terça-feira, 26 de novembro de 2013

A composição de uma obra aberta

 
 
 
Annita Costa Malufe
 
 
 
[...] será que a composição de um livro já é uma questão

de estilo? Acho que é sim. A composição de um livro é

algo que não se resolve previamente. Ela se faz ao mesmo

tempo em que o livro se faz. Por exemplo, vejo em livros

que eu escrevi, se me permite citar o que eu fi z... Há

dois livros meus que me parecem compostos. Sempre dei

importância à composição. Penso em um livro chamado


Lógica do sentido que é composto por séries. Para mim, é

verdadeiramente uma composição serial. E Mil platôs é


uma composição por platôs. Para mim, são duas composições

quase musicais, sim. A composição é um elemento

fundamental do estilo.

Em ambos os casos, a organização linear, hierárquica, sugerida

pela separação em capítulos, cede lugar a uma composição horizontalizada,

de partes que parecem correr em paralelo, quase como em

um "jogo da amarelinha" cortazeano. É como se cada série, ou cada

platô, funcionasse como uma peça independente, vinda cada uma de

um quebra-cabeças diferente; ao mesmo tempo, como se essas peças

fossem "violentamente inseridas" umas nas outras, forçando novos

encaixes (DELEUZE; GUATTARI, 1972, p.51).

As séries e os platôs

podem ser lidos em diferentes ordens, criar diferentes trajetos entre

si e, a cada vez que um deles participa da leitura, a paisagem geral do

livro se modifi ca, ainda que se mantendo numa relativa independência

em relação a suas partes e vice-versa.

No caso do livro com Guattari, diz Deleuze, os platôs foram

concebidos como "anéis quebrados", penetrando uns nos outros,

sendo que: "Cada anel, ou cada platô, deveria ter seu clima próprio,

seu próprio tom ou seu timbre" (1992, p.37). Cada um dos platôs,

explica ele, seria uma espécie de mapa, traçando seu próprio trajeto:

"[...] os platôs são zonas de variação contínua, são como torres que

vigiam ou sobrevoam, cada uma, uma região, e que emitem signos

umas às outras" (1992, p.177). Para quem teve contato com a obra na

tradução brasileira, um elemento a mais participa dessa construção

fragmentária: por questões editoriais, a obra, formada por um único

tomo no original, foi dividida em cinco volumes. Assim, o leitor que

não teve contato com a obra em francês vive uma sensação ainda

mais concreta da independência entre os platôs e uma outra experiência

da leitura dos Mille plateaux: cada volume da edição brasileira


constitui um livro, um todo, cada um por sua vez com seu "timbre",

seu "tom", cada um constituindo um mapa (variando de dois a quatro

platôs), um plano de consistência próprio. O que aqui se coloca

em questão não é se as consequências dessa circunstância de publicação

são boas ou ruins, mas a observação do quanto ela pode acarretar

uma mudança na leitura da obra e o quanto o próprio formato da

obra, em platôs com uma autossufi ciência relativa, possibilitou que

essa divisão fosse realizada.

Há uma lição aprendida com Proust, que Deleuze e Guattari

não escondem. A ideia acerca do estilo proustiano aparece em O

anti-Édipo, em 1972, e é retomada por Deleuze em Proust e os signos,


de 1976, como a constituição de um todo da obra como efeito de

fragmentos que não se unifi cam nesse todo. Ou seja, partes que permanecem

com suas devidas autonomias, sem se dissolverem em uma

unidade comum, sem perderem sua independência, sua singularidade,

em prol de um unifi cador – seja ele de ordem simbólica, interpretativa

ou do signifi cante. As partes são peças rearranjáveis, que permitem

percursos diversos de leitura e, a cada percurso, um efeito de leitura

diferenciado. O todo é então um todo modulável, que se dá como

efeito "ao lado" das partes, é uma "pincelada fi nal", como diz Proust

acerca do estilo de Balzac (DELEUZE, 1987, p.165). Vale transcrever

o trecho em que Deleuze e Guattari narram o movimento dessas

peças:

E é notável, na máquina literária de Em busca do tempo perdido,


até que ponto todas as partes são produzidas como lados

dissimétricos, direções quebradas, caixas fechadas, vasos

não comunicantes, compartimentações, nas quais mesmo

as contiguidades são distâncias e as distâncias, afi rmações,

pedaços de quebra-cabeça que não são do mesmo mas de

diferentes quebra-cabeças, violentamente inseridos uns nos

outros, sempre locais e nunca específi cos, e com suas bordas

discordantes, sempre forçadas, profanadas, imbricadas umas

nas outras, e sempre com restos (1972, p.51).1


A autonomia relativa dessas partes – séries ou platôs, conceitos

ou imagens – não signifi ca que elas não se comuniquem, que não

constituam trânsitos diversos entre si, pelo contrário: o estilo proustiano,

que Deleuze e Guattari tanto admiram, seria justamente esta

possibilidade de criar um todo múltiplo, que é efeito de fragmentos

não totalizáveis, porém extremamente ressoantes entre si. Há linhas

que se tecem a todo momento, em direções diversas, entre elementos

que constituem um texto, um livro. Relações que se fazem necessárias,

ligando o que pareceria solto, criando uma fl uência entre

fragmentos, forçando trajetos intensivos. Dessa lição estilística com

Proust, tem-se a constituição de uma obra que retira sua possibilidade

de ser "uma" obra, de ter sua unidade, justamente por efeito de

ressonâncias internas entre suas peças. Há um fl uxo que se cria por

força das distâncias entre os elementos, pela ausência de relação dada

(preestabelecida, causal, extensiva, atual) entre eles.

Como vimos no trecho citado anteriormente de L’Abécédaire,


a composição do livro é um elemento importante na elaboração do

estilo para Deleuze e não é algo preconcebido, mas que se faz "ao

mesmo tempo em que o livro se faz". Deleuze cita pontualmente

Lógica do sentido e Mil platôs, como dois bons exemplos em que


se tem uma preocupação composicional, "duas composições quase

musicais". Mas, embora não seja em todas as obras de Deleuze que

a estruturação do livro atue assim tão ativa ou experimentalmente,

pode-se dizer que a composição, e portanto o trabalho com o estilo,

é muito presente no interior dos textos mesmos – em verdade, ele

nunca está ausente.

E, ainda que se fale em composição serial ou por platôs de

modo mais explícito nesses dois casos, mantém-se nos outros livros

de Deleuze, em geral, uma fragmentação bastante próxima à operação

que viemos descrevendo acerca de Proust. Além de capítulos

geralmente mais breves, nota-se uma relação entre eles não hierarquizada,

não linear, não centralizada. O que poderíamos traduzir, em

termos dessa fi losofi a, na opção por sistemas a-centrados, isto é, a recusa


de livros que seguiriam os modelos da árvore ou da raiz, com

um tronco principal, galhos derivados, apenas uma porta de entrada e

uma de saída, os capítulos servindo de organizadores a esta hierarquia

e linearidade que se dão sempre em vista de um Uno transcendente.


No lugar disto, pode-se notar a busca por livros com todo um outro

tipo de composição, mais horizontalizada, que opta por uma maior

mobilidade e trânsito entre os capítulos. O livro parece ir se montando

diante dos olhos do leitor, ao invés de oferecer uma unidade

pronta de antemão.

Essa constituição mais quebradiça seria um dos procedimentos

utilizados por Deleuze no seu esforço de tratar a escrita como um

fl uxo e não um código, tal vemos em suas falas em Conversações. A


fragmentação e o modo não hierarquizado de criar conexões entre

os fragmentos, no entanto, não se restringem à estruturação dos livros,

mas apontam para um movimento interiorizado em sua escrita

de forma generalizada, nos elementos e movimentos menores que a

compõem. A organização do livro é então somente um desdobramento

maior, uma reverberação de um movimento que já se dá nas

dimensões menores e mais subterrâneas de sua escrita

(...)

