sábado, 2 de novembro de 2013

Raymond Chandler e Philip Marlowe (um xamã e seu alter-ego)

 
“Quando as ideias falham, as palavras são muito úteis”, disse Goethe. Raymond Chandler só “falhou” por ter sido um escritor de romances estritamente policiais. Mas era um escritor brilhante, ponto final. Todos os seus romances (e até alguns contos) foram adaptados ao cinema e à TV. Foi ainda argumentista, tendo trabalhado com Hitchcock. Criou Philip Marlowe, o famoso detetive, expoente máximo do film noir.

 
A dois de fevereiro passado, Santa Monica, na Califórnia, celebrou Raymond Chandler, lugar que, nos seus livros, se chama “Bay City”. Chandler viveu em Santa Monica com a sua mulher, Cissy Pascal, em 1940, quando trabalhava em The Lady in the Lake (A Dama do Lago). O casal viveu também em Redondo Beach e La Jolla, pelo que muita da sua ficção se desenrola nestes locais. Não há aqui nenhum mistério, até porque, no universo de Chandler, o mistério é o da alma humana e não o de “o culpado é o mordomo”.
 

Cissy era uma pianista clássica e antiga modelo, quase 20 anos mais velha do que Chandler. Foi, no entanto, a sua musa, já que Raymond não escreveu nada antes de a conhecer e pouco escreveu depois de ela ter falecido. Viria ele próprio a morrer, quatro anos depois, em 1959, tendo recaído no alcoolismo.

 

Talvez devido às imagens que evoca, num estilo quase visual, todos os livros de Chandler foram aproveitados por inúmeros realizadores. Data de 1942 a primeira adaptação, The Falcon Takes Over, baseado em Farewell, My Lovely (Adeus, minha adorada). No mesmo ano, foi lançado Time to Kill, baseado em The High Window (A Janela Alta). Em 1946, The Big Sleep (À Beira do abismo) foi filmado por Howard Hawks, reunindo Humphrey Bogart e Lauren Bacall, uma transposição lendária para o grande ecrã que agradou bastante a Chandler. Em 1951, o escritor assinou o argumento de Strangers on a Train (O Desconhecido do Norte Expresso), realizado por Alfred Hitchcock e baseado num romance de Patricia Highsmith. Em 1969, The Little Sister (A irmãzinha) foi a base do filme Marlowe e, em 1973, Robert Altman adaptou The Long Goodbye (O Longo Adeus). Dois anos depois, Marlowe foi interpretado por Robert Mitchum. Desta vez, o título manteve-se fiel ao original: Farewell, My Lovely.
 

Em 1983, surgiu uma série de televisão e, em 2007, foi produzido um episódio-piloto de uma nova série, Marlowe, assinada por Rob Bowman. A Variety divulgou que Clive Owen seria a escolha para o papel do detetive, numa adaptação da novela «Trouble is my Business» («Os Sarilhos são a Minha Profissão»), com argumento de Frank Miller (Sin City), grande admirador de Chandler. O projeto foi muito divulgado, mas não se concretizou.

 

De vice-presidente a escritor
 

Nascido no Nebraska, em 1888, filho de pais irlandeses, Raymond Thornton Chandler cresceu em Chicago, ingressando na escola londrina de Dulwich em 1900. Depois de ser militar, contabilista e funcionário público, tornou-se executivo de uma das maiores companhias petrolíferas dos Estados Unidos, a Dabney Oil. Foi promovido a vice-presidente, mas não deixou de se sentir desencantado com algumas facetas desse mundo. “Claro que os advogados protegem sempre as costas uns dos outros. Sabem que, se não se mantiverem unidos, são enforcados em separado.” Desdenhava a corrupção e considerava certas empresas um perigo público devido aos esquemas fraudulentos que engendravam.
 

No final dos anos 20, Chandler podia considerar-se um homem feliz. Casara com Cissy Pascal, tinha um Chrysler novo e um salário de três mil dólares por mês. Porém, sofria de um grave problema de alcoolismo que lhe provocava desmaios e amnésia. Num conto que viria a escrever, um personagem recusa uma bebida: “Sou um bebedor ocasional, do tipo que sai para beber uma cerveja e acorda em Singapura de barba comprida.” Apesar de se viverem os tempos da Grande Depressão, não foi a economia mas o alcoolismo que provocou o despedimento de Chandler, aos 44 anos, após uma carreira brilhante de 13 anos na Dabney Oil.

