domingo, 15 de dezembro de 2013

O ADEPTO (17)

Havia um tapete branco na sala daquele apartamento no edifício Oceania que se estendia de uma parede á outra. Cortinas altíssimas, cor de marfim, caíam em cima do tapete no qual estávamos sentados fumando dentro do ar condicionado que enchia o imóvel todo, não saindo por nenhuma das muitas janelas de vidro cerradas. As janelas davam todas para a praia da Barra em frente, quase em frente ao Farol. A julgar pela intensidade com que brilhava o sol, estava bastante quente lá fora, naquela tarde de Domingo. ----- Que tal me dizer agora onde é essa casa em que você fica em Salvador e me levar para conhecer seu cachorro(?) -----, Beatriz sugeriu inadvertidamente, assim que fechou a porta do quarto atrás de si e voltou a se sentar diante de mim no tapete da sala. Ficou ali estendida numa chaise longue branca, sem os chinelos. Me pareceu que acenderia um novo cigarro á qualquer momento. De repente, acrescentou: ----- Você tem uma família da qual nunca falou, é isso então(?) ----, talvez dizer a verdade não significasse propriamente negar este fato, pois também sou afinal uma criatura da relação. Senti que naquele momento, ou que no próprio ato da minha resposta, deveria ser não tanto consciência ou auto-consciencia, mas corpóreo e sanguíneo em primeiro lugar para alcançar um mínimo de sinceridade, como um blastóporo cujas proteínas nucléicas enfeitam uma assinatura, a da primeira metade do meu destino sobre a Terra: ----- A única pessoa que resta viva na minha família além de mim é uma tia paralítica e esquizofrênica que se atirou pela janela quando tinha vinte e poucos anos e perdeu todos os movimentos das pernas, logo depois entrou num processo progressivo de diminuição do quadro de lucidez que nos últimos anos culminou numa esquizofrênia quase total, com direito á todo tipo de crises psicóticas e gritaria desarticulada no meio da noite(.) todas as outras pessoas da minha família já morreram há muito tempo, meus pais mesmo morreram num acidente de carro na BR-040 quando eu ainda tinha dezenove anos(.) depois, um a um, foram partindo todos os outros: avós, tios e tias, primos e primas, até que minha família se tornou pra mim um conjunto matemático de lápides perdidas no tempo(.) meus avós e tias, por parte de mãe, deixaram imóveis e uma grande quantidade de dinheiro no banco numa conta em nome da minha tia paralítica sobrevivente e eu como representante judicial dela agora controlo tudo, pois já não há mais ninguém(.) deixei ela instalada nessa casa de que te falei, é onde fica também meu cachorro e um quarto com banheiro que construí nos fundos(.) nunca toquei num único centavo dela nem tirei qualquer proveito pessoal desta situação inesperada pra mim, me limitei a alugar os imóveis que deixaram em nome dela e direcionar toda a renda para a conta em nome dela pela qual respondo judicialmente(.) ------, é provável que com isso eu tenha de fato exalado um hálito autêntico do meu presente-presente contra o rosto de Beatriz, sanguíneo e corpóreo como queria no início, que subitamente se tornou um ponto insignificante de estupefação nadando nas primeiras correntes do fluido aminiótico do meu passado. Eu e ela: uma célula dupla embrionária diante da tragédia da vida ou apenas a consciência fluida de um Deus a escorrer dos nossos olhos, a Sua compreensão ainda dentro da minha, como acredito acontecer com todos os seres não nascidos, mas que crescem no ventre como uma idéia. ----- Sinceramente, me parece á primeira vista algo horrível de ser contado(.) você está bem(?) -----, ela disse, me dando mais alguns segundos para pensar se ainda dizia alguma coisa. Acendi um cigarro e avaliei a situação parcialmente: eu estava perfeitamente bem, nunca fui de me emocionar com lembranças. Trabalho de gestação da Luz: um embrião com oito instantes de vida. ----- Mantenho uma equipe contratada de empregadas e enfermeiras que se revezam dia e noite para cuidar dela, como você e a sua família fazem com seu velho pai, pois não tenho condições psicológicas de cuidar dela pessoalmente, nem de parar durante muito tempo num único lugar, além do que ela praticamente não me reconhece mais, a não ser quando