segunda-feira, 11 de novembro de 2013

LOBBY LADY (15)


No ônibus para o Rio de Janeiro eu pintava toda a paisagem da serra enevoada com as cores da busca pelo metal precioso grau de pureza 96 atrás do qual eu e Seu Adamastor iríamos no fundo do rio Xingú, no Pará. Via fagulhas de ouro reluzentes misturadas á areia girando hipnóticamente dentro de uma batéia de ferro esmaltado e a voz anasalada e enrouquecida do velho dizendo: ''Aqui tem muito ouro, mô fio(!!)'',enquanto apontava em tantas direções diferentes que era impossível identificar o oque ele estava querendo dizer com ''aqui''. Depois, máscara de mergulho, snorkel ligado por uma mangueira encardida á um compressor de ar que mais parecia um gigantesco nebulizador para asmáticos fazendo a draga entre as minhas mãos trepidar violentamente enquanto engolia o fundo do rio para vomitá-lo para a superfície sobre as esteiras atapetadas da balsa. ----- Sabe, não te contei, mas eu tenho um namorado(.) ----, Dayse disse ontem á noite, depois que eu saí do banho naquele apartamento enfumaçado e então silencioso ás quatro e pouca da manhã. ---- E você se sente bem com ele (?) ----, perguntei. ---- Sinto(.) quer dizer, ele me leva ao orgasmo de vez em quando, como alguns outros também(.) -----, ela disse, apagando o cigarro no cinzeiro, rente á janela do quarto, e olhando para mim de soslaio com um risinho sugestivo. ---- Que bom(.) ----, observei mansamente. Que diabos ela poderia estar querendo dizer com aquela conversa torta, logo ás quatro da manhã, era algo que eu não saberia dizer. Fui até a cozinha e enchi uma xícara de café, voltei para o quarto e disse á ela: ---- Acho que agora eu tenho que ir(.) ----, ela veio até a porta do quarto e me beijou. Depois, voltou para o meio dos lençóis na cama e vi ela desaparecendo em câmera lenta nas sombras do quarto como se abandonasse um agradável jardim de crisântenos no qual torceria sinceramente pela sua felicidade conjugal, afinal era uma garota excelente. ---- O mundo é um moinho e nós vamos ser moídos nele até o final(...) ----, ela disse, antes que encostasse a porta do quarto. Olhei para ela mais uma vez e percebi um riso fácil e maroto em sua face. Frases enigmáticas antes de eu fechar as portas dos quartos de algumas mulheres estavam se tornando uma constante na minha vida, era como ir embora com uma flecha enfiada no ouvido. ---- Não tem importância, o essencial é não perder tempo com o que não te faz feliz(.) ---, respondi, e seu sorriso ganhou um aspecto menos irônico, cobriu o rosto com o lençol e indagou: ----- O que foi, está sentindo alguma coisa(?) ----, eu devia ter retorcido minha fisionomia de algum jeito estranho e inconsciente, pensando alguma coisa estranha e inconsciente. Olhei o relógio (qual o problema?, ela perguntou ainda, me vendo ali parado na porta do quarto com o olhar aparentemente perdido no nada) e pensei na pousada da ilha e todos aqueles personagens exóticos que tinha deixado para trás. Especialmente, ''nela''. Depois, olhei para o teto e vi pássaros negros e copas de enormes árvores selvagens povoadas por macacos de pêlo branco e cara rosada, olhei para o chão e vi água corrente cristalina varrendo a superfície lodosa de grandes pedras redondas e pernas em roupas de borracha para mergulho, as minhas próprias. Acendi um cigarro amassado que tinha enfiado no bolso da calça antes de dormir. Pela janela do quarto entrava uma luz levemente avermelhada de um semáforo de trânsito na rua em frente. ---- É que estou um pouco confuso, acho que não tenho tanta certeza do que estou fazendo, ou de para onde estou indo(...) você tem razão: o mundo é um moinho e vamos ser moídos nele até o final, espero que pelo menos no final sobre um líquido pastoso e vivificante para guardar num cantil indígena e beber minha alma de volta quando voltar(.) ----, respondi, me despedindo, enquanto esfregava os olhos com as pontas dos dedos para afastar o sono. CORTA: um pássaro agitado se debatia dentro do meu coração