quarta-feira, 6 de novembro de 2013

ALBEDO (13)




Eu havia me instalado num hotel razoavelmente civilizado na parte baixa da rua Halfeld, em Juiz de Fora, e por três dias e três noites eu simplesmente não saí de dentro do quarto que tinha alugado. Comprei uma quantidade considerável de mantimentos (pão integral, frutas e caixas de leite) ,com o que eu pretendia fazer uma limpeza do meu organismo, antes de começar as práticas de silêncio interno mais intensas e as baterias de exercícios físicos mais radicais. Tendo um prazo exíguo de quinze dias para recompactar minha energia antes de partir para o rio Xingú, no Pará, é claro que não poderia me ocupar com o trabalho de enegrecimento (NIGREDO) em tempo integral, então passei a recapitular freneticamente. Nesta fase do trabalho sobre si mesmo Carlos Castaneda volta a falar da importância dos exercícios de recapitulação dos eventos da vida e do controle sobre a respiração que o acompanha, para aprimorar os estados alterados de consciência que o iniciado busca para limpar sua mente dos sedimentos inferiores da personalidade, tais como as emoções negativas irradiadas a partir de lembranças ruins de pessoas, cenas, lugares e situações vividas que prendem sua atenção inconscientemente. O ensinamento nagualista diz que a RECAPITULAÇÃO é a forma de trazer de volta ao nosso corpo e espírito essa energia psíquica aprisionada. No começo deste trabalho, a recapitulação retém mais o silêncio interno no iniciado do que a meditação, que pode não produzir o efeito desejado se a mente da pessoa estiver excessivamente obstruída por imagens mentais de situações passadas. Como diria o poeta Manoel de Barros, a recapitulação ''prende o silêncio interno com uma fivela''. A vassoura da respiração é a tônica deste exercício de ocultismo prático, que deve ser realizado numa confortável meia-escuridão, com roupas leves, pés descalços e de preferência sentado numa poltrona acolchoada. A partir do quarto dia, passei a andar quilômetros e quilômetros pelas ruas de Juiz de Fora, sobretudo a partir das cinco da tarde, quando as principais vias do centro da cidade se transformam numa paisagem encantada, intensa como um sonho de ópio. Já andei muito pelas ruas de cidades do Brasil inteiro, e me arrisco a dizer que em lugar nenhum há tantas garotas lindas por metro quadrado fazendo o tradicional footing do final de tarde como em Juiz de Fora, Minas Gerais. Meus olhos pulavam de um rosto colegial de duquesa renascentista de dezessete anos para o de uma femme fatale cor de jambo em trajes advocatícios saindo do fórum com um olhar de águia das causas judiciais infinitamente ganhas, e daí para o de uma loira estrela de cinema de olhos verdes vestida com jaleco azul claro atrás do balcão de uma farmácia, e daí para uma entregadora de panfletos no meio da rua que devia ter sido Cleópatra ou Brigitte Bardot em sua última encarnação, como se eu viajasse através de uma terra cuja geografia era feita apenas de belos rostos femininos que eram cada um uma pequena cidade ou vila. Eu era como um peixe diante do vidro de um aquário deslizando num interminável traveling cinematográfico. Um olhar aderia ao crepúsculo queimava um olho fixava, olhado, olhando, havia por toda parte garotas lindas e bem vestidas saindo do colégio, indo para a faculdade, conversando com roupas colantes nas portas das academias de ginástica. Bocas de batom vermelho se destacavam na sombra, incendiavam-se em profundo detalhe sob a luz dos faróis dos carros na avenida Rio Branco, coxas roçando umas nas outras sob saias floridas, ancas perfeitas arqueadas, perfumes de aroma doce que invadiam minhas narinas, mais olhares de sonho, flertes inconcebíveis. Parava uma ou outra e pedia uma informação qualquer que eu já sabia de antemão, só para ter certeza de que eu não estava sonhando. Uma delas se chamava Daisy e me encarou interessadamente durante um longo minuto, sem pestanejar. Falei alguma coisa e não senti a voz na garganta, ela olhou para trás desconfiada e logo depois me deu seu número de telefone. Tinha namorado? Balada Sábado? Me deu o que pensar. Quinto dia. Mas decidi voltar ao hotel e dar continuidade ao trabalho. Sexta-feira. Voltar para o quarto daquele hotel na parte baixa da Halfeld e reivindicar ao espírito a intensidade oculta sob as coisas cotidianas. De qualquer jeito, isso já parecia estar acontecendo. O quinto dia de rastreamento energético sempre tinha me trazido tentações ao longo da vida, em função do magnetismo com que dotava minha aparência física. Por isso, para se avançar na caminhada íngreme do rastreamento energético o iniciado necessita ás vezes de uma capacidade de renúncia acima da