segunda-feira, 7 de outubro de 2013

GRUPO DE TRABALHO (2)


Já eram oito da noite e o céu tinha ficado fantasticamente estrelado sobre o mar e aquelas quarenta cabeças incomuns dispostas num círculo, que vinham se revezando arrastadamente ao longo da rodada de apresentação dos membros. Ela aparentava paciência e satisfação com o desenrolar mais prolífico das apresentações depois daquele tumultuado início de atividades. Nem a metade das pessoas havia tido ainda a oportunidade de falar. Mas confesso que um grupo de integrantes chamou minha atenção. Eram três homens e tres mulheres, embora não tivesse ficado claro de que se tratasse de três casais.. se apresentaram como mexicanos e adeptos dos ensinamentos da tradição tolteca e discípulos espirituais de Carlos Castaneda. Tinham sido extremamente suscintos e discretos em sua apresentação, se limitando ao básico e dizendo que estavam ali com o único interesse de formar um autêntico grupo de trabalho já que o antigo grupo que tinham havia se dispersado em função de brigas, disputas e desentendimentos. Também um trio de garotas com corpos de nadadoras que estudavam teosofia e tantrismo.. para minha decepção elas não aprofundaram muito o assunto na direção da prática tantrica e se limitaram a responder afirmativamente quando alguém do grupo de daimistas brasileiros (adeptos do Santo Daime) perguntaram se elas praticavam tantrismo de fato ou se era apenas uma orientação interna ou jeito de encarar os relacionamentos amorosos.. ''Praticamos sistematicamente'', uma delas respondeu secamente, lançando um olhar tão metálico e impenetrável na direção de seu interlocutor que imediatamente ele desistiu de fazer qualquer outra pergunta. Era uma ruiva de pele alva e longos braços caídos languidamente ao lado do corpo, elas pareciam controlar os mínimos gestos e movimentos e só há muito custo era possível extrair algum significado daquele comportamento que parecia calculado nos mínimos detalhes para torna-las criaturas distantes e inascessíveis. Outros membros falaram esparsadamente mas não despertaram tanto minha curiosidade quanto essas figuras que mencinonei acima.. A todo momento eu buscava os olhos da garota loira chamada Carmen mas em momento nenhum eu senti que ela tinha sequer notado minha presença, agora que eu estava quase dentro do círculo de mesas ao lado psicina, escorado em um coqueiro a uns tres metros de distancia da aglomeração. Chopes e batatas fritas, sucos e contas, cigarros e drinks coloridos acompanhados de comida japonesa, tudo ia sendo mastigado, deglutido e depositado aos restos nas mesas. Um jovem extraordinariamente magro e de olheiras fundas cadavéricas (ele estava sozinho numa mesa com um lap-top aberto á sua frente) estava acabando sua apresentação: declarou ser um hippie hightech de classe média alta e não estar ligado á nenhuma tradição mística especial e nem possuir conhecimento especial nenhum e que só tinha ido até ali para aprender alguma coisa que lhe ajudasse a se livrar das drogas. Assim que aquele zumbi biotecnológico acabou de falar, nossa anfitriã se levantou de uma das mesas e disse que era mais sensato encerrar a primeira parte das apresentações por ali, já que era sexta-feira á noite e provavelmente nossos hóspedes vão querer fazer alguma coisa para se divertir ela disse a noite é uma criança e aqui estão os convites de cortesia que o pessoal do hotel aqui na outra ponta da ilha mandou para eu distribuir para o nosso grupo acho que todos vão gostar muito eles são muito meus amigos e sempre fazem umas festas de arromba naquele palacete quem quiser pode ir até mesmo andando pela praia fica a quatro quilometros daqui da praia em frente dá até para ver quando eles acenderem as luzes do lado de fora acho que ainda não acenderam dêem uma olha lá do lado de lá tá vendo aqueles postes duplos atrás dos coqueiros enfiados no meio daquele conjunto de quiosques no final daquela enseada é lá ela disse e logo depois chamou pelo meu nome eu estava bem ali atrás ela se virou e me viu e disse você viu a Susana por aí eu disse não vi o francês marido dela um pouco mais cedo ele estava aqui comigo fumou um cigarro fez uns comentários estranhos e sumiu sem deixar rastro. Os