“Não há nada como ficarmos sem dinheiro para vermos quem são os nossos amigos”, desabafou. Como não tinha nenhum, o seu plano foi tornar-se escritor.



Capa da Black Mask com «The Man Who Liked Dogs», de Chandler, março de 1936.

As revistas pulp, impressas em papel barato, eram muito populares na época. Algumas eram compostas por histórias policiais: O termo “pulp fiction” era sinónimo de qualidade inferior. Despedido, agora sóbrio e com tempo livre, Chandler começou a ler uma delas, a Black Mask, e achou que a escrita era “honesta, embora tivesse alguma rudeza. Decidi que era uma boa forma de aprender a escrever ficção, recebendo algum dinheiro ao mesmo tempo. Passei cinco meses a escrever uma novela de 18 mil palavras que vendi por 180 dólares”. Frequentou um curso de escrita criativa e, otimista, dedicou-se àquela disciplina que o fazia esquecer o álcool. Utilizava histórias já escritas e tentava redigir a sua própria versão. Depois, comparava ambas. Chandler detetou naquele tipo de escrita pulp uma falta de pretensiosismo que nem Conan Doyle ou outros intelectuais possuíam. “A história de detetives é uma tragédia com um final feliz”, concluiu.
 

A “secretária” Taki


Raymond Chandler e Taki.

Chandler contava com a colaboração da sua “secretária”, uma gata persa negra. “Chamo-lhe a minha secretária porque está comigo desde que comecei a escrever, normalmente sentada no papel que quero usar ou na folha que pretendo rever. Às vezes, encosta-se à máquina de escrever ou olha pela janela, a um canto da escrivaninha, como se me dissesse, ‘o que estás a fazer é uma perda de tempo, pá’. Chama-se Taki (de ‘take’, termo japonês que significa bambu) e tem uma memória de que poucos elefantes se podem orgulhar. Por vezes, observa-me com uma expressão peculiar, e suspeito que mantém um diário, já que parece dizer-me, ‘amigo, pensas que és bom, a maior parte do tempo, não é? Como te sentirias se eu publicasse algumas das coisas que ‘eu’ tenho escrito no meu tempo livre?’”
 

Taki tinha outras qualidades, contudo: “Quando costumava apanhar ratos – e não temos nenhum há anos –, trazia-os vivos e incólumes, para que eu lhos tirasse da boca. A atitude dela parecia ser, ‘cá está o maldito rato. Tive de o apanhar, mas agora o problema é teu. Tira-o já daqui’. Ela percorre periodicamente todos os armários, numa inspeção regular aos ratos. Nunca encontra nenhum, mas acha que isso faz parte do seu trabalho.”
 

 

O nascimento de Marlowe

 

O autodidata começou a vender os seus contos, começando com «Blackmailers Don’t Shoot» («Os Chantagistas não Matam») (1933), «Smart-Aleck Kill» e «Finger Man» (1934). O estilo progredia. Uma das personagens é “um pouco mais que bonita e um pouco menos que bela”. Mais interessado na atmosfera do que nas histórias, criou a sua voz, escrevendo, mais tarde, num prefácio a uma antologia destes contos: “As personagens vivem num mundo transviado, num mundo em que, muito antes da bomba atómica, a civilização concebeu meios para se autodestruir… As ruas estavam escuras e não era só da noite.” A sua repugnância pelos hipócritas e pela corrupção era compreensível, num país que não conseguia condenar Al Capone. Surge então Philip Marlowe. Mas quem é afinal a personagem criada por Chandler, que tanto fascina cinéfilos e leitores?

A resposta é relativamente simples. É, em parte, uma projeção da personalidade de Raymond Chandler. “Penso que poderia seduzir uma duquesa, e tenho a certeza de que não se aproveitaria de uma virgem.”

Marlowe é um solitário, tal como o seu criador. As descrições do detetive, depois de ser drogado por um médico e acordar num estado lastimoso, podem ser equiparadas à sensação de ressaca. O escritor apresenta o problema com o seu tom incisivo. “O álcool é como o amor. O primeiro beijo é magia, o segundo é íntimo, o terceiro é rotineiro. Depois disso, tiramos as roupas à rapariga.” Estas frases cáusticas marcam toda a sua obra. Sabemos que o personagem é um homem de 30 e muitos, 40 anos, que já teve outras profissões. Numa das cartas do autor, os pormenores sobre o detetive são tão elaborados que o biógrafo Frank MacShane considera “espantoso o modo como Marlowe se tornou uma pessoa real para Chandler”.

