quarta-feira, 9 de outubro de 2013

GRUPO DE TRABALHO (2.2)



Susana... ela pensa e ri, balbucia de novo, sei lá. Acho que bebi demais ontem, na festa, ela diz, mal consegue abrir os olhos de tanta dor de cabeça. Mas quer recompor-se na cama e me manda ir até a porta e chamar o garçom lá embaixo como se dele, agora, dependesse sua vida.- Por favor, ela diz. Me veja dois comprimidos pra dor de cabeça, um sanduíche de tomate e uma laranjada, ela diz com uma voz fraca e eu faço o favor de repássa-la ao garçom (é o filho da cozinheira, um moleque) parado na porta do quarto. Ele me dá uma piscadela maliciosa e digo baixinho que eu já falei para ele parar com isso e ele sai rindo como um pervertido pelos linóleos do corredor. De madrugada, depois que todo aquele resto de bebida e amor foi definitivamente tragado pelos confins da noite, eu fui até a janela fumar e ela afundou na cama como uma pedra num lago. A lua, tão clara que não tinha face, estava emoldurada pela janela aberta do quarto e durante uma hora de insônia em que eu tentava repassar os acontecimentos ela ardeu no centro da testa dela como um diamante amarelo. À distância estava silhuetada uma ilha deserta com seus rochedos e coqueiros e no braço extremo da enseada viam-se as luzes do palacete ainda acesas. Provavelmente a festa ainda continuava áquela hora. Agora, a vista enchia o horizonte ensolarado com todas as suas cores vivas de topologia e flora litorânea e um feixe de sol matinal se derramava sobre seu rosto á intervalos irregulares: ''Todo mundo no psy(!)'', ela disse zombeteiramente na cama, lembrando a festa da noite passada -Credo, terapia pra todo mundo ficar horroroso! kkkkkk (brincadeira..) -, fechando os olhos contra um duplo feixe de luz, a coberta agora por cima do rosto. Então o moleque apareceu com o café da manhã dela e os remédios e antes de sair me pediu uns cigarros e voltou com aquele risinho pervertido depois que eu fechei a porta. Então ela sentou na cama e comeu com aquele impulso irresistível de quem ainda estava um pouco bêbada, mastigando rapidamente o que ficara à sua frente. Apalpava o corpo a fim de afastar aquela sensação da ressaca de não possuí-lo inteiramente, mastigando junto a dor de dente e a dor de cabeça, inevitável. O laranjada sorveu-a de um só trago, o gosto agora delicado que lhe trazia de volta o corpo e a plenitude de sua feminilidade devidamente esparramada na cama- Uma surpresa boa, na festa, ela voltou a lembrar. Na minha mente os segundos desapareciam através do rosto dela. - Eu estava suportando os rostos dos mexicanos e daimistas parados ao redor com uma certa impaciência, mesmo porque eles não falavam quase nada e senti nitidamente que os olhos de dois deles me comiam com avidez cada vez maior, um pouco deformados pela pressa e o risco de cometer um ridículo erro de cálculo... -Engraçado, eu disse, me pareceram gente boa., eu disse -E são, mas sabe como é... ela respondeu - Mas com um mexicano que estava com a namorada (os outros quatro não eram casais) gostei de conversar. E mais: o barulho da música eletronica, pressão na pista, suor, sons e cores de boate, aquela imagem fixa de sexo na mente de todo mundo- uma fotografia pornografica em movimento na mente de cada um, é um ambiente que não estimula muito a conversação de alto nível- o instante fica completamente engarrafado na histeria do tempo psicológico de uma balada..., ela continuou, procurando os cigarros na cômoda do lado da cama - Já sem cautela, eu continuava bebendo entre ele e ela até com uma certa alegria intelectual quando eles contaram que conheciam um monte de gente ligada ao Carlos Castaneda e ao Armando Torres (esse ainda vivo, me parece...). Ele se chama Juan como Don Juan Matus e ela Vitória. Você vai gostar de conversar com eles, ela sugeriu - Já tinha notado, eu disse - Se não fossem as coisas que aprendi nos livros de Don Carlos já teria morrido há muito tempo, talvez na primeira semana cumprindo as ordens do Seu Adamastor. Don Carlos Castaneda, ''EL NAGUAL DE TRES PUNTAS(!)'', exclamei - Três ''PUTAS''(?!), ela disse e riu -''PUNTAS'', voce já leu todos os livros dele também, engraçadinha... apesar de que isso também não estaria tão fora da realidade de Don Carlos, pelo que andaram descobrindo nos últimos anos... cogia más que tudo... e aquelas estudantes de teosofia que falaram de tantrismo na hora da apresentação, foram na festa?, perguntei -Foram sim, mas ficaram muito pouco.. nossa, como elas são lindas(!) ficaram o tempo todo numa mesa do lado de fora da pista, bebendo discretamente e conversando baixinho.. toda hora que eu passava por elas pra ir ao banheiro elas me acenavam e riam simpática e amistosamente... não sei porque, mas fiquei com a impressão de que elas são namoradas, ela disse e olhou pra mim esbugalhando os olhos numa risadinha diabólica -Como assim, namoradas... voce diz: as tres? , indaguei um pouco confuso. - É , as três...,ela disse, e começou a rir... -Que coisa... A pausa exigida