sábado, 12 de outubro de 2013

EXTREMOS INATINGÍVEIS (4)



Desço do salão de treino para a varanda da pousada segurando uma xícara de café e vejo entre os coqueiros e quiosques da piscina o mar em degraus horizontais como numa gravura. Não há ninguém na praia em frente, que resplende sob o sol tórrido da manhã tropical de sábado. ''Porque hoje é sábado'' repito comigo mesmo imaginando qual deve ser a temperatura do metal da estátua de Vinícius de Moraes neste exato momento naquela praça de Itapoã, em Salvador. Agora ele ficará para sempre mergulhado na fumaça do óleo de dendé da baiana do acarajé em frente, olhando fixa e perplexamente para o copo de cachaça que esculpiram diante dele, na mesa.. A vida do poeta tem um ritmo diferente/ Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu/ Preso, eternamente preso pelos extremos inatingíveis..(eu sou os extremos inatingíveis na alma do Jack)... estou todo pegajoso de suor depois daqueles movimentos de kung fu no salão de treino, pensando no ''caminho para a distância'' que o poetinha percorreu dentro das suas ''formas e exegeses'' e cogitando dar um mergulho no mar. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul reflexo das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem como bichos que tombam humildemente na areia...acendo um cigarro. ''Escreve com sangue, pois o sangue é espírito'' (Nietzsche).. ''A carne corta a carne, o sangue escorre na pia, e assim eu escrevo'' (Carl Solomon). para justificar as presepadas intelectuais de um ou outro bom ensaísta temporariamente sem assunto... (eu sou a crítica literária corrosiva do Jack)... agora estou olhando perplexamente para o nada como a estátua de Vinícus de Moraes para seu copo de cachaça, com a vista desfocada mergulhada no cenário paradisíaco á minha frente. Perto da areia a onda é verde num ponto em que se vê uma fina barba de algas marinhas revolvendo-se na espuma. Mas percebo um movimento em um ponto do mar.. é uma garota nadando: a minha garota nadando: Carmen. Ela nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e precisas, nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ela. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e a garota tem sua carne alva, seus ossos bem formados, seu coração transbordando de vida, todo seu corpo bem esculpido pela natureza para transportar na água. Ela usa a delicada musculatura com uma calma energia, avança. Certamente não suspeita que um desconhecido a vê e a admira de longe pela segunda vez na vida, apaixonado, porque ela está nadando em uma praia praticamente deserta, na primeira hora da manhã. Tento ouvir meu próprio coração e imediatamente sei de onde vem essa paixão á primeira e segunda vista, mas agora encontro nesse centro irradiante de energia uma nobreza mais calma, sinto-me solidário com meu prop´rio coração, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão no meio de uma selva de outros sentimentos, alguns muito feios e destoantes. Já nadou em minha presença uns trezentos metros, antes de eu perceber que era ela, não sei, duas vezes a perdi de vista, quando ela passou atrás dos troncos dos coqueiros e dos quiosques na beira da piscina, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado dos seus lindos braços. Mais uns cinqüenta metros, e a perderei de vista completamente.. a imagem dela nadando está fazendo um enorme bem ao meu espírito nessa manhã tropical de sábado. Não é apenas a imagem de uma bela garota nadando num mar de cinema em pleno sábado de manhã, o que por si só já seria belíssimo. É que agora sinto que não sou mais responsável pelos meus sentimentos, que me afogo neles... (eu sou o coração naufragado do Jack)... mas certamente era uma cena bela, ''porque hoje é sábado''... ela sai da água escorrendo os cabelos