a enfermeira que ela mais gosta perde algum tempo tentando clarear os subterrâneos destroçados da memória dela(.) mas nunca vale muito á pena fazer isso, ela não é muito chegada á visitas e com o tempo foi perdendo a paciência com qualquer presença que não fossem as empregadas e enfermeiras que controlam sua alimentação e o número de cigarros que ela fuma por dia, senão ela fica terrivelmente doente do estômago e brônquios e sofre ainda mais, como já vi algumas vezes(.) um truque para ser bem recebido por ela é entrar no quarto dela com um cigarro fora de hora, logo se abre aquele sorriso alucinado em sua boca de dentes amarelados e gengivas roxas e enquanto a brasa do cigarro queima ela responde as perguntas que voce faz á ela, quando o cigarro acaba ela pára de responder e só volta a conversar contigo se lhe arranjar outro cigarro(.) -----, resumi para Beatriz. Desde o ''tornar-se criança'' (Cristo), ou o ''parir-se dentro da Mãe-Sabedoria'' (Monfort) aos auto-partos instantâneos (Meister Eckart) ou ''ser os Tres Reis Magos e o Menino Jesus nas indefinidas epifanías instantâneas (Yeats) e a inocência animal (Rumi), Ingenuidade (Borges) ou conhecimento como nascimento (Claudel) e desesperação (Kierkegard), mais o luciferino porte do colar do descrédito para ver diretamente o segredo do rosto do recém-nascido eleito refletir-se no seu próprio gênio (Attar), o de parir-nos no conhecimento do nascimento de cada instante, assumindo e superando a desesperação e a ignorância, Meister Eckhart, Kierkegaard, Claudel, etc. ----- Chocante, quer dizer, estou meio chocada com toda essa estória(.) -----, Beatriz gaguejou diante de mim, mas eu continuava pensando em separado uma série de pensamentos que me ocorreram em cascata naquele momento, sobre loucura e espiritualidade: pois foi Antonin Artaud quem com maior genialidade e intensidade paradigmática realizou toda essa síntese até chegar ao cúmulo de negar o próprio nascimento ''eu não nasci ainda e isso é tão certo como um bife com batatas fritas''... não tendo se valido Artaud um só instante de nenhum dos féretros das comodidades dos sistemas pré-existentes, ou dos entendimentos e sobriedades excessivamente ponderadas em todas as tradições e caminhos, provando na própria carne que o que os homens chamam mistérios se cumpre na verdade de maneira totalmente profana, como em Heráclito de Éfeso: partindo de uma imprescindível exigencia de autenticidade e interioridade. Por esta exigencia de interioridade autêntica, oposta ás práticas exteriores tanto do culto popular como dos ritos mistéricos, Heráclito ''havia rechaçado a função que lhe queriam fazer cumprir numa comédia de pseudo-iniciação, e havia transportado sua exigência a um psico-drama do Ensinamento'' (...) e na nova missão que assumiu se deparou com uma espécie de inevitável tragédia: a impossibilidade de comunicar com os άξύνετοι (incapazes do necessário ξυνόν, seja, de verdadeira e autêntica comunhão) que inclusive ouvindo o Logos comum seguem sendo surdos como antes. ----- He he(...) já não é tão traumático assim para mim, mas admito que passei um certo sufoco quando morreu minha última tia lúcida e eu fui investido como representante judicial(.) ------, voltei a olhar nos olhos de Beatriz e senti que naquele momento meu olhar era tão frio e vazio que eu poderia ser facilmente qualquer outra coisa, viva ou morta, poderia ser facilmente a casa da pousada á beira mar em que ocorre o final dessa estória (que ressonâncias encerrariam as vigas, os encaixes, as tábuas arqueadas do chão de um velha casa diante do mar).... poderia ser também apenas um coqueiro diante daquela casa: há um coqueiro (um dendenzeiro, mais precisamente) diante daquela casa de pousada á beira mar, um bordo excepcional cujo tronco se divide em quatro a apenas alguns palmos do chão, e cujos ramos e raízes estuporadas, nos meses do ano em que as folhas secam e caem, têm as formas nobres dos sulcos nervosos do cérebro, vistos nas projeções cirúrgicas das ilustrações daqueles pesados e sinistros manuais de prática médica do século XIX... poderia ser até mesmo aquele pequeno jardim atrás da casa que quase ninguém vê ---- estamos todos perto do mar, por