terça-feira, 8 de outubro de 2013

GRUPO DE TRABALHO (2.1)

Era a terceira vez que eu começava a leitura de O SOM E A FÚRIA de William Faulkner, já passava da página 130 e eu novamente nao estava entendendo nada. E estava entendendo menos ainda o que estava escrito no papel que Carmen tinha deixado para trás, tive que parar no meio da praia e ficar com o papel contra o rosto e riscando o isqueiro que toda hora apagava por causa do vento. Dizia o seguinte, em versos: - Sacudo os pés da sandália - Uma médica tem que ter geladeira - Deus vos salve filha de Deus pai Deus Vossa - Querida doutora Gildete como vai as dificuldades da vida presumo que dois pontos e uma circunferência descrevem em homenagem a seus pais por que tudo o que fizeres em meu nome todo dia todo dia todo dia Jesus Cristo sabonete -- Pai nosso que estais no céu assim como na estereoprazia - Procura esperança nossa salve a vós bradamos os degradados filhos de Eu e Nós suspiramos nesse vale de lágrimas - Nossa Senhora embora tenha muitos nomes é uma só: Nossa Senhora de Lourdes. - Nossa Senhora de Fátima. - Nossa Senhora de Guadalupe. - E por aí vai. - O Amor está em calamidade pública - Nossa Senhora todo dia eu vim a escrever coisas muito pessoais -Shampoo Jonshom - Queremos a vida, por exemplo, me lembrei de Jó -- Coelho coelho coelho coelho gosta de alface. - Não estava assinado embaixo, de modo que não dava para ter certeza de que era ela a autora daquela esquisita peça literária. Minha expectativa, mesclada de curiosidade e paixão, estava agora inflamada no mais alto grau. Como tinham sido vagarosos aqueles minutos de leitura sentado na areia da praia riscando o isqueiro junto do rosto, e como tinham acabado logo! Tinha sido como navegar esplendororosamente sob um sol psicodélico tendo á frente as vastas extensões de uma alma feminina. E ali estava eu fumando de novo e voltando a lembrar de águas profundas e barrentas perdidas no arquipélago da minha memoria como num sonho de uma noite de verão de Shakeasperae ''Rimos de ver as velas conceberem, e encherem o ventre com o vento lascivo''.. escorregando inconscientemente para aquele sub-tom projetado de imagens mentais mais uma vez: eu não sentia medo ou receio de espécie alguma, já estava suficientemente familiarizado com a vida dura da maldita caça ao tesouro naquela época, e esse murmúrio mental, como o lampejo tenue de uma lanterna na escuridão, mostrou por um momento de novo dentro da minha mente aquele vasto cinturão de escura água doce e floresta por todos os lados. A viagem para achar o ouro seria longa e difícil, como todas as estradas para o ouro são, mas desta vez meu olho mental podia ver como num mapa, profissionalmente, todas aquelas complicações e dificulades multiplicadas infititesimalmente. ''Aqui ou você é um marujo ou não é, moço(...)', Seu Adamastor dizia para todos á bordo da balsa '' ou agente acha esse ouro e fica na boa por um bom tempo ou não quero nem pensá o que pode acontecer comigo quando voltar á terra de mão abanando(...)''. Seu Adamastor era uma espécie de protótipo de guerra ou homem-garimpo, muito forte e com umas veias saltadas no pescoço que quando ficava nervoso pareciam que iam explodir, e ao mesmo tempo um pai, um coaching, um neuro-motivador e um velho capitão de navio do século XIX. Ele definia o meio de extração de ouro naquelas bandas como sanguíneo e traiçoeiro e citava na sequencia inúmeros casos de assassinatos com requintes de selvageria, como esquartejamentos, toscas desovas de cadáveres no rio, roubos, facãozadas, facadas, pedradas na cabeça, e arrematava ‘’ seguir o rastro do ouro ás vezes é como seguir um rastro de maldição mô fio'', dizia, esbugalhando aqueles olhos injetados que ás vezes me deixavam petrificado como que por um rodamoinho de expectativas mórbidas olhando a mata e o rio em volta. Tirou um maço de cigarros paraguaio do bolso e dependurou um na boca partida de tanto sol e acendeu. ‘’Porco selvagem, moço(...)'', além do mais, era um exímio contador de histórias que ninguém sabia dizer se eram verdade ou mentira, mas algumas