dourados com as mãos rente ao pescoço. Vejo seu corpo como que caminhando num pequeno degrau dourado de areia com os veludos azuis do mar ao fundo, olhando para baixo seus olhos enegrecem como bronze ao sol. Caiam todos os anjos do céu! Á distância eu sentia ela caminhando para mim como um delicioso segredo quente, como um coração de lava que acabase de ser espirrado do centro da terra. Meus olhos roçam sua face e cabeleira encharcada e pulam esfomeadamente para suas pernas em movimento, uma deusa de olhos métálicos impenetráveis como bolas de gude e formas de neve em rítmica evolução sobre a areia fervendo. Ela aperta um pouco o passo para não queimar os pés (eu sou o perfume de pés de fada nas narinas do Jack)...vejo uma folha de coqueiro caída no caminho dela e desço para a praia fingindo estar no cumprimento de um expediente da pousada: recolher folhas de coqueiro caídas na areia... meu cigarro ainda está na metade, ela pode me pedir um trago, um cigarro, fogo, que sei eu (eu sou o curto-circuito na imaginação do Jack)...Ela está passando por mim, nem sequer se virou para me olhar ou dar bom dia. Ela está indo embora, faça alguma coisa Jack, está indo embora como um vento, faça alguma coisa rápido, Jack, um vento que se desfaz no meio do nada, rápido Jack.. ''Quer um cigarro, moça?'', eu digo.. Ela se vira e me cumprimenta "'Perdão, bom dia... estava andando meio distraída'', ela diz e caminha alguns passos na minha direção'' (eu sou o truque barato do Jack)... largo a folha do coqueiro no chão e entrego o cigarro á ela, suas mãos são pequenas e bem feitas, as unhas estão pintadas de roxo. Ela põe o cigarro na boca e fica aguardando o fogo "Perdão, aqui está...'' digo e levo o palito contra a lateral da caixa de fósforo para junto da ponta do cigarro na boca dela. Caiam todos os anjos do céu pela segunda vez! É mesmo um perfeito rosto de anjo barroco com um cigarro de filtro vermelho entre os dentes.. risco um palito e ele se apaga com o vento, risco o segundo, o terceiro, o quarto e ela imediatamente perde a paciência e tira o cigarro da boca e olha para mim retorcendo o rosto numa careta idiota e temperamental ''Perdão'', eu rio sem graça...Ela se irritou de fato com aquilo, me pareceu pouco para tanta irritação... ela simplesmente me deu as costas e saiu andando sem pronunciar palavra.. Num acesso de demência, eu ainda tenho coragem para dizer: ''Ei, espera aí(!) Ainda tem mais uns quarenta palitos(...)'', ela ri incrédula e faz um depreciativo sinal de ok para trás, sem se virar.. de costas, ela é uma pequena égua quarto-de-milha. Acabou. Homem ao mar! Pode cortar a prancha com tubarões embaixo, Capitain Jack: eu queria entrar pelado na usina de fukushima e ligar todos aqueles reatores nucleares defeituosos ao mesmo tempo, eu queria respirar fumaça tóxica, eu queria beber metal derretido, eu queria entrar em Roma em chamas só para apertar firme a mão de Nero... (eu sou o sentimento de rejeição inflamado do Jack)...Vou caminhando para o mar desejando ser estraçalhado por um tubarão tigre faminto. (eu sou a carcaça de surfista ensanguentada do Jack)...Mergulho de cabeça numa onda e de repente estou no fundo de um rio enlamaçado com uma draga motorizada tremendo nas mãos, quando não estou mergulhando a quarenta metros de profundidade para dragar material barrento do fundo, respirando por uma mangueira encardida que enche minha boca de baba gosmenta, fico fumando no convés da balsa sobre nossas roupas e mochilas rasgadas. As rugas no rosto de Seu Adamastor são tão profundas embaixo dos olhos como crateras na superfície avermelhada de Marte, seu rosto cortado o retrato fiel daquela vida canina e subsaariana. Tiro a cabeça para fora da água e reencontro o mar azul e a praia com a pousada ao fundo. Então eu