Anéis partidos ou "anéis quebrados", como se refere Deleuze

acerca dos platôs, em seus modos de se enganchar e se engatar uns

nos outros mantendo, no entanto, uma relativa autonomia. Ou ainda,

anéis abertos, como dizem ele e Guattari quando, ao falarem da escrita

de Kleist, parecem descrever a própria dinâmica que buscavam

em sua composição: "Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento

quebradiço de afetos com velocidades variáveis, precipitações

e transformações, sempre em correlação com o fora. Anéis

abertos" (1995a, p.18, grifo meu). Cada fragmento do texto, conceito,


frase, oração, constitui uma espécie de todo que gira sobre si, mas

que sempre se mantém aberto em algum ponto, permitindo encaixes

múltiplos com outros elementos (sejam eles internos ou externos ao

texto). Não se trata de um acaso, pelo contrário: o esforço composicional

de Deleuze ao escrever parece ir neste sentido: "interessa-me

que uma frase fuja por todos os lados, e no entanto que esteja bem

fechada sobre si mesma, como um ovo" (DELEUZE, 1992, p.24).

Como criar uma frase que "fuja por todos os lados" e que, ao

mesmo tempo, se baste em si mesma? Problema de estilo. Uma frase

que fuja por todos os lados é uma frase, como a de Kleist, "sempre

em correlação com o fora", é uma frase-anel-aberto, conectada com

aquilo que não é apenas linguístico, não é apenas código e não se efetua

apenas ali, entre as palavras. É uma espécie de frase-isca: por um

lado, "a palavra pescando o que não é palavra", se roubarmos os termos

de Clarice Lispector (1999, p. 385); por outro, a palavra também

sendo pescada por este limite não linguageiro, sendo arrastada por ele

– sons e imagens "inomináveis", sopros, gritos, cantos, epifanias.

Assim, é como se, para fugir por todos os lados, para alcançar

ou ser alcançada por essas visões e audições que estão no limite da

língua, a frase precisasse possuir contornos e membranas bem delimitados,

como um ovo. Mas, notemos, o ovo aqui pode não ser apenas

o que está hermeticamente lacrado, mas ser simultaneamente este duplo

aspecto: estar fechado em si e, ainda, fugir por todos os lados. Isso

porque o ovo é energia potencial, condensação pura de intensidades,

a serem futuramente atualizadas, conectadas, formadas, desdobradas,

encarnadas. O ovo é "matéria intensa e não formada, não estratifi

cada, a matriz intensiva" (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.13),

distinguindo apenas gradientes, tonalidades, migrações, zonas de vizinhança.

Ele é pré-formal, é anterior às formalizações, o que não

signifi ca ser indiferenciado, mas sim possuir um potencial de relações

ainda não atualizado.

Uma frase-ovo é então essa que possuiria uma perfeita autonomia,

estando muito bem fechada sobre si mesma, e ao mesmo tempo

uma abertura incontida ao fora, às conexões que poderiam se dar no

futuro das leituras – sendo no encontro da leitura que se dão as visões

e audições, que as palavras podem sussurrar, gritar, fazer ver. Aqui,

um ponto crucial: essas são conexões não previstas, não preestabelecidas,

embora delimitadas pelo campo intensivo da frase. A frase-ovo,

como matriz intensiva, possui sua plena distinção, sua singularidade,

e sua leitura não pode ser confundida com ideias aparentemente semelhantes,

tais como: de que o leitor criaria o texto que quisesse (o

equívoco da abertura plena, que recai no caos), ou de que ele decodifi

caria expectativas previstas, tal chaves de leitura deixadas pelo

autor (o equívoco da falsa abertura). É, antes,

como se a frase-ovo fosse constituída de fi os soltos, a serem ligados na

leitura. Ela se atualiza, ela acontece, na leitura; ou ainda, cada leitura

efetuaria uma atualização da frase, diferenciando-a a cada vez. "É do

tipo ligação elétrica" (DELEUZE, 1992, p.17).


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