quando entrei no hotel na parte baixa da Halfeld para pegar minha mochila de viagem. Antes de deixar o quarto, tirei o caderno verde do meu pré-roteiro da adolescência do fundo da mochila e coloquei ele num compartimento dianteiro para ir relendo-o durante a viagem para o Rio. Era o mesmo caderno verde de quinze anos atrás, acrescido de um amontoado caótico de papéis soltos e recortes de jornais e revistas enfiados entre as páginas. No ônibus, eu abri o caderno e descidi complicá-lo ainda um pouco mais fazendo uma série de anotações obscuras nos cantos das páginas, preenchidas com todas aquelas sequências de tomadas internas e externas que eu nunca havia conseguido organizar satisfatoriamente para acreditar que aquilo pudesse vir a se tornar um filme inteligível algum dia. O JACK (meu alter-ego e protagonista do filme) simplesmente continuava jogado lá, perdido entre aquelas anotações de cenas abruptamente interrompidas pelas palavras ESCURECIMENTO ou CORTA, num labirinto de situações inusitadas e diálogos confusos onde ele era Perseu e eu o Minotauro que o perseguia irracionalmente com a ponta da caneta. ''FIO DE ARIADNE'', escrevi abaixo de uma TOMADA INTERNA que se passava no aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, onde eu tinha trabalhado como carregador quando contava apenas dezessete anos. A CENA estava marcada com o título LOBBY LADY, e reproduzia um diálogo em que JACK estava no check-in da empresa aérea na qual eu trabalhava conversando com Lidiane, a LOBBY LADY. (TOMADA INTERNA) AEROPORTO DA PAMPULHA. TARDE. - JACK ergue lentamente um baú metálico do chão para colocá-lo sobre a esteira rolante de bagagens. LOBBY LADY: ---- Você também não pára de fumar(...) Um pouco de ar puro vai te fazer bem, depois(...) vamos, vamos, vamos(!) ----, o lábio dela tremia com um pouco de pressa diante da impaciência do passageiro ranzinza de terno e gravata parado em frente ao balcão. Ela me observava com a expressão formal e meio idiota de uma virgem tímida posando para uma foto três por quatro. JACK (hesitante, o rosto pingando de suor) : --- Você tem um perfeito rosto de condessa ou modelo(...) e, no entanto, fica aí me dano ordens como se fosse um capataz barbudo(.) poderia descer no aeroporto de qualquer cidade do mundo, mesmo onde não conhecesse ninguém, que com esse seu belo rosto de condessa você rapidamente se daria bem(...) ----, o passageiro olhou para mim um tanto perturbado. LOBBY LADY(a meia-voz) : --- Deixe disso, pequeno príncipe(.) com esse trabalho aqui nunca vamos conseguir nada, a não ser colocar o baú de chumbo desse gentil cavalheiro na esteira rolante o mais rápido possível(.) se é que você me entende(...) ----, o passageiro murmura qualquer coisa desagradável em voz baixa e ela lhe entrega seu cartão de embarque e lhe deseja boa viagem com a mesma alacridade com que os soldados nazistas empurravam judeus esqueléticos para dentro da câmara de gás. JACK (maldade nos olhos): --- Duas malas despachas, agora(.) uma para a esteira rolante e a outra para o portão de embarque(.) kkkkkkkk(!) ----- LOBBY LADY(:) ---- Percebeu como aquele cretino ficou olhando para os meus peitos o tempo todo(?) O Dario podia chegar logo com nossa encomenda, quase 19:30hs já(...) ----, ela disse, e enquanto fazia alguma coisa no computador do check-in, fixei a imagem do seus seios sob o uniforme da empresa. Ela queria o quê?! Quem é que não perde a linha diante daquela comissão de frente. Ela era loira e pálida, do tipo de palidez natural e parecia ser muito saudável. Seu cabelo loiro com reflexos avermelhados não era propriamente esquisito, mas estava tão puxado para trás pelas presilhas que quase perdia o efeito de aureolar sua cabeça. Suas sombrancelhas eram finas e excepcionalmente retas e mais escuras que o cabelo, quase castanhas. A única pintura que parecia usar no rosto, ao contrário das lobby ladys das outras empresas aéreas enfileiradas ao nosso lado, era um pouco de batom nos lábios, de tom alaranjado. Seus