delas produziam um efeito verdadeiramente aterrador no imaginário da tripulação. Eu tinha para mim que ele usava isso como um método para manter todos sob o seu comando, para que ningém ficasse corajoso demais de uma hora para outra e tentasse alguma gracinha como sumir no meio da madrugada com todo o metal precioso á bordo. ''No meio do caminho a gente foi atacado por um bando de porco selvagem(...) duzentos, trezentos(!) nunca tinha visto tanto bicho furioso junto de uma veisada só(...) todo mundo largou a bagagem no chão, saiu correndo e subiu nas árvores(...) os bicho estraçalharam tudo: comida, roupa, equipamento...tudo(!) então eu fiz o seguinte(...)'', e o velho colocou os dedos da mão dentro da boca e produziu um som absolutamente horripilante, um espécie de grunhido assoviado de porco sendo esquartejado vivo.. ''Com esse barulho eu atraí um boa parte da bicharada pra debaixo da árvore onde tava pendurado, bebi o cantil inteiro de água que eu levava á tira colo e logo depois comecei a mijar em cima deles (...) mijei uns cinco litros de mijo em cima daquela porcalhada toda e dois minutos depois eles começaram á atacar e estraçalhar um ao outro(...) que troço medonho mô fio (!) de repente, o líder do bando começou a grunhir e rolar no chão endoidecido e logo um estouro de porco selvagem disparou atrás dele pra dentro da mata num arrastão, uns rolando por cima dos outros(...) ô troço medonho(!), ele repetiu e engoliu seco, rolando mais um cigarro entre os dedos cortados no ralo de lavar cascalho. ""Já passei por cada uma, só vendo(.)’’. Eu tinha percebido um pouco tarde demais que Seu Adamastor era completamente louco, endividado com gente violenta, ciganos, laranjas de mafiosos, arriscadores sem nexo de todo tipo de antro de agiotagem, todos os rostos na balsa em volta de mim eram como espelhos onde se refletiam o tédio, a angústia, o medo, a pressa, o cansaço, esboçados no esforço de ajustarem-se às convenções de rotina da balsa sob o comando implacável de Seu Adamastor, o prazer normal de cada um era a afeição de ficar quietamente recolhido dentro de nosso próprio vazio e silêncio interior. Fora da balsa, a solidão total da floresta... o horror, a morte. E contra a força diária da morte e da natureza, seguiam todos espartanamente vivos, esfarofando aquela zona de desbravamento ilícita no meio da selva. Eu abria as mãos a uma certa distancia do rosto com o escrito de Carmen em uma e o cigarro aceso na outra e lembrava do milk-shake de resíduos minerais, cascalhos e cristais do fundo do rio lambuzados no sangue dos nós dos meus dedos em carne viva. As manhas, tardes e noites de mergulho deixavam o corpo todo invariavelmente moído e quebrado, mas a mandada sempre fazia a expedição valer a pena, era bonito pra caralho aquele fim de mundo. Sempre que eu subia na balsa depois de duas ou tres horas lá embaixo dragando material do fundo alguém ligava uma música e eu fumava um cigarro, era o melhor momento do dia... depois só piorava. Mas depois eu dormia e melhorava de novo. Acordava, comia qualquer coisa e fumava. Nunca vi mergulhadores fumarem tanto como no garimpo! Também era bom, mas depois piorava tudo de novo. Durante o dia, o rio em todas as direções era um sinistro vidro escuro que borbulhava ameaçadoramente nas margens tomadas por galhos e raízes aquáticas retorcidas e vegetação lamacenta onde se escondiam sucuris-jus de doze metros e jacarés que arrancavam e comiam pernas, pelo menos era o que Seu Adamastor fazia questão de frisar: "O jacaré é o tubarão branco do rio mô fio, te estraçalha de uma veisada só''. No fundo do rio muitas correntes convergindo, tapas d’água na descida descompresurisada que quase quebravam o pescoço. Pouquíssima luminosidade e visão totalmente embaçada. E em alguns pontos, abaixo de vinte ou trinta metros: trevas totais . Aquilo não se parecia nem um pouco com a sedutora poética do paraíso azul do mergulho no mar. Na verdade, era como ser defecado numa gigantesca privada de rodoviária. Mas dificilmente voltávamos de um dia de trabalho no meio do rio sem amarelar