segunda-feira, 4 de novembro de 2013

NIGREDO (12)


O trabalho de ''enegrecimento'' é considerado a mais difícil das operações iniciáticas, há quem diga inclusive que as outras fases do trabalho sobre si mesmo são como brincadeiras de criança perto dela. Através do NIGREDO, o homem se aparta temporariamente do mundo das aparências e mergulha de cabeça na essência cósmica do seu abismo interior, no poder do espírito que ele pretende despertar dentro de si mesmo e aprender a dominar. O trabalho de enegrecimento é assim como uma morte para o mundo ou um parto invertido, dentro do lado oculto da realidade. O indivíduo se libera daquilo que o impede de alcançar o estado de graça (ilusões, medos e preocupações obsessivas com a defesa social da auto-imagem) através de uma prolongada agonia na qual ele é submetido á uma profunda impressão de angústia, que alguns alquimistas medievais chamavam de VIA MERCURIAL. Desembarquei na rodoviária de Salvador ás 17:30h, pensando que eu deveria parar de fumar imediatamente e iniciar uma operação energética de enegrecimento sintetizada no espaço de alguns poucos dias, até partir para Belém. Obviamente, eu já era um perfeito iniciado á essa altura e o trabalho de enegrecimento que eu pretendia fazer era só uma reprodução em miniatura da NIGREDO pela qual eu tinha passado (ou sobrevivido) há anos. Decidi pegar um táxi e ir para o aeroporto Luís Eduardo Magalhães, lá escolheria uma cidade adequada para fazer o 'serviço'. ''Quanto mais fantasmagórica, melhor(...)'', pensei comigo mesmo... e logo me vieram á ´mente Ilhéus e um quarto de hotel com porta de vidro roliça numa varanda de frente para o mar, onde eu tinha ido uma vez fazer exatamente a mesma coisa: enegrecimento. Mas também a pacata Juiz de Fora, em Minas Gerais, onde eu havia residido durante um bom tempo e sido casado (ou juntado) com duas garotas muito importantes na minha vida, mas que agora não abrigava mais nenhum vestígio desta parte da minha vida. A última vez que visitei a cidade percorri os endereços em que tinha morado com essas duas garotas e não senti absolutamente nada, a cidade estava agora emocionalmente deserta para mim e era um palco perfeito para uma rápida temporada de enegrecimento. Acendi um cigarro dentro do táxi, um vento quente e úmido descia pelas dunas de areia branca no caminho para o aeroporto, despenteando o cabelo de algumas mulheres paradas nos pontos de ônibus e conferindo um ar de cansaço e nervos torcidos á maioria das pessoas andando nas ruas. Salvador é uma favela gigante e no mar de barracos que cerca os mínimos focos de bairros elegantes da cidade, á partir das 18:00h, as lâmpadas acesas vão transformando as janelas abertas em quadrados alaranjados onde tudo pode acontecer de uma hora para outro. Eu pensava no MERCÚRIO, na VIA MERCURIAL dos alquimistas medievais. Para um garimpeiro como eu, o que importa são outras propriedades do mercúrio , mas há sim alguma analogia possível entre o mercúrio utilizado no garimpo de ouro e o trabalho de enegrecimento alquímico. ASSIM COMO É EM CIMA, É EMBAIXO (Hermes Trismegisto). Primeiro, a capacidade de formar amálgamas, o que é fundamental no garimpo, onde os minúsculos grãos de ouro precisam ser separados dos sedimentos dragados do fundo do rio. Após esse cascalho passar um período em esteiras, para que os metais se assentem e sejam separados dos sedimentos mais leves, o material concentrado é jogado em betoneiras onde é misturado á água e ao mercúrio. Assim também funciona o trabalho de rastreamento energético na fase de enegrecimento alquímico, que prepara o mercúrio, isto é, a matéria sutil do mundo, dentro da qual uma pequena morte da personalidade é experimentada para que o mercúrio reúna as fagulhas espirituais do indivíduo, formando um amálgama psico-espiritual mais compacto e limpo dos sedimentos inferiores da personalidade , tais como emoções negativas e diálogos mentais repetitivos. As águas mercuriais são, por assim dizer, congeladas dentro da pessoa. Nos textos alquímicos medievais isso também se chama SEPARAÇÃO. O homem aparta a si mesmo de sua personalidade fragmentada e condicionada pelos hábitos inferiores da vida mundana e extrái sua força vital das atrações do ensoño e dos estados alterados de consciência alcançados através da abstinência sexual e da meditação (e ocasionalmente, das plantas de poder) e o prolonga por