olhos eram muito grandes, cor de azul-cobalto, com íris grandes e expressão sempre vaga e agradável, sobretudo quando parava diante do computador do check-in. JACK(:) --- Você vai no encontro do pessoal do trabalho hoje á noite(?) eles combinaram de jantar em uma daquelas churrascarias da avenida Isabel Bueno(...) ----, perguntei á ela e, antes de responder que sim, acomodou seu belo e farto traseiro no banco diante do computador do check-in e me disse logo em seguida: ---- Você também vai(.) Vamos juntos, aliás(.) O Bordenave vai ficar tão puto comigo quando te ver saindo de dentro do meu carro que vai acabar demitindo nós dois(.) kkkkkkkk(!) ---- (TOMADA EXTERNA).RUA DA CHURRASCARIA. NOITE - Uma sombra negra de automóvel aparece por trás de uma árvore. É Bordenave, o supervisor geral da empresa aérea onde trabalhamos no aeroporto da Pampulha. Ouve-se o bater da porta do carro, ao fechar-se. Bordenave encosta-se no tronco da árvore, levantando a gola do casaco. Chegou cedo demais ao encontro do pessoal do trabalho, pois é o único que não cumpre rigorosamente os horários do expediente e todo mundo sabe disso. É um canalha, viciado em dinheiro, autoridade e prostitutas. Trata todas as funcionárias como putas e o resto do pessoal como esterco de porco. Acende um cigarro e dá algumas tragadas. Seu rosto, agora, exprime uma grave sensação de mal estar. Estomacal, possivelmente. Olha, por um instante, o flanelinha do outro lado da rua. Cospe no chão e esboça uma careta de asco. Odeia gente pobre e mal vestida. ESCURECIMENTO. O ônibus agora sacudia muito e minha última tentativa de anotar algo no caderno verde do roteiro se desfez num comprido risco que atravessou a página inteira do caderno dobrado no meu colo. Segundo ou terceiro pedágio da estrada, antes ou depois do Brasão Bar e Restaurante, no posto de gasolina em frente aquelas rochas altíssimas cobertas por vegetação nativa da Mata Atlântica, o hot-spot mais ameaçado do planeta. Neblina. Pobre floresta úmida! Vontade de mijar, fumar e tomar uma xícara de café. No vidro embaçado da janela do ônibus escrevo com a ponta do dedo indicador, e assino embaixo: ''JACK''. Volto para o caderno verde do roteiro dobrado sobre meu colo: (TOMADA EXTERNA). RUA DA BAHIA. DOMINGO. ENTARDECER. O tempo pareceu de repente paralisar-se dentro de JACK, no meio da rua. Aconselhei meu alter-ego a não sair do seu quarto de pensão na avenida Afonso Pena até ir para o aeroporto da Pampulha no dia seguinte, pegar no batente. Causava-lhe estranheza encontrar pelas ruas, bares e cafeterias da Grande BH tanta gente despreocupada e sem problemas existenciais insolúveis como os dele. Dentro do quartinho agora JACK lia obras de artistas revolucionários e lhe parecia que a qualquer momento o mundo iria explodir. Logo depois, saía do quarto da pensão novamente para passear sozinho pela rua fumando um cigarro e via que o mundo continuava seguindo um curso inalteravelmente pacífico e monótono. E novamente, sentia-se um pouco estranho ou estrangeiro no mundo que via a sua volta, como se houvesse atingido um estado de consciência iluminado e de repente não conseguisse mais compreender o sentido comum da realidade. Faltava-lhe cabelos brancos o suficiente para entender que naquelas ruas da Grande BH ou de qualquer outra cidade do mundo, naquelas praças, bares, cafeterias e até mesmo nas salas com ar condicionado dos grandes arranha-céus espelhados e outros prédios comerciais de menor expressão, haviam milhares de pessoas que pensavam e sentiam exatamente as mesmas coisas que ele. CORTA. (TOMADA INTERIOR). AEROPORTO DA PAMPULHA. JACK (ligeiramente embaraçado, diante de Lidiane) : Leu o conto que madei para o seu e-mail(?) ---- LOBBY LADY(:) ---- Espera aí, só um minuto(.) ----, ela disse, e digitou alguma coisa apressadamente no teclado do computador do check-in. Continuou: ---- Vou ler ainda, gatinho(...) mas não fique sofrendo por causa disso, não faço questão de que você seja um gênio da