aqui ----- , cujas flores no verão têm aquela rara vivacidade elétrica proporcionada pelo ar salgado, o solo arenoso e o adubo superenriquecido com néctar artificial e hidromel.... digo isso porque Beatriz me fez pensar também naquele pequeno jardim ---- sempre sinistra quando adorável ----- , sempre contendo a promessa fugidia de uma mulher bela de voz demasiadamente perfeita cujo eco jamais sabemos se se trata de um avatar de sonho sensual ou de uma obra-prima da traição. ----- Me diga uma coisa, quando foi que morreu essa sua última tia lúcida, há quanto tempo você convive com essa situação(?) -----, achei que conseguiria arrastar-me até 2014 sem ter que conversar sobre isso com Beatriz, algo que me pareceu claro no momento em que deixei aquela pousada pela última vez, mas agora, depois de tantas reviravoltas e já em meados de dezembro de 2013, a questão voltou á superfície com força irresistível e ela me colocou contra a parede novamente. Acrescentou: ----- Meu Deus(...) ----, ela me parecia determinada a reunir toda a gama de respostas vagas que eu tinha dado sobre minha família ao longo do tempo em que ficamos juntos e tirar tudo á limpo naquela tarde que ardia pela janela do apartamento na Barra. ---- Parece que agora voce decidiu se tornar de vez a detetive do caso(...) tem cinco anos mais ou menos que esse minha ''última tia lúcida'' (risos) morreu subitamente em casa, durante o banho, de complicações cardio-vasculares(.) por sorte, eu estava na cidade e pude ser prontamente avisado pela empregada da casa, que me telefonou desesperada naquele mesmo dia dizendo que já não havia mais ninguém vivo na família e que agora era comigo(.) lembro de ter sentido o medo de alguma maldição tremulando na voz dela ao telefone, de fato é estranho ver uma família inteira tão rapidamente pulverizada em tão pouco tempo como a minha foi, mas nunca cheguei a ver nisto algum tipo de maldição(.) já vi pessoas morrerem na minha frente de várias formas diferentes, e nunca deixei de ver na morte nada além do que ela é: uma boa conselheira(.) -----, se faço tais comparações, é porque aquele apartamento de tarde me parecia um lugar sossegado para destilar um pouco de alma, numa tarde escaldante demais para se fazer amor era natural compartilhar um pouco da minha existência com minha flor, mesmo não pretendendo ser muito abrangente e, diante das indagações dela, temendo me tornar perversamente fascinante: em que lugar melhor se poderia esconder o demônio de toda uma vida, senão na vulva de uma flor? ----- Seja lá qual for o jogo que você andou jogando ao longo da vida, o fato é que andou jogando perto demais da própria pele(.) digo isso pensando mais em sua saúde mental, é difícil para mim acreditar que alguém pode passar por tudo isso assim como você diz, como se nada estivesse acontecendo ou como se não fosse com você(.) ----, me pareceu que Beatriz já escorregava inadivertidamente para um terreno de melodrama barato, tentando visualizar alguma cena subterrânea de depressão profunda dentro do cenário da minha memória: e talvez tenha de fato existido alguma em algum momento perdido no tempo. Talvez naquele quarto dos fundos, cinco anos atrás, uma tela sobre o cavalete pintada pela metade e eu observando a válvula da concha de uma lesma ao microscópio (Zeiss, 2 mil Detschmarks, imersão á óleo, binocular). Cavalete e material de pintura á mão: via uma galáxia espiralada de pequenas células córneas cuja pigmentação tinha a cor laranaja-escura de um sol que se apaga. Focalizando o centro da válvula do caramujo, passei muitas horas seguidas imaginando quais ondas de emoção, que ressonâncias do campo morfogenético haviam soprado em seu vermelho para me inspirar tanta tristeza e lembranças ---- estava usando drogas na ocasião, é claro ---- e, posteriormente, oferecendo meus olhos estimulados pela ganja a contemplação das volutas de almofadas do meu polegar e das pontas dos meus outros dedos, encontrei novamente aquela espiral de sonho que estava procurando para encher o resto do meu quadro e senti aquele calafrio tão comum aos alquimistas medievais, aos pirados, aos viciados em drogas, e conhecido talvez de alguns poucos leitores: aquele