como definitiva. O espelho do banheiro já aceitando refletir o corpo concreto e refeito dela agora de pé, a aceitação do rosto com olheiras e o cansaço já aplacado pela refeição. - Então os hermanos pertencem á uma genuína linhagem tolteca? Legal, observei enquanto ela tirava a roupa debaixo para entrar no chuveiro. Porque agora eu a olhava nua e de costas pra mim, mais curioso e atrevido como se a escolhesse entre tantos outros modos de começar o dia. Afinal era ainda bem moça e muito bonita. O rosto dela sob a água tinha os traços impregnados de uma nova luz, como se conscientemente vencesse a barreira mínima da água para recuperar sua esplendorosa aparencia de sempre com a qual enfrentava e vencia também o receio e a necessidade de livremente mastigar o mundo e suas mazelas. Como as práticas energéticas embelezam uma mulher, pensei...- Sei que você reverencia Don Castaneda como uma especie de Jesus Cristo da mundanidade ocultista, mas eu ainda reluto em seguir autores ou linhas de pensamento de forma integral. Acho que devemos nos comportar como Lautreamont. Pega-se um parágrafo qualquer de um livro sagrado qualquer, por exemplo.. faça-se lá um juízo de valor ou coisa que o valha, referente aos aspectos mais reveladores do ensinamento ali contido. Recorta-se inopinadamente as melhores idéias, desprezando e omitindo sempre o nome do autor até que desapareça completamente do texto qualquer noção de autoria. Então você verte todo esse gesso mole e fresco sobre sua própria face., ela concluiu, e era afinal de contas um belíssimo pensamento aquele, eu não tinha dúvidas - Poxa, parabéns.. isso foi um insight e tanto.. voce devia falar isso hoje na segunda parte das apresentações., eu disse, felicitando-a. - E vou.., ela respondeu - Quanto ao Don Cristo da mundanidade, como voce acabou de definir Castaneda, acho que também faz sentido, a impecabilidade mundana renascentista era basicamente um cultivo energético do estado de animo dentro de um circuito de ações no qual se buscava desenvolver as ''coragens tântricas''... E aquelas técnicas de acumulação de energia de Don Juan Matus são exatamente isso, e no meio da selva eu costumava passar um bom tempo em celibato total praticando o ensoño de noite e o silencio interno no fundo do rio. Por isso eu não morri ou enlouqueci no garimpo, é simples: porque motivos tiveram de sobra, eu disse, espalhando um pouco o assunto para dentro de outras tradições: ''tener las potencias dispuestas hacia arriba supone invertir las propias energías en una sola dirección y con una (in)cierta previsión de abertura de la barreira epistemoclina, permitiendo el acceso del sujeto al dominio de la Incognosfera. En otras palabras, esta última opción supone una apuesta por la trascendencia.'', recitei de memória, não tinha a menor idéia de onde tinha lido aquilo, mas tinha ficado gravado na minha mente. - ''ORA ET LABORA’’,uhuhhhhhh... inspiradíssimo hein... será que foi eu que te fiz acordar assim? Tô ficando boa de serviço, vou começar a cobrar, ela disse e riu de novo. -E o que mais, da festa?, perguntei... - Arthur, o marido da Susana. Coitado,depois que voce me contou eu fiquei com pena, mas ele é um sujeito horrível e pegajoso. Sempre foi.. Quando os dois ainda estavam juntos na festa eu senti o tempo todo que ele queria meter aquelas mãos gordas e avermelhadas por dentro de mim.. Teve uma hora que ignorei uma coisa que ele falou sobre sua última viagem á China e ele pensou que isso era uma entrada e tentou enconstar em mim. Affffff... Inventei uma ida ao banheiro na hora e saí de perto.. Já a Susana dava pra notar que estava querendo provar alguma coisa ao marido desde o começo da festa, com aquele busto avantajado dela e o andar excessivamente seguro de si... Ela é muito linda, mas sempre me pareceu um robô com uma Jackeline Kennedy dentro dela querendo sair, ela disse e acendeu outro cigarro e olhou para mim, certamente esperando meu juízo de valor sobre a beleza da ex-cunhada. - Tão perfeita assim? Será? Ontem á noite na praia rolando na areia com aquele sujeito ela parecia mais a Chitara dos TunderCats fazendo um filme pornô... Mas é muito bonita mesmo, você tem razão.., eu disse.- He he... o sincero amor que eu sentia por ela quando entrevia esses seus rasgos de fisionomia era como um crescente e acelerado rasgar de véus dentro de mim.. como se aprendia com ela(!) -  Eu particularmente gosto de fotos de mulheres, e se forem fotos inspiradas melhor ainda, mas admito que é um assunto delicado e do qual entendo muito pouco, respondi, enquanto ela saía do banho já vestida num traje esportivo e tênis com amortecedor. - Vou dar uma corrida, você vem, ela convidou. - Não, obrigado.. vou tomar café puro de estomago vazio e fumar mais uns cinco cigarros em jejum, depois vou fazer um pranayama prolongado e consultar os mestres ascensos da hierarquia de luz, eu disse, soltando um pavoroso pigarro.
(continua)
KALKI-MAITREYA

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