literatura(...) se você for bom de cama já é mais do que suficiente(.) ----, silêncio, em seguida, muda de assunto: ---- Me diga uma coisa, o que você pretende fazer depois que acabar o segundo grau(?) ----, não era o que meu ego de jovem escritor queria ouvir, a não ser que ela estivesse falando sério sobre ir para cama comigo(:) ---- Pretendo queimar todos os meus livros de química, física e matemática e comprar um exemplar do Manual de Explosões do Exército Brasileiro(.) ----,ela riu deliciosamente e perguntou de novo se o Dario (sub-supervisor da empresa e traficante) já tinha chegado com as vinte e cinco gramas de maconha que eu tinha rachado com ela no dia anterior. JACK(:) --- Já tá na mão, ele está me esperando lá na pista para fumar um(...) quer ir lá, agora(?) ----, perguntei á Lidiane. LOBBY LADY: ---- Não, pode ir primeiro(.) quando voce voltar eu vou(.). ---- JACK: ---- Porra, então lê o meu conto aí, agora, enquanto eu estiver lá na pista(...) o movimento mais frenético no aeroporto só vai começar daqui á uma hora, com os vôos das 20:00hs. ----LOBBY LADY: --- Ok, vou ler(.) é sobre o quê(?) ----, indagou, levantando as sombrancelhas no centro da testa, tentando imitar uma careta de crítica literária impiedosa. JACK(:) ---- É sobre o esquartejamento de um garrote sob um sol de cinquenta graus, numa fazenda da Bahia(.) e um homem com um machado ensanguentado na mão recordando cenas de sexo no puteiro que ele foi na noite anterior(.) ---- LOBBY LADY(:) ---- KKKKKKKK(!) Agora eu fiquei interessada(...) mandou pro meu e-mail (?) ----, perguntou, rindo. ----JACK (:) ----Mandei(.) enquanto você lê, eu vou lá na pista fumar,ok(?) ----, eu disse, deixando entusiasmadamente o balcão da empresa aérea pela porta dos fundos, que dava para toda a amplidão da pista com dezenas de aviões estacionados ou manobrando. Depois das sete da noite, era só passar pelos funcionários da INFRAERO em volta dos aviões fazendo inspeções e controlando o fluxo de decolagens e aterrisagens na cabine em frente á sala vip de passageiros preferenciais e entrar no gramado do canteiro da pista que ninguém te via no meio da escuridão. O Dario já estava lá, andando á esmo rente á luzinhas azuis enterradas no asfalto, enquanto um Focker 100 da TAM passava zunindo para decolar do outro lado da pista. JACK(:) ---- Bom demais fumar um aqui, quando eu conto para os outros ninguém acredita(.) passa a bola aí(!) ---, eu disse, Dario se virou para mim e abriu um sorriso acefalado, era um sujeito muito amistoso de mais de quarenta anos, que já trabalhava ali naquele aeroporto á uns quinze anos. Tinha o domínio total da área e do pessoal, vendia a ganja para metade dos funcionários do aerporto. Digamos que se aquele aeroporto fosse uma cidade, ele seria eleito prefeito com noventa por cento dos votos, no primeiro turno. ESCURECIMENTO. (TOMADA INTERIOR). CHURRASCARIA. NOITE. Quando JACK entrou na churrascaria encontrou Bordenave bebendo sozinho na mesa que tinham reservado para o jantar com o pessoal do trabalho. BORDENAVE(:) ---- Senta aí, garoto(!) Vai beber o quê(?) ----JACK(:) ----Cerveja(.) ----- BORDENAVE(:) ---- Opa(!) ----, ele disse, assim que viu Lidiane entrar na churrascaria logo depois de mim e vir sentar-se ao meu lado. BORDENAVE(:) --- Vieram juntos(?) ----, perguntou, com o sentimento muito típico de certos homens que vêm nas mulheres que não conseguem ter um tipo de inimigo moral ao qual dificilmente perdoam uma decortesia ou humilhação. LOBBY LADY(:)-----Viemos direto do meu apartamento pra cá(.) ----, ela respondeu, com o indisfarsável olhar de quem odiava o homem á sua frente, por sua insistência em assediá-la durante o expediente com as promessas de promoção e aumento salarial mais sujas e mesquinhas, o que lhe permitia odiá-lo sem nenhuma falta de escrúpulos. Para Bordenave, aquilo foi como se arrancassem seu coração sombrio e destestável de dentro do peito e o esmagassem contra o chão com uma pedra. A primeira impressão de JACK foi a de