Philip Marlowe possui um certo jeito para encontrar mulheres com nomes invulgares, como Velma Valento ou Mona Mars, que lhe arranjam problemas a condizer. A espevitada Anne Riordan, contudo, “é o tipo de rapariga com quem Marlowe casaria, se fosse desse tipo”. Raymond Chandler tinha um ouvido impecável para nomes de personagens sonantes, a começar pela denominação do seu alter-ego, que deriva de Christopher Marlowe, o dramaturgo, poeta e tradutor inglês, autor de Doutor Fausto.

 


 




The Big Sleep, da reedição de 1971, com a excelente ilustração de Tom Adams.


 Ficção torna-se realidade
 
Marlowe é um herói honesto, por vezes, sentimental. Não é um detetive estereotipado: “A minha mente vagueou por ondas de memórias falsas, nas quais eu parecia fazer as mesmas coisas, vezes sem conta; ia aos mesmos lugares, encontrava as mesmas pessoas, dizia-lhes as mesmas coisas, sempre o mesmo; mas parecia-me sempre real, como algo que estivesse a acontecer, a suceder realmente pela primeira vez.” (The Big Sleep) É inteligente e vivido: “Fui à cozinha e bebi duas chávenas de café… podemos ter uma ressaca devido a outras coisas que não o álcool. Eu tive uma de mulheres.”
 
Chandler apelidava Marlowe de idealista, “embora isso lhe custasse a admitir, até a si próprio”. Duro, independente e conhecedor do absurdo da vida, Marlowe é uma das personagens imortais da literatura. The Big Sleep é uma descoberta do seu íntimo, mais até do que a resolução do mistério que orienta a narrativa. Acabam por ser mais interessantes as observações do detetive acerca da trama do que a trama em si:
 
“O que importa onde descansamos depois de morrermos? Que diferença pode haver entre um reservatório imundo e uma torre de mármore, no cimo de uma alta colina? Estamos mortos, dormimos o grande sono e essas preocupações não nos incomodam. Petróleo e água são o mesmo que vento e ar, para nós. Dormimos o sono eterno, sem nos importarmos com a perversidade que nos matou nem onde caímos. Agora, eu fazia parte da perversidade.”
 
O ensaio «The Simple Art of Murder» é extremamente influente, a nível de crítica literária, uma vez que aborda os romances de detetives, a literatura e a sociedade moderna de forma brilhante. Foi publicado na The Atlantic Monthly em Dezembro de 1944. Nele, Chandler afirma:
“Por estas ruas malévolas, um homem tem de caminhar, sem ser ele próprio malévolo, de reputação maculada ou amedrontado. O detetive, neste tipo de história, tem de ser assim. Ele é o herói, ele é tudo. Tem de ser um homem completo e um homem comum, mas, ainda assim, um homem invulgar. Se houvesse suficientes homens como ele, penso que o mundo seria um sítio muito seguro para viver, sem ser, contudo, demasiado maçante.”
Em 1994, como tributo ao primeiro escritor/cronista de Los Angeles, a cidade designou a Praça Raymond Chandler como monumento histórico-cultural. A praça situa-se na esquina das avenidas Hollywood e Cahuenga, o local exato do escritório de Philip Marlowe nos romances do autor. Chandler teria gostado. A ficção tornou-se realidade.
 
O grande acordar
 
A originalidade dos contos originou o primeiro e pujante romance, À Beira do Abismo, onde surge pela primeira vez Philip Marlowe, uma fusão dos detetives que povoaram as histórias que Chandler publicara nas revistas pulp. O autor, na sua definição, “canibalizou” os enredos dos contos para conceber as narrativas mais extensas dos romances posteriores, como O Longo AdeusA Irmãzinha ou A Dama do Lago.
 
Apesar de rachar umas quantas cabeças, Marlowe também acaba com as suas mazelas físicas e emocionais. O facto de ser um homem e não uma criação a duas dimensões, tornou-o mais do que um mero protótipo do detetive privado, originando inúmeras imitações ao longo do século XX. A escrita de Chandler e este personagem foram um dos catalisadores do film noir. Com uma integridade à prova de bala, Marlowe possui um código de conduta e uma ética que o prejudicam a curto prazo, mas que lhe permitem sobreviver a longo prazo.
 