hóspedes começaram a se dispersar pela piscina ou tomar o rumo dos quartos lá dentro. Ligue a sauna pra mim por favor ela disse e passou por mim ajeitando a gola da minha camisa e pedindo fogo com um risinho no canto da boca mas nem esperou eu procurar o isqueiro no bolso e entrou. Eu tinha outras providências a tomar, além de ligar a sauna.. havia prometido aos empregados que ajudaria eles com toda aquela bagunça nas mesas e com a louça suja na cozinha depois, já que a maioria estava no fim do expediente e não daria tempo de deixar tudo em ordem antes de todos eles irem embora pra casa. Era a primeira vez que aquela pousada recebia tanta gente de uma vez. Comecei a me mexer em volta das mesas enquanto esperava os outros empregados e pensava na festa que ela tinha mencionado no palacete do outro lado da enseada, olhei para a praia naquele momento e o único ponto de luz elétrica que se podia ver era de fato a dos postes duplos dos quiosques na praia logo abaixo do palecete, dois pontos minúsculos de luz na distância. Até lá havia uma comprida plataforma de areia branca mergulhada numa escuridão quebrada apenas pela leitosa luz da lua se derramando sobre o gelatinoso contorno das ondas do mar ao lado. Eu já tinha ido andar no meio da noite por ali algumas vezes naqueles seis meses em que estava viviendo ali e em pelo menos duas vezes eu senti que não era um programa exatamente seguro, sobretudo na ocasião em que senti minhas narinas subitamente tomadas por uma forte lufada de fumaça com cheiro de plástico queimado ou éter que só podia ter saído do cachimbo de algum crackento escondido na escuridão, certamente vinha do meio daquele bosque de coqueiros e vegetação rasteira mergulhados em silencio e penumbra totais, já que eu não via ninguem andando sobre a vasta extenção de areia á minha frente e nem haviam barcos no mar. Varri a escuridão de uma ponta á outra umas tres vezes para ver se identificava pelo menos uma brasa brilhando no meio do breu mas não percebi nada. Acendi um cigarro e voltei andando de costas por uns dois quilometros até chegar perto da praia em frente á pousada. Lembrei de uma vez na boca de garimpo onde conheci Seu Adamastor e fui contratado para trabalhar junto com ele e outros na sua balsa. Tínhamos subido vinte quilometros rio acima de um daqueles rios da Serra do Cachimbo e dividido os homens em dois acampamentos diferentes com uma distancia mais ou menos igual á da pousada para o palacete, quando de repente Seu Adamastor saiu da sua barraca no meio da madrugada tossindo, escarrando e vomitando tanto que me implorou pelo amor de deus mô fio desce lá naqueles cara e trás a bolsa de couro com anti-biótico e anti-inflamatório não tem que ser agora não é já mô fio anda logo então eu saí em louca disparada pela meio da mata sozinho me sentido sempre observado e ameaçado de longe por olhos hostis e ameaçadores de animais selvagens e índios matadores de garimpeiro num claustrofóbico escuro de mata fechada como aquele era como avançar através de uma interminável membrana de nata ultra-violeta com os ouvidos zunindo gradativamente cada vez mais alto toda a massa de zumbidos noturnos do meio do mato e do rio borbulhante e lamacento cortando pelo flanco até se tornar um pesadelo fantasmagórico te seguindo e cercando por todos os lados e ao mesmo tempo escutando seu proprio coração bater dentro do peito como um tambor africano enlouquecido no meio da floresta. Definitivamente, ela não tinha dado uma boa sugestão aos hóspedes dizendo para eles irem caminhando pela praia até o palacete. E qual não foi minha surpresa quando vi Carmen a garota loirinha saindo pelos fundos da pousada com uma mochila nas costas caminhando justamente para a escuridão das areias da praia na direção do palacete. Já tínhamos recolhido quase toda a sujeira das mesas e só restavam eu e o filho da cozinheira organizando os entulhos de louça suja na pia lá dentro eu disse aguenta um pouco aí moleque e pensei em ir atrás dela e fazer uma pequena advertênia mas subitamente temi que ela me achasse ridículo e medroso, de modo que mais por um instinto de proteção do que propriamente de caça eu decidi segui-la á distancia invisivelmente através do bosque de