que ele e Lidiane estariam automaticamente demitidos no dia seguinte. Mas depois ela confessou á JACK que isso não aconteceria, porque ela tinha provas do assédio que sofria por parte de Bordenave e ele sabia disso. LOBBY LADY(se dirigindo á Bordenave, implacavelmente)(:)---- Sabia que o garoto aqui é escritor(?) ----, ela disse. BORDENAVE(:) ---É mesmo, não diga, oh(?) ----, perguntou ele, fazendo cara de deboche. ----JACK(:) --- Nas horas vagas, quando estou com a corda dada(...). BORDENAVE(:)----Cuidado para não dar corda demais nele, porque (PAUSA...) literatura não veste camisa de ninguém(.) é mais negócio para você continuar carregando malas a vida inteira, garoto(.) ----, não respondi, apenas puxei Lidiane pela cintura e beijei ela com tanta vontade e fui tão inesperada e ardentemente correspondido no ato que Bordenave se levantou da mesa estremecido de ódio e disse que iria até a entrada da churrascaria fumar um cigarro e dar um telefonema. ESCURECIMENTO. CORTA. - (TOMADA INTERIOR). CHURRASCARIA. NOITE. - Lidiane deixou minha boca toda borrada de batom alaranjado e olhava para mim rindo ironicamente enquanto terminava sua taça de vinho e a colocava sobre a mesa para o garçom enche-la de novo. Depois, tirou um lenço da bolsa e passou ele em volta da minha boca: LOBBY LADY(:) ---- Nunca tinha beijado um escritor na vida, ainda mais um escritor tão jovem e sanguinolento quanto você(.) Meu Deus, aquele conto que você me mostrou hoje de tarde é interessante, mas parece mais um açougue de letras encharcadas de sangue(.) percebi que não tinha título(...) poderia colocar o título AÇOUGUE DE LETRAS(.) KKKKKKKK(!) acho que nem vou comer carne hoje á noite, por causa do seu conto(.) -----, subitamente, ela parou de rir e arrotou. Foi um belo e definido arroto, executado sem espalhafato e com tranquila naturalidade. A churrascaria estava decorada com tapetes de palha e móveis de junco, e nem metade das mesas estavam ocupadas, talvez porque ainda era muito cedo. JACK(:) ---- É algo que levarei em conta, nos meus próximos contos(.) obrigado por ter lido(.) ---, eu disse. LOBBY LADY(:) --- O quê leverá em conta(?) O meu arroto(?) kkkkkkkk(!) ------, bem, não havia necessidade de responder áquilo, o vinho tinha deixado Lidiane alta muito rapidamente e Bordenave já estava ausente da mesa há quase meia hora. LOBBY LADY(:) ---- Será que ele não vai voltar(?) tomara que não, você foi perfeito, superou todas as minhas expectativas, nem precisei tomar a iniciativa(!)-----, ela girou a taça de vinho entre os dedos finos de unhas vermelhas e sorriu suavemente da obscuridade de nosso comportamento, diria até que da obscuridade da vida humana em geral. JACK(:) ---- Você já foi pra cama com o Bordenave(?), perguntei, inopinadamente. LOBBY LADY(:) ---- Claro que não, que pegunta(!) Não estou á venda, gatinho(!) ----, ela disse e me olhou com um inesperado brilho nos olhos, olhos de mulher mais velha diante de um parceiro sexual mais novo. Moça encantadora, mas dura como uma mesa de carvalho, implacável como a justiça do Apocalipse. JACK(:) ---- Não foi isso que eu quis dizer, perdão(.) será que a gente pode se beijar de novo(?)----, apesar das insinuações dela sobre nós diante de Bordenave, eu nunca tinha nem mesmo tocado nela, e apesar de todo o jogo de cena para provocar a ira de Bordenave, aquele beijo tinha sido muito bom. LOBBY LADY(:) ---- Talvez, não sei(...) espero que você mereça seu pagamento, no final da noite(.) ----, ela disse, e imediatamente respondi: ----É só o dizer o que preciso fazer, meu amor(!) ao contrário de você, eu estou totalmente á venda: alma, corpo, contos, caderno de roteiro, personagens, cenários, tudo(!) ----, eu disse, afobadamente  ----- E os viajantes precisam entregar as encomendas o mais rápido possível(.) ----- JACK(:) --- Nunca um beijo numa boca alaranjada foi tão fartamente comercializado(...) não seja por isso, então(.) ----, ela esticou o queixo na minha direção e os músculos de seu pescoço