Pickup on Noon Street, grande título (intraduzível) e mais uma capa de Tom Adams.





O expoente máximo do policial é Agatha Christie, que urdiu intrigas complexas e notáveis, mas que, enquanto escritora, não trouxe nada de novo. Mickey Spillane é violento, a sua escrita é enérgica; o seu detetive, Mike Hammer, um autêntico martelo, em livros que possuem um estilo colorido e sonoro, “semelhante a uma banda de militares a tocar num coreto”, como descreveu uma admiradora, a filósofa americana Ayn Rand. Outros descreviam a sua escrita como lixo, ao que Spillane respondia: “Mas é lixo de qualidade.” Rex Stout e Simenon tinham os seus méritos, mas Chandler foi o único autor de policiais a transcender o género.
 
A Los Angeles que descreve é intemporal, uma paisagem moralmente bárbara, mas bela, ao mesmo tempo – as palmeiras a contraluz, a beleza das manhãs e o ambiente enigmático das noites. À Beira do Abismo retrata um mundo sórdido, povoado de pornógrafos, um assassino bissexual, uma ninfomaníaca psicótica e toxicodependente, diversos alcoólicos, bares fumarentos, loiras oxigenadas, múltiplos adultérios e cadáveres descritos ao pormenor. Além de assassínios, claro, chantagens, polícias corruptos e mulheres fatais sem escrúpulos. As críticas preocuparam-se demasiado com a depravação do livro, que apenas obteve quatro menções na imprensa americana. Mas, pouco a pouco, Chandler tornou-se num sucesso de crítica e de vendas.

 
Limar o diamante
 
Chandler escrevia com uma elegância ímpar; é lacónico, acutilante, nunca maçante. Não há ninguém que descreva uma sala como ele. Ou uma mulher. “A dez metros, ela parecia cheia de classe. A três metros, parecia algo concebido para ser visto a dez metros.” Lou Reed, por exemplo, considera-o uma das suas maiores influências. “Adoro Raymond Chandler. Parece limar um diamante até à perfeição. Com meia dúzia de palavras, vemos diante de nós exatamente o que ele sugere”, diz Reed, que coleciona primeiras edições do autor. Mark Knopfler compôs «Private Investigations» inspirado pela atmosfera dos seus livros.
 
A argúcia de Chandler não poupava ninguém, nem sequer as palavras: “A inundação da palavra impressa tornou a leitura num processo de engolir em vez de saborear.” Por isso, admirava autores como F. Scott Fitzgerald, sobre o qual escreveu: “Ele tinha uma das qualidades mais raras da literatura, e é uma vergonha que a palavra que a descreve tenha sido desvirtuada pelos gangsters da cosmética, a ponto de quase termos vergonha de a utilizar para estabelecer uma distinção. A palavra é ‘encanto’, tal como Keats a empregaria. Quem o tem hoje? Não é uma questão de escrever de forma bonita ou com clareza de estilo. É uma espécie de magia atenuada, controlada e elegante, o tipo de coisa que nos inspiram os bons quartetos de cordas.”
 
A mesma descrição poder-se-ia aplicar ao próprio Chandler, observador atento do mundo literário e dos seus estratagemas de pacotilha:
“Há muita hipocrisia social e emocional nos dias de hoje. Adicionem-lhe uma dose generosa de pretensiosismo intelectual e obterão o teor da crítica literária do vosso jornal diário e a zelosa e imbecil atmosfera exalada nos debates em pequenos clubes. São estas as pessoas que produzem best-sellers e ladainhas ensaísticas, tarefas promocionais baseadas numa espécie de atrativo snob e indireto, cuidadosamente escoltadas pelas focas amestradas da fraternidade crítica, e adoravelmente acarinhadas e regadas por determinados e demasiadamente poderosos grupos de pressão, cujo negócio é vender livros e consagrar poetas pedófilos, embora queiram que pensem que estão a encorajar a cultura. Atrasem-se nos vossos pagamentos e verão como são idealistas.”
 