terror estranho de sentir-se á beira de segredos que nenhum outro ser foi suficientemente corajoso para penetrar, o que me fez lembrar do antigo ditado hermético ''O Adepto deve permanecer firme enquanto tudo mais desmorona á sua volta, e se por acaso ele cai por algum motivo, deve vir outro para ocupar o seu lugar''. ----- Como todo homem de ambição espiritual napoleônica e de talentos tão diversificados quanto os dos homens do Renascimento, sempre tive um agudo instinto para detectar meus momentos de crise e descobrir dentro delas as novas belezas da auto-expressão(.) por isso nunca me considerei assim tão próximo de algo como um precipício mental(.) o que faz com que as pessoas se sintam á beira do abismo é a auto-repressão(.) a cada dia que uma pessoa se reprime, seja em que terreno for, um pouco de morte entra no corpo dela, as úlceras se instalam mais firmemente, o fígado adoece, os pulmões murcham, o cérebro explode os mais artificiosos de nossos circuitos mentais, o coração perde sua força e os órgãos genitais, seu suco(...) -----, ela entendeu depressa que tudo aquilo, por mais terrível que tenha sido, nunca chegou a constituir um problema de proporções consideráveis. ----- Não sou sua governanta, aliás acho que não sou ainda nem sua namorada de fato, mas desde que te conheci considero meu dever prevenir você sobre certas coisas(.) muita pretensão da minha parte, mas e daí(?) foda-se(...) -----, quem sabe aquela tarde escaldante de Domingo do lado de fora da janela, enquanto nós conversávamos imersos no ar condicionado que navegava o apartamento inteiro, não era realmente o dia em que a primeira das células explodidas daria aquele misterioso salto independente de uma vida para outra forma de vida: aquele salto que vislumbrei várias vezes ao longo da minha própria vida, em outras pessoas ou nos meus personagens de conto, e até certo ponto experimentei em mim mesmo cautelosamente, da vida diária de uma célula obediente, vida essa que é social, tem um propósito, é pobre e indizivelmente deprimente, para aquela outra, selvagem, a vida da erva daninha ou do pistoleiro de aluguel, célula rebelde crescendo segundo suas próprias leis, assaltante dos sentidos, sitiando os órgãos, rica de velocidade orgíaca, seu exemplo constituindo uma atração para os outros milhões de células, pois se a outra vida é curta, é também livre e sem muita complicação inútil. ----- Então, você vai voltar comigo para a pousada(?) ----, Beatriz perguntou, tentando me pegar de surpresa novamente. Permanecia sentada no sofá, as pálpebras baixas e ligeiramente aborrecida enquanto aguardava minha resposta... é tempo de dizer alguma coisa sobre essa casa de pousada á beira mar e o lugar exato onde fica. A Baía de Camamu é a terceira maior baía do Brasil e a segunda do estado da Bahia, ficando - em volume de água - atrás apenas da Baía de Todos Os Santos e da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro. Situada no litoral sul da Bahia, a 335 km da capital Salvador, possui lugares históricos e turísticos como Barra Grande, Camamu e Maraú. Situada entre a foz do Rio Jaguaripe e a Baía de Camamu, a Costa do Dendê é um verdadeiro mosaico de praias, baías, manguezais, costões rochosos, restingas, nascentes, lagoas, rios, cachoeiras e estuários. Seus 115 km de litoral abrangem as localidades de Valença, Morro de São Paulo, Boipeba, Igrapiúna, Cairu, Camamu, Taperoá, Nilo Peçanha, Ituberá e Maraú. As praias intocadas, de águas claras e quentes, com formações variadas de recifes de coral e emolduradas por vastos coqueirais, figuram entre as melhores do país nos principais guias turísticos. O arquipélago fluvial do Rio Una abriga uma variedade de ilhas paradisíacas – Tinharé, Boipeba, Cairu. A estonteante Baía de Camamu abre-se em dez ilhas inexploradas, com vegetação primitiva e coqueirais. Os intermináveis manguezais servem de berçário para robalos, tainhas, caranguejos, siris, camarões, pitus, ostras e lambretas. Uma extensa contracosta de águas plácidas é ideal para navegação, vela, mergulho e pesca. As imponentes cachoeiras são picos para a prática de esportes radicais. Uma Unidade de Conservação preserva a rica fauna e flora. As abundantes