retezaram-se. Que beijo delicioso ela produzia com aquela boca de batom alaranjado! Talvez, por eu ter apenas dezessete anos, aquilo adquiriu uma dimensão desproporcionalmente importante no meu caderno verde de roteiro, algum tempo depois. CORTA. (TOMADA INTERIOR). APARTAMENTO DA LOBBY LADY. NOITE. -Olhei Lidiane pelo espelho enquanto lavava as mãos na pia do banheiro do apartamento dela e via-a sentada de calcinha e sutiã na beirada da cama. Os longos cabelos loiros, agora soltos, rolavam cascateantes até os delgados ombros brancos que emergiam das alças do sutiã. LOBBY LADY(:) --- Você me proporcionou um prazer sem limites hoje á noite(.) todo o pessoal do trabalho ficou se perguntando onde tinha ido parar o Bordenave, todo mundo sabe que ele é doido pra me comer, há tempos(.) amanhã, no aeroporto, quero ver com que cara ele vai aparecer, depois de ter sido passado pra trás por um pirralho de dezessete anos, se é que vai aparecer novamente naquele aeroporto, aquele porco(!) ----, desconsiderei o fato de ter sido chamado de pirralho por ela, porque afinal de contas era isso mesmo, e saí do banheiro olhando-a de frente, babando de tanto tesão. Sua voz fazia ressoarem carrilhões de impulsos lúbricos no meu cérebro e corpo, e os contornos do seu alvo corpo deitada de bruços na cama, depois que ela acabou de falar, me perturbou definitivamente. Desde que tinha chegado em Belo Horizonte, minha vida sexual tinha ficado miseravelmente limitada á uma vizinha de quarto estrábica que estudava para o vestibular de medicina o dia inteiro até ficar com a cara verde e uma caixa de padaria negra viciada em sexo que um dia me chamou para ir a um show do Bezerra da Silva em Santa Luzia. Mas aquela lobby lady ali, esticada de comprido na cama de lençóis perfumados, vinha de fato compensar minha Cruz com a Glória da Ressurreição nos Jardins da Terra Prometida. Nua, ela tinha tudo o que se pode definir como classe e poder, e me fazia pensar nas coisas mais agradáveis e caras que uma transação milionária bem sucedida pode proporcionar a um homem de negócios bom no que faz: fichas azuis de mil dólares espalhadas sobre uma mesa verde de jogo, ouro vinte quatro quilates em estatuetas de marfim indiano, diamantes polidos á perfeição em coroas da realeza britânica, grandes orquídeas brancas em salas de acupuntura de hotéis seis estrelas, partituras de Chopin ou Haydn diante de crianças brancas de olhos azuis, um sol preguiçoso numa manhã de verão nas praias da Riviera Francesa, etc. Seus olhos azul-cobalto, nos quais quase se podia mergulhar, as maçãs do rosto altas e aristocráticas, a boca de batom alaranjado, a anca potente e generosa, me aguardavam na cama em uma promissora suspensão erótica do tempo. LOBBY LADY(:) --- Mas não fique pensando que eu quiz tirar algum proveito pessoal do que fiz o Bordenave sentir hoje(.) ----, ela tinha se virado para mim da cama e seus olhos estavam agora fixos nos meus, enquanto a fumaça azulada do meu cigarro se enroscava em torno do meu rosto. JACK(:) ---- De repente, você ficou com uma cara engraçada, olhando pra mim(.) no que é que você está pensando(?) veja bem, minha flor, eu estou pouco me lixando para o Bordenave, o aeroporto, essa cidade onde vim parar sabe-se lá porque, a melhor coisa que tudo isso me trouxe até agora foi você, exatamente aí onde e como você está, á minha espera(...) já te contei como vim parar em Belo Horizonte(?) Abandonei o colégio no segundo ano e vim de Salvador para Belo Horizonte usando como desculpa para os meus pais a festa de aniversário de um primo meu, e no dia seguinte, de ressaca, lendo o jornal no apartamento dele, vi o anúncio da vaga de carregador da nossa empresa aérea nos classificados, e decidi levar meu currículo até o aeroporto, que incluía apenas um estágio de office-boy na Universidade Federal da Bahia, um curso de roteiro na Casa de Cultura Alemã de Salvador e o segundo grau incompleto(.) no dia seguinte, eles me telefonaram de volta e eu aluguei um quarto