terça-feira, 8 de outubro de 2013

UM NOVO TIPO DE LIVRO

 
Sentimos todos os perigos que nos espreitam nessa questão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico (“os jovens conosco”...) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche...) E em seguida, sobretudo, perigo de uma síntese abominável. Toma-se como aurora da nossa cultura moderna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma contracultura. É evidente que a sociedade moderna na sua essência não funciona a partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases. Ora, se consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, vemos que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo (“vocês estão doentes pelo Estado, e serão curados pelo Estado”, não será o mesmo Estado); recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa cultura, o marxismo e a psicanálise, como as duas burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cuja meta é operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não pára de se descodificar no horizonte. O caso de Nietzsche, ao contrário, não é absolutamente esse. Seu problema está em outro lugar. Através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um corpo no qual isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito...
 

Conhecemos os grandes instrumentos de codificação. As sociedades não variam tanto, não dispõem de tantos meios de codificação. Conhecemos três principais: a lei, o contrato e a instituição. Nós os reencontramos  muito bem, por exemplo, na relação que os homens mantêm ou mantiveram com os livros. Existem livros da lei, nos quais a relação do leitor com o livro passa pela lei. Aliás, nós os denominamos mais particularmente códigos, ou livros sagrados. Em seguida há uma outra espécie de livros que passam pelo contrato, a relação contratual burguesa. É esta a base da literatura leiga e da relação de venda do livro: eu compro, você me dá o que ler – uma relação contratual na qual todos, autor, leitor, estão presos. E há ainda outra espécie de livros, o livro político, de preferência revolucionário, que se apresenta como um livro de instituições, sejam presentes ou futuras. Toda espécie de mistura é feita: livros contratuais ou institucionais que são tratados como textos sagrados... etc. É que todos os tipos de codificação estão tão presentes, subjacentes, que os encontramos uns nos outros. Seja um outro exemplo, o da loucura: a tentativa de codificar a loucura é feita sob três formas. Primeiramente, as formas da lei, ou seja, do hospital, do asilo – é a codificação repressiva, é o confinamento, o antigo confinamento que será chamado no futuro a tornar-se uma última esperança de salvação, quando os loucos dirão: “Bons os tempos em que nos confinavam, pois hoje em dia se passam coisas piores”. Em seguida, houve uma espécie de golpe formidável, que foi o golpe da psicanálise: entendia-se que havia pessoas que escapavam à relação contratual burguesa tal como ela aparecia na medicina, e essas pessoas eram os loucos, porque estes não podiam ser partes contratantes, eram juridicamente “incapazes”. O golpe de Freud foi fazer passar sob a relação contratual uma parte dos loucos, no sentido mais amplo do termo, os neuróticos, e explicar que se podia fazer um contrato especial com eles (donde o abandono da hipnose). Ele é o primeiro a introduzir na psiquiatria, e é nisto finalmente que consiste a novidade psicanalítica, a relação contratual burguesa que até então fora excluída dela. E, em seguida, existem ainda as tentativas mais recentes, cujas implicações políticas e às vezes ambições revolucionárias são evidentes, as tentativas ditas institucionais. Encontra-se aí o tríplice meio de codificação: ou bem será a lei, e se não for a lei será a relação contratual, e se não for a relação contratual será a instituição. E sobre essas codificações florescem nossas burocracias.
 

Diante da maneira pela qual nossas sociedades se descodificam, pela qual os códigos escapam por todos os lados, Nietzsche é aquele que não tenta fazer recodificação. Ele diz: isto ainda não foi longe o bastante, vocês são apenas crianças. No nível daquilo que escreve e do que pensa, Nietzsche persegue uma tentativa de descodificação, não no sentido de uma descodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou futuros, mas de uma descodificação absoluta – fazer passar algo que não seja codificável, embaralhar todos os códigos. Embaralhar todos os códigos não é fácil, mesmo no nível da mais simples escrita e da linguagem. Só vejo semelhança com Kafka, com aquilo que Kafka faz com o alemão, em função da situação lingüística dos judeus de Praga: ele monta, em alemão, uma máquina de guerra contra o alemão; à força de indeterminação e de sobriedade, ele faz passar sob o código do alemão algo que nunca tinha sido ouvido. Quanto à Nietzsche, ele vive ou se considera polonês em relação ao alemão. Apodera-se do alemão para montar uma máquina de guerra que vai passar algo que não é codificável em alemão. É isso o estilo como política. De um modo mais geral, em que consiste o esforço de um tal pensamento, que pretende fazer passar seus fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as? Volto rapidamente ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie Klein permanece, todavia, no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem: os objetos parciais dos quais nos fala, com suas explosões, seus fluxos etc., são da ordem do fantasma. Os pacientes trazem estados vividos, intensamente vividos, e Melanie Klein os traduz em fantasmas. Existe aí um contrato, especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos, eu lhe devolverei fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras. A esse respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se verdadeiramente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que esse procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes, não, não é isso. Há um momento em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o estado de consciência inspirado. Mesmo assim, isso é seguramente mais complicado. O que nós sentimos é antes a necessidade de uma relação que não seria nem legal, nem contratual, nem institucional. Com Nietzsche, é isso. Nós lemos um aforismo, ou um poema de Zaratustra. Ora, materialmente e formalmente, tais textos não são compreendidos nem pelo estabelecimento ou aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por uma instauração de instituição. O único equivalente concebível seria talvez “estar no mesmo barco”. Algo de pascaliano voltado contra Pascal. Embarcou-se: uma espécie de jangada da Medusa, há bombas que caem à volta, a jangada deriva em direção a riachos subterrâneos gelados, ou então em direção a rios tórridos, o Orenoco, o Amazonas, pessoas remam juntas Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de toda instituição. Uma deriva, um movimento de deriva, ou de “desterritorialização”: eu o digo de uma maneira muito nebulosa, muito confusa, já que se trata de uma hipótese ou de uma vaga impressão sobre a originalidade dos textos nietzscheanos. Um novo tipo de livro.
 


Nenhum comentário:

Postar um comentário