu gostava tão pouco dela que preferi encarar a coisa pelo lado mais pragmático(.) Além do mais, meu coração reage diferente á esse tipo de coisa, porque nunca tive que me preocupar com a opinião dos outros... porque nunca existiram outros na minha vida(.) Aos poucos me acostumei com a idéia de que, pelo menos nos lugares por onde andei a maior parte do tempo, as pessoas não valiam absolutamente nada logo de partida(.) Mas pelo menos das mulheres que eu realmente amei guardo uma graciosa recordação e um sentimento de profunda amizade, embora nunca mais tenha visto a maior parte(.) ---, eu concluí e ela imediatamente voltou com os flash-backs do ex-marido: --- ''Que roupa amarrotada é essa (?)'', meu marido me perguntou numa noite daquelas em que eu e você nos encontrávamos na casa de madeira da minha família, em Guarajuba(.) Olhei para mim mesma no espelho e vi três fios de cabelo seus presos na minha saia de veludo. Olhando, apenas senti uma coisa quente e molhada palpitando dentro de mim e não falei nada, sentindo que minha arisca pantomima silenciosa estava encharcada da lembrança dos nossos corpos dentro daquela casa de madeira(.) Silenciosamente, eu obrigava meu espírito á estabilidade e á dissimulação, enquanto meu corpo dentro da saia continuava preso á erupção do seu(.) Ele me olhou desconfiado aquele dia e eu lhe devolvi um derradeiro olhar sombrio, que provavelmente dizia mais do que ele queria saber, até que um dia ele tomou coragem e me perguntou(:) ''Você está tendo um caso(?)'', com o rosto retorcido pelo choro e o corpo todo tremendo(.) Me limitei a dizer que não, mesmo sabendo que já era impossível convencê-lo e que da minha fisionomia jorrava uma fria, serena e metálica expressão de superioridade, de um belo segredo sexual continuamente experimentado(.) ---, assim que ela acabou de falar, eu voltei a me lembrar nos mínimos detalhes daquela casa de madeira no condomíno em Guarajuba. Era assim, ainda mais segura e remota que qualquer motel que já tivéssemos ido. Raríssimas vezes ela tinha ido com o marido até aquela casa. Dentro de sua segurança obscura, parcialmente invisível entre coqueiros e ipês amarelos, a casa dominava a vista da lagoa de água salgada que nas margens parecia um oásis de areia branca rodeado por um vidro escuro. O cheiro do mar que se infiltrava pelas persianas era mais salino e acre do que o do mar em frente á pousada. Durante aqueles encontros clandestinos na casa de madeira, ela já me parecia atlética e flexível como agora, talvez sem a atual ressonância agitada, mas já com essa agradável e acentuada firmeza entre as pernas que me recordava, na minha passagem para dentro do seu corpo, certa corruptibilidade de cortesã francesa, que hoje se abrandou um pouco por causa do divórcio. A cintiliação neural do rosto dela estava sempre acalmada diante de mim após fazer amor. Mas lembro de vê-la várias vezes no começo da noite tateando com certa premência ao lado da cama, procurando o relógio de pulso entre as roupas jogadas no chão. Sempre que nos encontrávamos na casa de madeira ela deixava o relógio discretamente visível. ---- Já percebi que você não gosta muito de conversas indiscretas(.)---, ela disse, provavelmente vendo que eu me afundava em filamentos de memória brilhando estranhamente nos meus olhos. Estendi a mão num ato reflexo para pegar o copo vazio da mão dela, sem entender direito o alcance de tudo aquilo que ela tinha acabado de contar. Mas a verdade era que pouco mais do que aquilo havia para ser recordado das comunicações de nossos corpos em transe, nada além daquela lenta e prolongada ascensão física em sua companhia para os platôs de êxtase da casa de madeira, branqueados pelo luar da janela sob o qual ela se apresentava á mim felina como uma onça. E por fim, muito grata, loquaz e apressada. Eu vinha para aquele ponto de nossos encontros num carro popular caindo aos pesdaços dentro da luz das guaritas que apareciam longamente acima da lagoa de água escura, transbordante ou quase seca nas margens de areia branca, de acordo com a maré do dia, e encontrava ela sentada de sutiã e calcinha no sofá de couro, um cigarro entre os dedos e uma ligeira pressão de ansiedade em volta dos globos oculares. Ela imediatamente nos servia dois drinks esverdeados que eu não lembro direito o que era e os copos começavam a suar. Feito isso, funcionávamos perfeitamente na cama de casal como uma caixa de música com a corda toda dada. Cada qual esperava que o outro compreendesse claramente o mecanismo erótico da união de ambos e silenciosamente fizesse os ajustes necessários para a coisa ir de vento em popa. --- Nosso amor é como o amor dos elementos, nos leva de volta num redemoinho á um eu mais jovem e mais limpo de complicações psicológicas e compromissos (.)