penso naquele árbitro de atletismo que teve o corpo atravessado por um dardo atirado a centenas de metros de distância e me sinto um eleito, um abençoado, alguém subitamente poupado pelos lampejos de misericórdia da divindade. Olho mais uma vez para a pousada e percebo que ela está conversando com Carmen na varanda. Saio da água e apanho meu maço de cigarros e caixa de fósforo do chão, avanço. Elas estão conversando empolgadamente na varanda, eu venho me aproximando, paro sob o sol a dois metros de distância delas, encharcado. Não faço nenhuma menção de interromper o assunto ou participar dele, mas fico ouvindo tudo com atenção. Carmen olha para mim enquanto ela continua falando: ‘’foi então que percebi que todas aquelas linhas de pensamento que consideramos tão "nossas", que basicamente encerram emoções, não são nossas "porra nenhuma", são um amontoado de lixo que compartilhamos'', ela diz... ''Hi hi, voce tem um jeito engraçado de falar sobre essas coisas'', Carmen observa amistosamente com sua vozinha de ninfa psicodélica e ela continua falando: ''A única palavra que me vem para definir esse processo é " A BESTA’’. . Carmen intercepta a voz dela com um comentário que parece fazer referência sobre o que estavam dizendo antes: ''meu sentido disso é muito semelhante, energia Kundalini, ioga tântrica, a força serpentina ascensional, o Caduceu, a Flor-de-Liz(...)'', ela acende um cigarro e concorda, já teve a idade de Carmen, mas fica impresionada com a precocidade do interesse e conhecimento da garota: ''E quando a Física quântica evoca o papel do observador para ver a luz como onda ou partícula, na verdade ela está cooptando ainda apenas a percepção média da energia cósmica, pois mentes mais treinadas poderiam ver a energia de forma ainda mais apurada'', agora Carmen está definitivamente encantada com a conversa dela, olha para ela quase sem piscar com o cigarro nos lábios, uma Virgínia Woolf da décima dimensão: ‘’Fluxos emocionais inconscientes. Sempre referente ao domínio das emoções negativas, primeiro atoleiro da ‘’MÁQUINA’’. Boa alimentação, alongamentos, respirações, reestruturação e quebra da rotina produzem lá seus resultados, tais como o estado de alerta. Domínio sobre o corpo emocional, o que equivale a dizer que aqui nos ocuparemos dos padrões de reação emocional e jogos de representações mentais simbólicas ou literais por trás dessas reações. A IMAGINAÇÃO NEGATIVA É COMO UMA DOENÇA'', ela diz e logo depois caminha até uma cadeira da varanda e atira para mim uma toalha que estava jogada ali, Carmen agora olha mais profundamente curiosa para mim, se perguntando quem sou eu ou qual a minha verdadeira relação com ela, que continua falando com autoridade: ''Blavatsky fez um balanço geral das energias na  Doutrina Secreta, e depois Alice Bailey organizou tudo num calhamaço chamado"Tratado sobre Fogo Cósmico"...trata dos fogos por-fricção, o solar-magnético e o elétrico. Esses fogos integram a Kundalini, idêntico ao Caduceu. Quando só então o iniciado percebe realmente um aumento significativo de seu coeficiente energetico, uma vez que a maioria de nossa energia está ''presa'' nesses fluxos emocionais inconscientes que são como mantras intermináveis ou como um disco de vinil arranhado, que volta a tocar sempre o mesmo trecho. A própria revitalização da circulação sanguinea parece só desenvolver-se a partir dos resultados mais palpaveis da recapitulação, recordação de si e auto-hipnose(...) mas sem a prática da espreita em seus níveis mais avançados, nada disso faz a menor diferença’’, Carmen a interrompe e observa que se acostumou a manter um caderno de naveção onde registra as impressões e resultados das suas práticas místicas: ''agora escrevo tudo que me vem a mente todo dia(...) outro dia fui dar uma