árvores de dendê, tempero que dá o gosto peculiar da culinária baiana, dão o toque final no cenário local. A natureza velada neste paraíso de grande diversidade ecológica divide a paisagem com um rico acervo histórico, herança do Brasil Colônia. Os povoados primitivos preservam características culturais tradicionais, sendo uma paisagem humana e ecológica muito agradável para quem esteja com humor radiante de férias de verão: um baía tropical batida por todos os ventos marinhos, com mangues imensos e profusa vegetação aquática, solitárias dunas de areia branca, bosques de coqueiros e dendezeiros completamente desertos e outras árvores tropicias. Partindo da rodovia principal da Costa do Dendê, com a selvagem arquitetura excrementícia dos postos de gasolina e borracharias de beira de estrada, os jantares baratos revestidos de crômio, as armadilhas dos souvenirs, as barracas de frutas, os motéis para funcionários do Governo, os anúncios luminosos, os cartazes corroídos pelo sal, tudo isso em pigmentos que ferem cruelmente a visão ao longo do caminho. As estradas secundárias são tranquilas, pouco mais que caminhos com pequenos casebres acinzentados onde moram, am sua maioria aposentados, pescadores evangélicos e miseráveis. Os ermos caminhos em trilhas arenosas passam por bosques de dendezeiros onde medram amoras selvagens cuja vegetação rasteira ao pé das amoreiras é amarelada e violeta, em contraste com os tons de lavanda das dunas quando o céu por acaso está cinzento. Perto de Camamu, numa ilha a alguns quilômetros de distancia, há um distrito e alguns quilômetros de areal branco vazio depois do qual está localizada a pousada de Beatriz, entre a baía e o oceano, pois há ainda outra ilha diante da ilha onde fica a pousada. As dunas da ilha se erguem em pequenos morros e se desfazem subitamente em vales onde um caminhante poderia se julgar perdido no deserto do Saara caso saísse para andar ao meio-dia sem um mapa ou guia. Para além desse deserto de areia branca perdido no meio do caminho, está uma aldeia de pesca que com o tempo e um pouco de cimento se tornou um distrito, com tres quilometros de comprimento e duas ruas de largura, o distrito serpenteia em volta da ilha, uma extensão clara com tons mediterrâneos, tetos amontoados e íngremes, parapeitos para a pesca e barcos pesqueiros cujo cheiro de cavala e gasolina é tão afrodisíaco para o nariz sensual quanto o limpo cheiro de whisky de uma boate onde se reúnem putas sifilíticas. ----- Te dou cinco mil se você voltar para a pousada comigo(.) -----, Beatriz disse e pegou um copo de bebida do chão que eu ainda não havia notado, rindo silenciosamente pra mim. Tomou um gole enquanto eu olhava a luz do sol faiscar num anel de prata que ela tinha no dedo. Depois soltou uma sonora risada brusca e falou: ----- O meu maior medo é ouvir você dizer ''Ok, negócio fechado''(.) -----, ela ficou esperando que eu dissesse alguma coisa, mas dando a impressão de que não se importaria absolutamente com o que eu pudesse falar. ----- Há muitas maneiras de se brigar nesta vida, atribuir palavras e atitudes suspeitas á pessoas inocentes é uma delas(.) -----, a estaca cravada no peito do vampiro é toda uma alegoria, uma metáfora, uma parábola. O vampiro é aquele que tomamos por nós mesmos, o ego usurpador de energia, a instalação forânea, a mente externa, o inorgânico parasitário, esse que nos ocupa, como dizia o poeta adolescente Arthur Rimbaud: '' eu é um outro''. Mas, voltando á nossa fábula, a estaca no peito do vampiro é o discernimento ou o cinzel que ao penetrar no peito ou coração dissolve a auto-importancia que nos mantém escravizados pelas correntes do mundo das pessoas. ''A arapuca dos pensamentos alheios''. Podería seguir indefinidamente com todas as topologias e analogias do vampiro e da estaca naquele momento, enquanto Beatriz me olhava apreensiva do outro lado do tapete branco, mas tudo isso não era senão fábula sobre fábula e se ela pudesse ouvir meus pensamentos certamente diria '' ---- Que se passa, Kalki(?) do que falam seus pensamentos (?)''