crítica. A partir do terceiro dia eu já tinha voltado a ouvir com aguda nitidez o ''zumbido''do ouvido interno, que Helena Blavatski descreve com uma confusa avalanche de simbologias esotéricas em seu livrinho intitulado A VOZ DO SILÊNCIO. O som (upadi) é o veículo da energia, na doutrina hindu. E é exatamente esse o som interno que o iniciado deve aprender a modular dentro da consciência para acessar a fonte de energia psíquica inesgotável. Devires e fluxos de intensidade. Êxtase-agenciamento, não êxtase-imagem. Parto invertido no lado oculto da realidade. Poderosa vitalidade não-orgânica atraída sabe-se lá de que estratificações astrais. Ato dinâmico da consciência. Desterritorialização da personalidade e passagem ao mundo fluido e luminoso dos arquétipos. Uma satisfatória incursão no mar escuro da consciência revela um mundo de entidades inorgânicas vivendo paralelamente ao mundo físico. Segundo os videntes da linhagem do nagual Juan Matus, existem na Terra 48 grandes faixas de emanações, e podemos encontrar esse número em muitas outras tradições ocultistas, tal como no sufismo de Gurdjieff. Segundo a tradição tolteca, quarenta destas faixas de emanações são formais (elementais) e não abrigam qualquer forma de consciência, são apenas estruturas. As oito faixas de emanações restantes possuem vida consciente, mas apenas uma, a nossa, abriga vida orgânica. Afirmam ainda os toltecas que cada faixa desse grupo de oito está constituída por três feixes de consciência, assim podemos relacionar os sete grupos de seres inorgânicos aos vinte e um cernes abstratos mencionados por Carlos Castaneda. Os seres inorgânicos representam energias pares, pois são um universo paralelo. Os antigos xamãs do México descobriram muito cedo que o universo inteiro está composto de forças gêmeas, forças que se opõem e se complementam, daí o fato da maioria dos bruxos toltecas transformarem algumas dessas entidades inorgânicas em ''aliados''. Os inorgânicos possuem uma consciência infinitamente mais desenvolvida que a nossa, mas carecem de energia vital, o que sobra nos seres humanos, e por isso também lhes interessa este tipo de intercâmbio ou aliança. É irrefutável que o nosso mundo é um mundo gêmeo, e que o mundo oposto e complementar á ele está povoado por entidades que tem uma consciência, mas não um organismo. Tais ''forças gêmeas'' correspondem em larga escala ao universo paralelo da moderna Teoria científica da Supersimetria. A maior parte desses seres inorgânicos têm a mesma longevidade do planeta, e nesse sentido (e só nesse sentido) podem ser considerados eternos. A TERRA É A SUA MATRIZ (Tábua de Esmeralda, HermesTrismegisto). Com o definitivo abandono do corpo físico, na ocasião de suas mortes, os iniciados se convertem eles também em seres inorgânicos, o que não ocorre com uma pessoa comum, cuja consciência automaticamente se extingue. Um iniciado desencarnado é como um ser inorgânico muito especializado, de grande velocidade, capaz de manobras assustadoras de percepção. Deitado na escuridão daquele quarto de hotel, a partir do sexto-dia, passei a meditar extaticamente ao longo de horas e horas a fio, completamente morto para o mundo em meio a uma overdose de percepções extra-sensoriais. Pontos de luz, vultos inorgânicos, linhas de gradientes produzindo pressão na base do crânio, ondas de energia percorrendo meu corpo inteiro e provocando aquele característico formigamento na região entre meus olhos, causado pela hiper-atividade da glândula pineal secretando DMT. O trabalho do Dr. Rick Strassman, psiquiatra da Universidade do Novo México, é especialmente significativo nesse sentido: o de buscar estabelecer uma base biológica para estados alterados de consciencia (místicos), a ponto de propor que a glandula pineal tem em si todos os componentes necessários para produzir substancias quimicas psicodélicas como o DMT , tamanha a semelhança encontrada entre estados psicodélicos de gente que ingere DMT e altos estados de meditação e experiências de quase morte (EQM). ''É como se a glândula pineal posuísse todos os compostos, enzimas e blocos estruturais construtivos necessa´rios para a produção independente de DMT'' (Rick Strassman). 'A glândula pineal também exercia uma fascinação em mim porque ela se torna visível pela primeira vez no feto humano 49 dias depois da concepção [geração do embrião]. Essa também é a ocasião quando o sexo do feto se torna claramente distinguível. 