dias e dias. No curso de uma iniciação regular isso pode se tornar especialmente doloroso porque automaticamente o mundo habitual da pessoa (sua estrutura de relações inter-pessoais, principalmente) começa a desmoranar como um castelo de areia, mas para um iniciado que já realizou essa parte do trabalho iniciático com sucesso e domina todo o mecanismo de rastreamento energético, é apenas mais uma experiência de recolher-se dentro de si mesmo novamente como uma água parada. Ele usa o mercúrio como veículo para retornar a um estado de potência energética ampliada: é o regresso á matéria-prima espiritual ou fonte de energia psíquica. Em garimpos onde é usado maquinário mais pesado, como balsas, os sedimentos inferiores são dragados para dentro de misturadores, chamados pelos garimpeiros de ''cobra-fumando'', onde também se utiliza o mercúrio para evitar que as partículas de ouro sejam desperdiçadas ou perdidas. E o iniciado faz também a mesmíssima coisa com as substâncias espiritualmente superiores que ele maneja dentro de sua percepção do mundo, dissolvendo a TERRA ENDURECIDA na unidade das ÁGUAS PRIMORDIAIS. Através da ''discretio intelectualis'' (discrição intelectual) ele distingue a presença de forças sutis e de arquétipos em meio ao universo. Ele descobre a NATURAE DISCRETAE (a natureza última das coisas) , aquele ''fundamento interior latente'' do qual falam os alquimistas medievais e que poderíamos chamar de QUANTIDADE da alma do mundo que cada coisa toma para si mesma. Consequentemente ele passa a perceber a natureza e o seu próprio corpo como um intercâmbio cósmico sobre o qual já não se projeta a ilusão ou sombra da personalidade, que é o que nubla a visão da realidade espiritual dentro da maioria das pessoas. Esse descobrimento é como uma dissolução liberadora ou matrimônio com a essência energética do universo. No diagrama dos centros sutis de Gichtel, Saturno tem que unir-se á Lua e Júpiter á Mercúrio. Saturno é como o ponto materialista, a solidez do espírito de peso, um símbolo de uma certa forma inferior de ver o mundo, aquela visão particular da personalidade que fixa as aparências do mundo em seu estado de opacidade e cegueira espiritual, mantendo o indivíduo preso á ilusão de estar desperto, quando em realidade ele é apenas um sonâmbulo possuído por um sonho materialista de baixa qualidade. Gichtel clarifica esta perspectiva situando o centro saturnino no cérebro físico e atribuindo á ele, na expressão de Macrobio, a RATIOCINATIO (racionalização). Por isso Saturno tem que ser ''dissolvido'' no centro lunar, situado na região sacra representada pela PHUSIKON, a totalidade das energias vitais. E Júpiter é a PRAKTIKON, a vontade de potência, que deve ser ''dissolvida'' em Mercúrio, a ''imaginação'' que vê a natureza como o cenário de um sonho, mais precisamente como o cenário do SONHO DE DEUS. É como se a alma fosse agora ''coagulada'' na mente humana --- quando o mental segue sendo reabsorvido na potência da alma. Acontece que esse regresso á potencialidade da alma humana se inicia como um regresso á obscuridade ou uma descida ao inferno, pois o caos da matéria permanece obscuro enquanto seu conteúdo não for aberto, de modo que durante a fase de enegrecimento ela floresce espontaneamente na flor venenosa da mundanidade, e o iniciado deve reunir ao longo da caminhada de abertura da percepção todas suas forças para rechaçar o encanto da flor de veneno e acolher em seu corpo o fogo de Deus. No garimpo também o mercúrio se liquifica e evapora em temperaturas menores que a do ouro. Quando realizado em ambiente aberto, essa parte do processo libera o mercúrio em forma de gás venenoso na atmosfera. Como é em cima, é embaixo. Por fim, o iniciado descende ás profundezas da matéria vil dos desejos para converte-la em força espiritual regeneradora. Assim como no impulso que dá nascimento aos metais preciosos na matriz da Terra e ao feto no ventre da Mãe, no iniciado opera constantemente uma ânsia pela Imortalidade do Corpo de Energia, o prêmio de todo trabalho iniciático realizado com sucesso. A partir de então o iniciado se recusa deliberadamente´a afastar-se de seu mistério recém-descoberto, ele já não está nem aí para o mundo e nem poderia estar: mergulha dentro das águas primordiais, toma para si mesmo como seu bem mais precioso na vida essa ânsia de imortalidade que o levou a ter uma visão