sábado, 9 de novembro de 2013

A máquina de escrever: um campo de batalha

Gravura de João Pinheiro

Por Glauber Rocha

Diante do mar Português vejo minha vida desfilar inteira pelo papel. Se fosse um filme, seria a história de um sertanejo de Vitória da Conquista que chegou à compreensão científica do mundo e a exprimiu em cinema e letras e política."

"Tenho de trabalhar nesta máquina de escrever como se estivesse numa dessas terríveis batalhas " . Abro os pacotes e malas que me acompanham em todas as viagens: cartas, roteiros, textos.

Dos 13 aos 42 anos, fiz uma auto-análise sistemática através dos escritos. Releio trechos de cartas, rascunhos, poemas roteiros inacabados. Escrevi mais do que filmei.

Aos 13 anos, lia histórias em quadrinhos, X-9, Detetive, as aventuras do Superman, mas também Jorge Amado, Érico Veríssimo, Edgar Allan Poe e R. Kipling. No cinema admirava Chaplin e Jean Cocteau. Na filosofia, Schopenhauer, Voltaire, Nietzsche.

Acredito na eternidade. A morte é uma invenção da direita. A família é protestante num país católico em que todos, estou na Bahia, freqüentam os terreiros e praticam o candomblé.

"Somos um país sentimental, uma nação sem gravata".

Passei a infância na pequena Vitória da Conquista, sudoeste da Bahia, onde nasci e cresci lendo a Bíblia e ouvindo histórias do sertão, de matadores de aluguel e cangaceiros, que iriam virar filme. Queria me tornar um escritor, mas só tinha uma certeza "escreverei sobre minha terra. Prefiro os escritores brasileiros aos europeus."

Amo o poeta Castro Alves, morto aos 24 anos, nascido na Bahia no mesmo dia 14 de março, como eu, e como eu um "amante das antíteses e das hipérboles". Sofro da mesma exaltação poética!
Glauber Rocha
idem

Post Scriptum
 
Segundo Deleuze, tanto a arte quanto a filosofia são atividades criadoras, ambas

"recortam o caos da vida e o enfrentam, mas não é o mesmo plano de corte, não é a mesma maneira de povoá–lo; aqui constelação de universo ou afectos e perceptos, lá complexões de imanência ou conceitos. A arte não pensa menos que a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos.

 
(através de uma experiência de vida)

 
Isto não impede que as duas entidades passem frequentemente uma pela outra, num devir que as leva a ambas, numa intensidade que as codetermina." (DELEUZE & GUATTARI, 2010, P. 80-81)
 
Deleuze não enxerga a filosofia relacionada a conceitos como verdade ou moral. Em vez disso, aproxima a filosofia da arte. Também a filosofia é uma questão de gosto e se em O que é filosofia? o filósofo, junto a Guattari, cria o conceito de gosto, que é a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado, do personagem [conceitual] ainda nos limbos, do plano [de imanência] ainda transparente, para determinar a inclinação filosófica é porque mais importante que o pensamento é aquilo que dá a pensar, e a arte se preocupa em dar a pensar. Mais importante é a construção de sentido, e a arte se preocupa só com a construção de sentidos.
 
No livro com Clarie Parnet, Diálogos, Deleuze retoma o assunto de maneira mais direta:

 
"Que o escritor seja minoritário não significa que há menos pessoas que escrevam do que leitores; já não seria verdade hoje em dia: significa que a escritura encontra sempre uma minoria que não escreve, e ela não se encarrega de escrever para essa minoria, em seu lugar, e tampouco sobre ela, mas há um encontro onde cada um empurra o outro, o leva em sua linha de fuga, em uma desterritorialização conjugada. A escritura se conjuga sempre com outra coisa que seu próprio devir. Não existe agenciamento que funcione sobre um único fluxo. Não é o caso de imitação, mas de conjugação. O escritor é penetrado pelo mais profundo, por um devir–não–escritor." (DELEUZE & PARNET, 1998, p. 36)

 
Enquanto a literatura convencional é associada ao aparelho estatal, a literatura radical funciona como uma máquina de guerra contra os poderes instituídos.. O texto literário é uma criação, uma invenção, mas, ao mesmo tempo em que nasce do contato com o real, a partir do momento em que é publicado, interfere no real e o modifica.
 
A literatura não é um caso de memória, mas de relógio que adianta. O pensamento não é exclusividade da filosofia, tanto o cinema quanto a literatura também pensam. O que dá sentido à arte é seu contato com a diferença em estado selvagem, com o extemporâneo, com o irreconhecível.
 

 
 

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