49 dias, segundo diversos textos budistas, é quanto tempo leva para a força vital de alguém que morreu entrar na próxima encarnação. Talvez a força vital de um humano entre no feto após 49 dias através da glândula pineal'' (Rick Strassman). Alguns cientistas acreditam que as células pineais em todos os vertebrados compartem um ancestral evolutivo em comúm com as células retinais (não é mera casualidade que a glândula pineal historicamente seja identificada como o ''TERCEIRO OLHO'' das tradiçioes místicas ou mesmo um ''olho adormecido'', literalmente parece ser um ''terceiro olho adormecido'' na maioria das pessoas. Ainda que a produção de melatonina na glândula pineal poderia estar determinada por uma conexão com os nervos ópticos, é interessante explorar a possibilidade de que esta pequena glândula em forma de pinho (e daí seu nome: pineal) tenha, em si mesma, uma certa capacidade fotoreceptora y magnetoreceptora. Recentemente se descobriu a presença de minerais ferromagnéticos (o que quer dizer 'actuar como magnetos) na glândula pineal. Um estudo realizado pela Universidade de Ben Gurion, em Israel, encontrou a presença de microcristais de calcita na glândula pineal. Os autores do estudo assinalam que ''esses cristais poderiam ser responsáveis por uma TRANSDUÇÃO BIOLÓGICA ELETROMAGNÉTICA, o que é sugerido por sua ''ESTRUTURA E PROPRIEDADES PIEZOELETRICAS. Era durante a prática da recapitulaçao tal como descrevi acima (recordação de si e auto-hipnose via respiração holotrópica) que os câmbios de luz e som mais significativos começavam para valer. Depois de estabelecidos, eu passava a meditar no escuro ininterruptamente. Entrava na luz da segunda atenção quase que instantaneamente, sabendo que para não me perder na selva de batedores inorgânicos aquela imersão devia ser simultaneamente suplantada pelo mecanismo de embranquecimento alquímico (ALBEDO) que permitia a fixação da energia psíquica pura no ponto ou olho central de projeção da consciência. O maior perigo do trabalho de enegrecimento é a perda da sobriedade, perder-se tão profundamente nos abismos da segunda atenção - que é um estado vegetativo de contemplação - ao ponto de não conseguir mais retornar a um estado de equilíbrio são na vida cotidiana. Mas o autêntico iniciado é alguém que já passou por todo esse perrengue e aprendeu a reconduzir a consciência ao seu estado habitual de normalidade. Aprendeu, numa palavra, e através de um duríssimo treinamento, a discernir entre todas as forças estranhas com que entra em contato dentro do mar escuro da consciência a identificar a luminosidade das influências fortalecedoras e estabelecer-se no ponto brilhante da transparência de um psiquismo humano purificado, através do qual a luz do intelecto (discernimento) se filtra cada vez mais. Enquanto o praticante de magia negra se apega somente aos elementos da consciência de aspecto telúrico, pelo fato de só os conhecer através dos cinco sentidos terrenos, o iniciado percebe diretamente sua substância anímica, uma vez que os espíritos da terra, água, ar e fogo já lhe foram revelados no momento em que ele recebeu sua iniciação e nasceu definitivamente para o lado oculto da realidade. A partir deste momento, ele passou á compreender á perfeição o que os islâmicos chamam de ''Linguagem dos Pássaros'' (Ullima Mantiqat-Tayri) (Alcorão, XXVII,15) , o que lhe proporcionou a reintegração ao centro do estado humano. No simbolismo medieval do Peridexion (corruptela de Paradision) observam-se os pássaros sobre os ramos das árvores e o monstro (dragão) a seu pé. Essa oposição é traduzida em todo ser pelas tendências ascendentes e descendentes, denominadas, respectivamente, sattwa e tamas na doutrina hindu. O iniciado tem então sua percepção aberta á dimensão sattwica, o que lhe permite ''retificar'' (como na fórmula da alquimia medieval: VISITA INTERIORA TERRAE E RECTIFICANDO OCCULTUM LAPIDEM) as influências ambíguas reabsorvendo-as nas fagulhas do fogo mental superior que, por assim dizer, queima aquilo que não se presta á evolução da consciência. O iniciado reintegrado ao centro superior do estado humano vê a natureza a partir de dentro, e isso já faz parte do processo de embranquecimento alquímico (ALBEDO). No simbolismo vegetal, muito empregado pelos alquimistas medievais, a fase de embranquecimento corresponde á chegada da primavera: após o obscuro inverno da consciência na fase de enegrecimento todas as cores voltam á se manifestar, pouco á pouco, na branca oferenda de uma Lila. No simbolismo animal, enquanto o trabalho de enegrecimento se relaciona ao ''vôo do corvo'' , o trabalho de embranquecimento começa com a abertura do ''leque do pavão real'' e é completado com a visão de um cisne branco deslizando em um mar prateado. E, finalmente, no simbolismo mineral, que é o mais afim á alquimia, o trabalho de embranquecimento é um ''batismo'', uma ''lavagem'' que purifica a substância metálica