coqueiros. Mas a verdade é que em momento algum eu deixei de pensar que aquilo tudo podia acabar em alguma oportunidade de conhece-la melhor. Acendi um cigarro e segui espiando ela imediatamente á minha frente através dos troncos dos coqueiros: ela estava vestindo um shortinho muito curto e camiseta com biquini por baixo e andava descalça ou de chinelos. Uma espécie de masturbação mental misturava as imagens de Carmen dentra do meu espírito, desde a cena dela fazendo alongamentos sobre a bola vermelha de teflon até o seu exaltado relato de transes meditativos na rodada de apresentação dos membros, tudo me impelia a retratar minha jovem e desejada amante completamente nua naquela praia, com um reflexo de sol derramado entre os seios, o queixo perfeito virado pr cima olhando o sol pelos óculos escuros como numa propaganda de cerveja, um calor erótico ia se infundindo pelos movimentos do meu corpo atrávés daquela penumbra do bosque de coqueiros na qual eu apenas andava e fumava, divisando os vagos contornos de sua sombra caminhante contra o mar na areia branca iluminada pela lua. Ela andou aproximadamente uns três quilômetros e parou num ponto da praia onde os postes duplos dos quiosques do palacete eram bem nítidos, embora não servissem em nada para diminuir a escuridão em volta dela naquele momento. Eu não estava entendendo nada, ela simplesmente sentou de pernas cruzadas na areia e, virada de frente para o mar, tirou um cigarro e uma lanterna de dentro da mochila. De repente, seu celular tocou e ela voltou a enfiar o braço dentro da mochila apressadamente e arrancou o telefone e um isqueiro de dentro, acendeu o cigarro e começou a falar: É mesmo?, mas quem disse que eu sou feliz com você?, mas quem disse a voce que voce é feliz comigo?, e quem é que pode ser feliz com alguém como você? me explica?... Parecia uma discussão de casal, mas na boca dela aquelas palavras, pronunciadas naquele tom de deboche, desnudava toda a gratuidade e hilaridade da adolescente rebelde dentro dela, eu ria como um adulto diante de uma criança. Ela continuava falando ao telefone: Eu não flerto com qualquer um em qualquer lugar o tempo todo como voce diz, isso é uma loucura sua(.), eu não aguento mais ir á festas para ficarmos de costas um para o outro, ok?, Quer saber mesmo o que fiquei conversando com ele todo aquele tempo?...O tom enfurecido e o volume de sua voz agora tinha saltado algumas oitavas para cima, e enchiam o ar marinho e a plataforma de areia branca a sua volta: Não posso fazer nada se ele fala de coisas que interessam á mulheres mais velhas como Comida Turismo Psicologia Dentição de crianças eu só estava por perto fazendo uns coment´rios(.), Ah,vá se foder(!), Não lembro do que ele falou em matéria de psicologia(.) Ah, sei lá(!) Falou do que todos nós vemos uns nos outros(...) É... nós, os casais(...)Ah, vá se foder(!) Quer saber de uma: o que ele viu em você foi só a bebida de graça do dono da festa e em mim sabe o que ele viu(?, quer saber mesmo o que ele de fato viu(?) viu em você um idiota e em mim ele viu uma garota linda e bem boa(!) SEU BOSTA(!) - e depois dessa ela desligou o telefone e atirou dentro da mochila, acendeu outro cigarro e ligou a lanterna para ler algo num pedaço de papel que tirou do bolso do short. A cena toda voltou a mergulhar num opressivo silêncio e penumbra. Agora eu sorria mais tranquilo como se aquela mocinha fosse naturalmente assim, o que me agradava bastante, mas pensando bem ela talvez tivesse mais de dezoito anos, talvez vinte ou vinte e um, não mais do que isso mas seu rosto redondo de anjo barroco era de um autêntica lolita de dezessete, desesseis... De repente, num sobressalto cardíaco da paisagem, minhas piores expectativas mórbidas pareceram se materializar instantaneamente sobre a areia da praia: um vulto de homem muito grande e forte, de cabeça raspada e soprando densas baforadas de fumaça para cima apareceu caminhando na direção de Carmen vindo como quem tivesse saído do meio do mato rente aos quiosques do palacete. Ela ainda não tinha percebido a ameaçadora presença de mais de um metro e noventa até onde eu pude calcular. Meu pensamento mais lúcido naquele momento era o de invadir a areia da praia numa