 
 
“Chandlerismos”
 
“– Éntão você é detetive particular… julgava que só existissem nos livros… ou que fossem homenzinhos encardidos, a farejar nas imediações dos hotéis.
Como nada daquilo me dizia respeito, fingi não ouvir.
– Não vejo motivo para tantos segredinhos – explodiu ela. – E fique sabendo que não gosto das suas maneiras.
– Também não morro de amores pelas suas. Não pedi para vir aqui, foi você que me chamou… não me importo que me trate como grande senhora, nem que se enfrasque em uísque; não me importo que me mostre as pernas (aliás, bem bonitas e que tive muito prazer em conhecer) nem que não goste das minhas maneiras (são de facto, francamente más e costumo preocupar-me com elas nas longas noites de Inverno); mas não perca tempo a tentar interrogar-me.
Pousou o copo com tanta força que entornou parte do conteúdo numa almofada cor de marfim.” (À Beira do Abismo)
 
“O átrio principal da residência Sternwood tinha a altura de dois andares. Sobre as portas de entrada, por onde passaria à vontade uma manada de elefantes indianos, um grande painel de vidro colorido representava um cavaleiro de armadura negra a salvar uma dama amarrada a uma árvore e coberta apenas pelos cabelos convenientemente compridos. O cavaleiro empurrara para trás a viseira do elmo, numa atitude sociável, e mexia nos nós das cordas que prendiam a dama à árvore, mas sem obter resultados. Parei a observar o painel e a pensar para comigo que, se vivesse ali, mais cedo ou mais tarde treparia pela porta acima e daria uma ajuda ao indivíduo, pois ele não parecia esforçar-se com verdadeiro afinco.” (Idem)
 
“– Você é alto, não é? – disparou ela sem mais nem menos.
– A culpa não é minha…
Ela arregalou os olhos. Ficou confundida. Estava a pensar. Apesar de ter acabado de a conhecer, apercebi-me que pensar seria sempre uma maçada para ela.” (Idem)
“Mordeu os lábios, voltou um pouco a cabeça e olhou-me de soslaio. Depois, baixou as pálpebras, até quase tocar com as pestanas nas faces, e levantou-as de novo, lentamente, como uma cortina de teatro. O truque não me era estranho e destinava-se a conseguir que me rebolasse no chão, com as quatro patas no ar.” (Idem)
“Pensei na primeira vez que vi Eileen Wade, e na segunda, e na terceira e na quarta. Depois, qualquer coisa nela deixou de ser real. Desde que se sabe que alguém é um criminoso, essa pessoa deixa de ter realidade. Há pessoas que matam por ódio, por medo, por ganância. Existem criminosos astuciosos que planeiam os seus crimes julgando livrar-se das consequências. E há criminosos dominados por tal fúria que não fazem quaisquer planos. Há os que estão apaixonados pela morte, para quem o assassínio é uma espécie de suicídio.” (O Longo Adeus)



The Long Good Bye, dirigido por Robert Altman


Fronteiras vagas
 
Raymond Chandler inventou um novo modo de falar sobre a América, e a América nunca mais nos pareceu a mesma desde então.
Paul Auster
Admirado por W.H. Auden, Evelyn Waugh e Ian Fleming entre muitos outros, nos dias de hoje, Chandler é prestigiado e levado a sério pela crítica.
Apesar de nunca ter escrito nada que não fosse um policial, achava que “quando um livro, qualquer tipo de livro, alcança determinada intensidade artística, torna-se literatura. Essa intensidade pode ser uma questão de estilo, de situações, de personagens, tom emocional, ideias e meia dúzia de outras coisas”.
Pelos vistos, não se enganou.
De facto, os seus argumentos são válidos quando explica, numa das suas cartas: “Os escritores de mistério são vistos como ‘assalariados’ em certos quadrantes, apenas por serem escritores de mistério. Isto é confuso, a meu ver. Um escritor que aceita uma certa fórmula e a segue, não é mais assalariado que Shakespeare, já que, para manter a atenção do público, ele tinha de incluir uma certa dose de violência e comédia rude. Da mesma forma, os pintores da Renascença também não eram assalariados por terem de explorar os motivos religiosos que agradavam à Igreja. A minha definição de ‘assalariado’ consiste num homem que deixa que outros lhe digam o que escrever e como; e que escreve, não de acordo com uma fórmula, mas seguindo as definições impostas por um editor. Mas a fronteira é sempre vaga.”
 
David Furtado

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