e a cristaliza como prata, ''nossa prata viva'', que é pura, sutil, luminosa, clara como a água de uma fonte. Na representação de Gichtel o ALBEDO parece corresponder ao matrimônio de Marte e Vênus. Aqui, a Vênus é a deusa do amor divino, e não a do amor erótico de outras representações. É a ''Vênus celestial'' , amorosamente receptiva á presença espiritual. A alquimia medieval adotou em larga escala o simbolismo da busca espiritual que sempre culmina em uma imagem feminina da ALMA DO MUNDO: o cálice do SANTO GRAAL. Eles defendiam ainda a idéia de que todos esses conceitos são opostos á busca de qualquer prazer erótico, pelo fato de dizerem respeito apenas ao reestabelecimento de um estado de casta submissão á vontade divina, mas para mim sempre foi muito difícil aceitar essa idéia integralmente, mesmo porque minha trajetória iniciática foi toda de base tântrica e sexual. Certamente a concentração temporária de energia sexual é a base de todo trabalho iniciático autêntico e ninguém que tente diminuir sua importância no meio espiritual merece ser levado á sério, mas no mundo em que vivemos dificilmente um processo de iniciação regular culminará de fato no oferecimento de uma alma absolutamente virgem ao abraço do espírito transcendental. Isto em nada impede que haja uma verdadeira iniciação se a energia necessária tiver sido reunida no corpo do buscador de poder espiritual. Os alquimistas medievais eram ascetas retirados do mundo da vida mundana, o que não é o meu caso. Por isso, para mim era um momento de alívio fundamental sair daquele quarto de hotel no fim da tarde para andar á esmo pela cidade após longas horas de meditação que começavam a partir das dez da noite e varavam a madrugada até o raiar do dia. Solvitur ambulando. ''A rua conduz o flanador á um tempo desaparecido'', como diz Walter Benjamin em seu genial ensaio sobre o poeta francês Charles Baudelaire: ''Para o flanador, todas as ruas são íngremes. Conduzem para baixo, senão para as mães, para um passado que pode ser tanto mais enfeitiçante na medida em que não é o seu próprio, o particular. Contudo, este permanece sempre o tempo de uma infância. Mas porque o de sua vida vivida? No asfalto sobre o qual caminha, seus passos despertam uma surpreendente ressonância. O lampião á gás que resplandece sobre o calçamento projeta uma luz ambígua sobre esse fundo duplo. - Uma embriaguez acomete aquele que longamente vagou pelas ruas. A cada passo, o andar ganha uma potência crescente, sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs e restaurantes, e sempre mais irresistível a das mulheres sorridentes, do magnetismo da próxima esquina, de uma massa de folhas distantes ou de um nome em uma placa de rua. - O flanador como tipo o criou Paris. É estranho que não tenha sido Roma. Qual a razão? Acaso, na própria Roma, não encontra o sonho vias trilháveis? E não está a cidade repleta de templos, praças cercadas, santuários nacionais, para poder penetrar indivisa, com cada paralelepípedo, com cada tabuleta, com cada degrau, com cada pórtico, no sonho do transeunte ? Muito também se pode atribuir ao caráter nacional dos italianos. Pois não foram os forasteiros, mas eles, os próprios parisienses, que fizerem de Paris a Terra Prometida do flanador, ''a paisagem construída puramente de vida'', como a chamou certa vez Hofmannstahl. Paisagem - eis no que se transforma a cidade para o flanador. Melhor ainda, para ele, a cidade se cinge em seus pólos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e, como quarto de hotel, cinge-o''. Sétimo dia: dormi até mais tarde do que tinha me acostumado nos dias anteriores. Percebi isso assim que acordei e vi o quarto inundado de luz e as cortinas brancas parecendo telas de cinema quando o filme está prestes a começar. A arrumadeira passava o aspirador de pó no corredor e ouvi um caminhão encostando em frente ao hotel para fazer uma entrega. Saí da cama e senti o corpo todo tomado por uma inacreditável vitalidade, olhava para as veias dos meus antebraços e era como se eu visse uma espécie de calor vital fosforescente acompanhando a circulação do meu sangue dentro delas. Fui até o espelho do banheiro e percebi que meu rosto estava visivelmente rejuvenescido. 
(continua)

KALKI-MAITREYA

2 comentários:

  1. Sensacional a quantidade de informações e ensinamentos compartilhados em um único texto.
    Obrigado, obrigado, obrigado.

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  2. Gracias por admirar esto, Murilo Hildebrand de Abreu. Gracias a Ud. e ao Ministério Público Federal de Belém do Pará. Que a hora chegada traga á cada um o que é devido.

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