---, assim ela lançava no ar, para que eu percebesse, a sugestão de que seu marido era em contra partida um homem mais delicado do que eu, algo que talvez nos enfraquecesse como confidentes mas nos forlalecesse como amantes, pois o que ela queria dizer na verdade é que ele era delicado demais e eu mais impetuoso e satisfatório, sem dúvida. Ela falava dele como se olhasse um vago vulto baixo numa pequena praia enevoada por recordações broxantes ao lado da cama. Quando ela se levantava satisfeita da cama sobre o piso de taco solto do quarto, segurando uma ou outra peça de roupa contra os seios, suas nádegas dançavam reluzentes sob a luz da Lua, o luar ali sempre mostrava uma saturação prateada que transbordava do seu corpo suado e saciado em camera lenta. ---Cada dia que passa você conhece o meu corpo melhor do que ninguém(.), ---, ela observava, e pensando melhor agora, dizia aquilo como se ainda existisse alguém em outro lugar, delicado em excesso e desajeitado. Mais tarde, dirigindo meu carro popular em ruínas através do gás fétido da Avenida Paralela, lembro de ter me perguntado vagamente se ela ia para cama com mais alguém além de mim. Achei graça de mim mesmo experimentando uma pontada de ciúmes lembrando daquela sombra de personagem que eu ainda não sabia ser seu próprio marido. --- Ele sempre me fará lembrar um elfo paternal e delicado(.) Como isso é deprimente(!) Paternal e compassivo demais para me manter excitada(!) Uma vez, antes de nos casarmos, lembro que fiquei sozinha com ele num sofá durante uma reunião de amigos que tínhamos em comum, e ele começou a alisar minhas costas como se eu fosse um bebê e ele quisesse me fazer arrotar depois de dar a mamadeira(.),--- concluiu ela depreciativamente, sobre o ex-marido. Aquilo tudo tinha acontecido em pleno verão tórrido de Salvador, e o verão de qualquer lugar, mas o das cidades tropicais em especial, parece ás mulheres um amante que é preciso reverenciar sexualmente antes que ele se vá de repente. O suor mancha suas maquilagens e empasta seus penteados na rua sob o escaldante céu, adiantando a suadeira das noites á dois. --- Me fazia falta sua juventude de golpes bem dados, seu rosto de garoto e olhos que se avermelham ás vezes como um bicho, mas que é apenas o movimento superficial de algo que acontece com você por dentro(.) Energia compactada, mas sempre fluindo como um rio(.) ---, ponderou ela, elogiosamente, e dessa vez me senti ligeiramente lisonjeado. Tudo que se referisse ao meu trabalho energético bem feito me envaidecia. Foi exatamente no fim daquele verão que ela anunciou que sua família estava vendendo a casa de madeira e que nos dias seguintes teríamos que nos encontrar no flat de uma prima sua em Stella Maris. O apertado flat ficava á beira de uma praia morreada por cactus gigantes muito frequentada por surfistas, que fincavam suas pranchas na relva sobre as dunas para fumarem maconha agachados em pequenas rodas. Eu nadei ali quase todo dia de manhã antes do café, enquanto o verão se desintegrava. Foram dias mais estranhos que os anteriores (provavelmente por que já se aproximava o divórcio), nos quais ela me procurava possuída por uma intensidade animal até então desconhecida. O fim do casamento devia estar bem próximo, pois faria todo sentido. Ela fazia salada de lagostas com batatas e nós líamos durante a tarde inteira, quando não estávamos ocupados na cama. O de sempre: livros policiais. Eu nadava entrecortando o açoite violento das ondas dali, voltava para casa fumando um cigarro e algum tempo depois do café fazia amor com ela como se fosse um marinheiro recém-chegado de seis meses de mar. Naquele final de verão, em especial, ela forçou a barra de propósito para que eu a sentisse como uma prostituta. Para mim era uma novidade essa qualidade catártica de prostituta, a disposição para fazer toda e qualquer vontade sexual minha e extrair seu próprio prazer como uma sub-divisão do meu. Seu corpo simplesmente tinha perdido todo e qualquer sentido de inibição ou vergonha, como se um antigo bloqueio tivesse desmoronado dentro dela de repente. Um melhoramento indiscutível, depois de alguns mínimos ajustes e compensações de atitude.

 
(continua)

KALKI-MAITREYA



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