dois ou três carpetes no ralo. Umas oitenta gramas por dia. Parecia fazer valer a pena voltar vivo. Gélidos ar e luz andavam agora pela cozinha da pousada vazia e escura: nem ela, nem Carmen, nem hóspede nenhum no primeiro andar. A sala de televisão vazia, por toda parte os flash backs do garimpo sempre deixavam as brasas dos meus olhos como dois bichos úmidos se dilatando como pingos de tinta num solvente. Outra fatia de pão com manteiga: três, quatro: certo. lá fora, tudo já rearrumado para o dia seguinte de atividades do 'grupo de trabalho''. Espetos de churrasco entre dentes e luas azuis de faróis brilhando no céu do asfalto: todos tinham ido para a festa no palacete?. Liguei a televisão e era aquela jornalista que fodeu a associação de moradores de uma favela aqui da ilha. Ergui a chaleira do gancho e coloquei de lado no fogo. Restou lá, fosca e atarracada, o bico espetado para o alto. Xícara de chá logo, logo. Bom. Boca seca. Fumo. Televisão subconsciente, como nos traillers de Virginia Wolf. Predominancia da forma sobre o conteúdo e escrita automática. Carmen. Primeiro eu a ausculto, leio, releio. Volto a abrir o papel com o escrito dela. Passo novamente por ela, dentro da mente. Malandramente na rua, contra o poente, ela me cutuca e eu a aliso bem, mas somos apenas um out-door de colina contra o crepúsculo, olhando do alto. Brilhosolhos, seu crânio rufo perto da lâmpada coberta verde buscava o meu rosto, azulado como o de um buda, entre a sombra mais verdescura, um ollav, santosolhos. Agora ela, ela e não Carmen. Ria baixo, querido, ela disse.. minha ex-cunhada ainda pensa que eu e o irmão dela somos marido e mulher: riso se candidatando a secretária adjunta, noite depravada. Satã orquestral, chorando muitas cruzes. Quais lágrimas angélicas. Mantém reféns minhas excentricidades. Deus lhe pague (mô fio) seu velho filho da.. Às quatro ela. Atraente e maquiadaela me sorria já. A ela nada já então e dali por diante podia de qualquer maneira ser molesto que não faria a menor diferença. Você foi na festa?, perguntei. Fui, ela disse. Tô vendo, lindona cê tá, respondi. Onde você foi parar, te procurei um tempão antes de sair e não te achei em lugar nenhum, ela disse. Eu relutei um pouco para responder e ela interpretou minha demora como um artifício. Deu um passo na minha direção e mergulhou cremosamente na luz o alto dos seios dentro do decote do vestido azul marinho. Através de uma lúcida onda de náusea, eu respondi perguntando se ela tinha ficado com alguém na festa e ela interpretou minha pergunta como mais um artifício socrático que eu tinha desenvolvido subitamente para confundi-la. A cada frase evasiva minha eu percebia um movimeto dos lábios dela para dentro como um peixe, demonstrando que ela não estava disposta a morder nenhuma daquelas iscas que eu tirava da cartola apressadamente para desviar o rumo da conversa: ''Parece que quem ficou com alguém aqui foi você...'', ela disse, e esperou por um momento, com a boca entre-aberta, que eu falasse a verdade. Ela não ia entender se eu contasse tudo como foi, de modo que eu disse apenas ''Estava desperdiçado energia pela praia aqui na frente e acabei trombando sem querer com a sua ex-cunhada rolando na areia molhada com um cara de dois metros de altura e voz de Darth-Vader... '', deu certo, ela subitamente esqueceu a parte que me comprometia e me agarrou pela gola da camisa pedindo mais informações. ''Vamos subir para o nosso quarto, quero saber de tudo nos mínimos detalhes. A Susana tomou todas e desapareceu no meio da festa sem deixar rastro'', ela disse. ''Gostei do ''nosso'' quarto'', eu disse. Nem sempre eu dormia com ela lá em cima. ''Resta agora um pouco de bebida e um pouco de amor'', ela disse rindo maliciosamente após ficar com a imaginação excitada pelo adultério da ex-cunhada, mas eu não lembro se ela disse realmente isso, parecia mais alguma coisa em holandês: fokker, in de fuik lopen. Mas eu não falo holandês. Subimos agarrados um no outro. Ela ria, ria...

(continua)
KALKI-MAITREYA

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