de pensão na avenida Afonso Pena, onde uma negra ninfomaníaca vem me visitar de vez em quando e uma vizinha de quarto estrábica ás vezes bate na minha porta para pedir um pouco de açúcar e acaba transando comigo debaixo do chuveiro(.) nos dias de folga, escrevo contos sob o efeito da cannabis e saio para andar na rua á esmo, em busca da iluminação espiritual(.) ----, ela ouviu a narrativa da minha trajetória com surpresa e retribuiu minha confissão de humildade com um sorriso solidário e convidativo, da cama. Seu rosto e sua boca alaranjada eram, naquele momento, a realidade de um sonho que eu vinha alimentando desde o primeiro dia de trabalho junto com ela no aeroporto da Pampulha. Fui até ela e beijei-a, sentia que ela tinha gostado muito de mim também desde o primeiro dia, mas o que antes me parecia uma simples, vaga e espontânea simpatia pela minha pessoa, naquela noite estava sendo elevado ao nível de uma meteórica promoção no quadro de sua hierarquia interna. Havia na minha boca, enquanto eu a beijava, uma fome que ameaçava sugar toda a energia sexual dela. Sentir o seu corpo vibrando extasiado debaixo do meu foi como afundar-me dentro de um balde de mel. Se já tinha havido na minha vida até aquele momento uma mulher feita sob medida para uma noite de prazer sexual sem limites, aquela mulher era ela. CORTA.(TOMADA EXTERNA) -  ESCURECIMENTO. Assim que o ônibus estacionou na rodoviária do Rio de Janeiro, eu fechei o caderno verde do roteiro e meu celular tocou. Era Seu Adamastor: ---- Fala, mô fio(?) Tá onde(?) ----, perguntou. ----Á caminho, embarco ás 18:00hs, aqui do Rio(.) chego em Belém sei lá que horas, mas te ligo assim que pisar na cidade(.) acho que vou preferir ficar em algum hotel do centro da cidade(.) e o garimpo do Xingú (?) ----, talvez ele não tenha gostado da idéia de que eu preferisse me instalar num hotel do que ser hospedado na casa da sua família. O velho era meio sensível ao meu comportamento anti-social, desde que passamos por todo aquele inferno juntos, mas respeitava minhas decisões em silêncio. ---- Cê que sabe, mô fio(.)nossa casa tá sempre aberta a ti(.) o garimpo do Xingú continua comendo solto, só falta nóis(.) já mandei até abrir uma conta no meu nome num armazém da currutela de lá(...) tá grande a coisa por lá, só de venda e armazém, tem uns oito, até cerveja gelada tem pra vender, um luxo(.) sete latinhas tá valendo uma grama de ouro(.) o povo busca em Altamira, de barco, e vende no garimpo, dá umas quatro horas de viagem(.) -----, do jeito que o velho falou aquilo, parecia até que estávamos indo para uma have no meio da floresta, mas eu sabia que junto com uma confusão daquele tipo vinha junto um monte de outras coisas, de prostituição á pasta base de cocaína, e aquilo não me agradava nem um pouco, porque não existe nada mais eficiente que álcool e cocaína misturado com ganância por metal precioso para transformar qualquer aglomeração de garimpeiros num barril de pólvora pronto para explodir a qualquer momento. ----E vem cá, Seu Adamastor(:) a polícia florestal não vai lá não(?) é tão longe assim(?) duvido muito que alguma balsa de lá tenha autorização legal para trabalhar naquela altura do rio(.) andei olhando uns mapas da região na internet e esse lugar para onde a gente vai fica colado numa reserva indígena(.) lembra de 2004, Seu Adamastor(?) não quero passar por aquilo de novo(!) não mesmo, entende(?) ----, eu disse, e o velho sabia que eu estava me referindo á nossa temporada na Reserva Roosevelt, em 2004, perto do município de Espigão do Oeste, em Rondônia, onde ocorreu um massacre de 29 garimpeiros por índios da etnia cinta-larga, devido à disputa por jazidas de diamantes. ------ Sei lá, mô fio(!) Vira essa boca pra lá, a Reserva Roosevelt é coisa do passado(!) o Pará é muito grande, essa currutela no rio Xingú é no fim do mundo, ninguém tá nem aí pra isso não(!) a polícia florestal é que se fôda, O BRASIL É NOSSO(!) 


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