arrancada fulminante em direção ao vulto assim que ele chegasse mais perto de Carmen e tentar acertar um chute certeiro na cabeça, se ele levantasse e tivesse trocação de porrada, com certeza seria uma experiência desagradável para mim. Lembrei de como meu mestre de kung fu jamais havia nos ensinado como agir numa situação real como essa, e como a única coisa que ele dizia a respeito era que jamais deveríamos nos meter em situações assim, sempre ele e sua pacata e muda esposa evitavam falar de violência real e quando eu tentei perguntar a ele um dia se aquela dança com punhais chineses que ele estava nos ensinado servia para alguma coisa numa situação de perigo concreto ele se limitou a dizer que isso era algo que eu ia ter que descobrir sozinho e que desejava profundamente que eu não tivesse nunca que descobrir nada disso e prontamente desviou o assunto para questões espirituais e da microbiologia das suas hortas de verduras e plantações de milho ecologicamente sustentáveis. ''Ah a microbiologia(!) É claro, como foi que não pensei nisso antes(!)", pensei exasperado no meio daquele mato sentindo o coração já acelerando e o suor frio empapando minhas costas e pescoço. Enfim, vasculhando o baú do meu repertório marcial tudo que consegui encontrar foi a idéia de um chute certeiro na cabeça pulando sobre o vulto de surpresa no meio da penumbra e depois sair correndo puxando ela pelo braço. Ele avançou um pouco mais e Carmen agora parecia já ter percebido a presença dele crescendo sobre si, no entanto permanecia imóvel como um presa em estado de choque que perdeu os movimentos temporariamente em função de um susto ameaçador. Avancei sobre a vegetação rasteira e saí do bosque de coqueiros para a areia, cerrando os punhos e preparando a arrancada. -BOA NOITE(.), o homem disse, era um jovem negro de voz enrouquecida: -QUER DAR UMA BOLA(?) - , e ele estendeu para ela um enorme baseado fumengante, enchendo o ar em volta com o barrunfo da erva de tal maneira que ali atrás onde eu estava a coisa chegou como uma onda de telepatia psicoativa desfazendo vagamente a sensação de perigo mortal na qual a noite havia mergulhado há alguns minutos. Ouvindo sua voz enrouquecida e carismática, tive certeza de que ele não representava ameaça alguma, mas, mesmo assim, Carmen se pôs de pé e saiu correndo como um curto-circuito no meio da escuridão da areia em direção da pousada ou um antílope tomado por um súbito ataque de medo-pânico em plena savana. O papel que ela estava lendo com a lanterna ficou no chão onde estava sentada. O vulto do jovem negro pemaneceu inalterado, parecia estar se lamentando silenciosamente por ter assustado a garota sem querer, assim que soltou mais algumas baforadas por ali mesmo e deu meia volta e foi andando no sentido do palacete, descendo para andar com os pés imersos nas águas do mar. Pensei em ir atrás de Carmen correndo, mas naquela velocidade em que ela saiu disparada dali, chegaria na pousada antes que eu pudesse imaginar qualquer outro perigo surgindo do meio da noite. Quando o rapaz com o baseado chegou rente ao mar, um segundo vulto de mulher invadiu a paisagem escura correndo na sua direção com uma garrafa em uma das mãos. Ela estava só de biquini e aparentemente muito embriagada, rindo em excesso e sussurrando um amontoado de palavras desconexas que me era impossível juntar em frases inteligíveis. Assim que alcançou o jovem negro ela se atirou em seus braços e arrancou o biquini fora, ele pegou ela no colo e começou a beija-la ostensivamente, começando pela boca e indo parar nos papiros sussurrantes da escrava egípicia. Flancos de salgueiro. Lótus único. Papoula viva de carne. Fácil acesso... Caída na areia, agora ela respirava com a boca aberta e os lábios frouxos. Acendi um cigarro e antes de sair dali para deixar o casal á vontade, desci até o local onde Carmen esteve sentada e recolhi o papel que ela deixou para trás. Subitamente, olhei pela última vez para o casal rolando na areia molhada e percebi um pouco surpreso que a moça era a ex-cunhada dela, a mulher do francês na suíte do quarto andar. Susana... acho que era esse o nome.
(continua)
 
 
KALKI-MAITREYA


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