divina e a ampliar sua força vital infinitamente e une por todos os lados o azufre ao mercúrio, o que por sua vez lhe obriga a desejar a Deus ininterruptamente e em doses cada vez maiores, pois ele sabe que se deter no meio do caminho é suicídio e que com isso só conseguirá atrair sobre si a ira de Deus. VISITA INTERIORA TERRAE E RECTIFICANDO OCCULTUM LAPIDEM (visita o interior da terra e retificando encontrarás a pedra filosofal). Ao descreverem a ''descida ao inferno'' resumida na sigla VITRIOL, os alquimistas medievais preservaram símbolos muito antigos: falam, por exemplo, de uma viagem noturna sob o mar no qual o herói é engolido por um monstro, mas logo em seguida o ventre do Leviatã que o engoliu se torna uma matriz de regeneração. O MAR mesclado com a NOITE é a MATÉRIA OBSCURA, a umidade do mercúrio. O monstro é OUROBOROS, o guardião da energia vital, análogo á KUNDALINI da ioga tântrica. E finalmente o calor que invade o corpo do herói no ventre do monstro é o fogo espiritual que inunda seu coração com o fervor da renovação energética, graças ao qual ele renascerá infinitamente fortalecido e rejuvenescido como um adolescente. Então já poderá retornar ao mundo para combater em nome do Espírito Santo, onde certamente a inveja e o ódio de seus inimigos lhe estarão esperando. E agora, enquanto eu tomava um café na cafeteria do aeroporto Luís Eduardo Magalhães, me decidia vagamente por Juiz de Fora, Minas Gerais, para fazer o trabalho de rastreamento energético até um nível em que pudesse voltar a confiar nas minhas próprias forças e partir para o rio Xingú em condições físicas e psicológicas adequadas para sobreviver a alguns meses de trabalho duro á bordo da balsa de Seu Adamastor. Pensei que deveria parar de fumar imediatamente, mas decidi fumar um último cigarro na entrada do aeroporto. Enquanto fumava aquele último cigarro, inevitavelmente me lembrei (rindo muito por dentro) de um trecho do brilhante romance do escritor e dramaturgo italiano Ítalo Svevo, A Consciência de Zeno: ''Na folha de rosto de um dicionário encontro um registro meu feito com bela caligrafia e alguns ornatos (Hoje, 2 de fevereiro de 1886, deixo de estudar leis para me dedicar á química. Último cigarro!) - Tratava-se de um 'último cigarro' muito importante. Recordo todas as esperanças que o acompanharam. Havia perdido o gosto pelo Direito Canônico, que me parecia distanciado do mundo, e corri para a ciência, que é a própria base da vida, se bem que reduzida á uma retorta. - Aquele último cigarro representava o próprio anseio de atividade (também manual) e de meditação sóbria, serena e sólida. - Para fugir das cadeias de combinação de carbono, em que não acreditava mais, resolvi voltar ao direito. Muito pior! Foi um erro também registrado com um último cigarro, cuja data encontro registrada numa página de livro. Também este 'último cigarro' foi muito importante. Eu me resignava a voltar ás intrincâncias do direito com os melhores propósitos, abandonando para sempre as cadeias de carbono. Convenci-me da falta de pendor para a química até mesmo pela minha inabilidade manual. Como poderia tê-la, se continuava a fumar como um turco? - Agora que estou a analisar-me, assalta-me uma dúvida: não me teria apegado tanto ao cigarro para atribuir-lhe a culpa da minha incapacidade? Será que, deixando de fumar, eu conseguiria de fato chegar ao homem forte e seguro que eu me supunha? Talvez tenha sido essa mesma dúvida que me escravizou ao vício, já que é bastante cômodo podermos acreditar em nossa grandeza latente. Avento esta hipótese para explicar minha fraqueza juvenil , embora sem convicção definida. Agora que sou velho e que ninguém exige nada de mim, passo com frequência dos cigarros aos bons propósitos e destes novamente aos cigarros. Que significam hoje tais propósitos?''. Fui até o check-in da empresa aérea (que não direi o nome, para não ser processado nos próximos capítulos) onde trabalhei como carregador quando tinha dezessete anos, no aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, e comprei uma passagem para o Rio de Janeiro. De lá seguiria de ônibus para Juiz de Fora, já na condição de ex-fumante. Antes de embarcar, porém, voltei á entrada do aeroporto e fumei mais um ''último cigarro''. Esse também foi muito importante para mim, rs..
(continua)
KALKI-MAITREYA

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