. Como Rumi, também Ranjit diz mais ou menos a mesma coisa sobre as palavras e os pensamentos: que são apenas o 'rangido'' da porta do segredo... ego e estaca são apenas duas palavras (e agora que todos sabemos o que Ranjit dizia das palavras, que não é lá tão distinto do que diziam ou tinham vivido e compreendido criacionistas e anteriores magos e amantes da magia das palavras: esses truques, esses embustes, essas tramas, são upaias, estratégias, assim como todas as religiões, ritos, meditações, contemplações e o mar de noite numa ilha deserta... entre os séculos VI y III a.C. se vem caligramas, poemas em forma de dupla hacha e várias outras estratégias para criar a ilusão de simultaneidade ou paradigma ou caleidoscópio. Também os bardos como Homero y pré-socráticos (muito chamânicos, entre outras coisas) conheciam ritmos, rimas y prosódias hipnóticas e encantatórias (e a partir do século de Péricles até agora a rima é somente uma superstição burguesa). Um James Joyce ou um André Breton, para exemplificar com estes, não são em nada inovadores (nem jamais o pretenderam nem se adiantaram a nenhuma ciência que jamais alcançará cobrir tudo o que já lograram superar os antepassados mais remotos e arcaicos) e sim homens saídos da história, do social, auditores do Bardo (hiato), dançarinos dos ângulos propícios e sincronistas sintagmáticos-paradigmáticos. Grandes sinfronizadores capazes de escutar o grego, o oriental, o hiperbóreo: CONSIRERA-LOS, o que equivale a dizer ''ESTAR JUNTO COM ELES NAS ESTRELAS'' ('CON-SIDERAR' significa isso etimologicamente). Além do mais eles tiveram êxito em realizar a operatividade do segredo de que MIRROR (espelho) e MIRAR (sobretudo em espanhol: ver, olhar) querem dizer arcaicamente sorrir, rir estupefacto y nem tão antigamente assim (digo: até outro dia mesmo, por exemplo até o século X a.C. na ''Espanha'') significava MILAGRAR, MILAGRE... ----- Acho que vou ter que voltar na casa do meu pai para pegar um vestido que esqueci lá, você me espera aqui(?) -----, Beatriz me perguntou assim que eu me levantei para abrir um pouco a janela e fumar um cigarro olhando a praia e o Farol. Percebi subitamente, numa relanceada troca de olhares mudos com ela, que não é definitivamente do espírito destes nossos enfatuados anos, preocupados em esquecer e estimular falácias patéticas como o animismo do vento ou de uma velha casa de pousada a beira mar, mas (seja eu espírito, geist, demiurgo, cão, coqueiro, jardim ou alguma casa de pousada á beira mar) seja eu o que for, deve ser evidente que sou existencialista e místico e poderia propor que, quando o vento tivesse um grito que parecesse significativo aos ouvidos humanos, seria mais simples acreditar que o vento compartilha conosco um pouco da emoção do Ser do que imaginar que os mistérios do murmúrio crescente do furacão se reduzem á uma simples colisão aleatória de moléculas insensatas. Exatamente porque sinto agora, diante de Beatriz, a frustração repentina de um vento que sabe tanto e nos pode dizer tão pouco quanto tenho que pegar um vestido que esqueci na caso do meu pai você me espera aqui? Com a marcha do último século para sua morte e renascimento no derradeiro Aqui e Agora, e quem tem ouvidos para ouvir o vento quando o fumo do ódio mútuo é incrivelmente espesso tanto nos trens suburbanos e torcidas de clubes de futebol rivais quanto nas redes sociais e ambientes de trabalho fumê, e os trilhos subterrâneos de uma noite de televisão desgastam e transformam em estupidez o sentido do sensual, deixando-nos insensíveis e surdos aos sons quase inefáveis que vão além da vaidade, da vontade, da força e da prisão do ego, o sombrio ego homicida do Demiurgo, campeão de tudo quanto é prático, eficiente e falsamente triunfal, divindade outrora camponesa da Reforma, esse burguês faustiano que construiu nossas usinas de aço dentro da rígida, palpável e auto-evidente noção de que através de um ponto só pode ser traçada uma linha paralela á outra linha existente, quando já estamos viajando pelo presente do espaço-tempo não-euclidiano. Tinha sentido vontade de falar alguma coisa, em tom de objeção, pois havia me cansado toda aquela conversa com ela, aquela auto-exposição forçada á que fui submetido. As pálpebras batendo contra o brilho da lâmpada sem proteção no teto da sala... não sei, na