lida em tudo que já tinha escrito e nao não entendi absolutmente nada(..) he he, acho que to ficando doida(...) as vezes acho que estou ficando realmente doida(...)'', Camen disse, acendeu um novo cigarro e prosseguiu: ''Mantenho sempre atualizada a minha ilha de programação. Desprogramar e reprogramar, carregar e descarregar, como uma escopeta. Tecnologia psíquica(.)'', e estanca bruscamente a linha do seu raciocínio, se é que podemos chamar isso de raciocínio. Confesso que me custa algum trabalho de imaginação acompanha-la por esses meandros poéticos subconscientes.. Ela ajuda a garota a organizar um pouco os pensamentos, encerrando seu discurso: ''Ainda há o Quarto Fogo, que na época de Blavatsky e Bailey ainda era pouco conhecido da Ciência, é o plasma, hoje em voga nos meios científicos e até na indústria. Este fogo "quadridimensional" também tem um aspecto sonoro inerente, ó ditado hindu diz que o SOM  é  UPADI (veículo) da ENERGIA, daí o zumbido que você citou na apresentação, quando estava falando da sua prática meditativa, daí o quarto chakra (cardíaco) ser chamado Anahatha, que significa incessante, intocado, puro. O quadro completo dos "fogos'', inclui algumas técnicas úteis para trabalhar as energias(.)'', então ela para subitamente de falar e me apresenta formalmente á Carmen, que faz uma careta parecida com á que fez na praia e entra na pousada sem dizer mais nada depois de me dar dois beijinhos no rosto e repetir o meu nome em voz alta, como que para gravá-lo na memória ou lembrar de esquece-lo para sempre. Mas eu já nao tenho mais nome, eu já nao sou ninguém, nao existo para Carmen, não tenho mais vontade, não quero saber, é o fim..(eu sou a liquefação existencial sem nome do Jack)...E a última palavra que eu ouço ela dizer é justamente... o meu nome! Ouvi um suspiro leve e o meu coração deixou de bater, mortalmente parado por um grito de desilusão dentro de mim, pelo grito de um inconcebível fracasso melodramático. Agora estamos novamente só eu e ela, como sempre. Ela chega perto de mim e diz: ''Bonitinha, a Carmen(.) Mas ela é um bebê(.) Toma jeito, alcaide(!)'', sinto o estômago chiar, estou com fome e sem nenhum ânimo de ouvir as repreensões dela, mas ela ainda arremata, antes de entrar : ''...se eu fosse voce desistia enquanto é tempo(...)'', e começa a rir na minha cara, continua: ''Ela me perguntou quem era você(...), ela revela. "E o que voce respondeu(...)'', pergunto.. "Respondi que voce trabalha aqui(.)'' ela diz e entra, rindo ainda mais maliciosamente.. Hora de voltar á realidade. Eu sabia - eu tinha a certeza! Ela sabia. Ela tinha a certeza. Carmen não poderia me ouvir chorar, com o rosto escondido nas mãos, porque isso simplesmente não aconteceria. Meu coração era endurecido por um sem número de traumas de morte. Mas parecia que antes de eu entrar aquela pousada ia desmoronar, o céu ia cair na minha cabeça. Mas nada disso aconteceu. O céu não cai por tão pouco. Simplesmente não podia fazer nada, e isso era tenebroso demais, me parecia tenebroso ao máximo naquele momento... fui me sentar afastado debaixo de um coqueiro para fumar, ausente e silencioso, na posição de um buda que medita. Durante algum tempo fiquei imóvel. Era como se eu fosse o capitão de um navio á vapor com pressa e tivesse perdido o começo da vazante. De repente, levantei a cabeça. O horizonte do que até então tinha sido um perfeito sábado tropical ensolarado tinha agora um banco de nuvens negras atravessado, e o calmo caminho das águas do mar nas quais Carmen a pouco cortava com braçadas puras e femininas, agora corria escuro sob um céu sombrio - dir-se-ia que a levar-me ao coração de infinitas trevas... por que hoje é sábado. Mérde!


(continua)

KALKI-MAITREYA

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