verdade, eu não tinha sido capaz de falar muito, mas tinha falado o suficiente para embrulhar nossos dois estômagos. He he... fumamos alguns cigarros, fiz algumas reflexões, visitei alguns ratos no porão da minha memória, e finalmente respirei fundo e disse á Beatriz, antes de ela sair pela porta do apartamento: ----- Seu pai é um homem muito idoso e semi-paralítico(.) um fio tênue de interesse ainda o prende á vida e esse fio é você(.) -----, segurando o cigarro com o braço para fora da janela eu via dali uma sucessão de terraços com canteiros de flores e árvores importadas. Lá embaixo, uma lagarta humana se esticava em movimento sobre a calçada. É o mundo exterior, mas o Tempo como crescimento está dentro de cada um, e não fora. Como as excitações e os emocionantes estímulos internos, como o envoltório tropical de um amor, um desejo estagnado e reprimido no meu peito ou um suor frio nas ancas de uma modelo fogosa. O Tempo como crescimento é então o tesão de um jovem arruaceiro armado de faca ou uma jovem puta de costas procurando o amante cujo rítmo a levará ao futuro. Mas essa combinação suada de auto-reflexos logo se torna complexa e cansa a atenção, ainda mais agora que Carmen resolveu sair do quarto e vir fumar um cigarro na sala, exatamente dois minutos depois de ouvir Beatriz sair para ir até a casa do pai. Sentada no sofá com o cigarro aceso entre os dedos, Carmen recorreu imediatamente á suas enormes reservas de atenção sensual e relaxada, fez um levantamento abrupto dos nervos frouxos do seu físico de jovem égua quarto de milha e voltou os olhos para mim. Um sorriso, agora. Um sorriso duro, formal, mas ainda assim um sorriso. Eu estava na janela pela segunda vez: ------ Então, escreveu mais alguma coisa(?) -----, resolvi reproduzir esta conversa aqui por ser essencial ao nosso mistério e, se o leitor a considerar mais uma vez bizarra, deve reconhecer antes de tudo que estamos aqui á beira de uma orgia da linguagem, já bem dentro do niilismo do significado. Uma verdadeira linguagem de funções indeterminadas, expressão defasada das ondas de toda matéria escura do espaço sideral. ----- Tenho sentido uma certa dificuldade para escrever coisas que façam sentido(.) acho que não escrevo tão bem quanto gostaria(.) ----, pelo resta da vida, pensei imediatamente: pelo resto a vida eu tinha agora duas palavras de Carmen que eram algo absolutamente novo no universo, por todo meu inconsciente passavam agora vibrações de prazer celular, tanta coisa da malograda experiência artística de Carmen acorreu naquele momento ao nível superior da linguagem mais precisa. Antonin Artaud também começou a se revelar um gênio revolucionário da literatura no exato momento em que admitiu que não podia escrever absolutamente nada, que não tinha absolutamente nada a dizer. Como bem assinala Derrida, "o trabalho de subversão a que Artaud, desde sempre, submeteu o imperialismo da letra, tinha o sentido negativo de uma revolta enquanto se produzia no meio da literatura como tal." ----- Posso ler(?) ----, perguntei inopinadamente e ela corou diante de mim e logo depois se enfureceu mudamente por eu ter provocado aquela pequena confusão na sua mente. Na verdade, eu nao tinha inicialmente a pretensão de torna-la totalmente inspirada de uma hora para outra só por causa de uma conversa. ----- Eu escrevo também, a Beatriz já deve ter te falado(...) já leu alguma coisa que escrevi(?) -----, Carmen se afundou no sofá e fez um sinal de positivo, balançando a cabeça quase imperceptivelmente e fazendo uma pose de atriz famosa sendo fotografada enquanto fumava um resto de haxixe turco numa longa piteira de platina. O cheiro de açúcar queimado me deixou quase tão alto quanto ela, então eu perguntei: ---- Carmen, porque você não gosta de mim (?) -----, vejo que vou e volto, falo das páginas que se seguirão e, não obstante, mesmo quando tenho que reunir as palavras sobre a mesa e as pequenas ações que descrevo já ocorreram, não sei ainda quem sou nem onde estou, nem mesmo sei se realmente estou escrevendo alguma coisa ou atuando de verdade. ----- Gosto de você pela metade(.) junte Beatriz ao nosso caso e agora você tem uma pessoa e meia que gostam de você(...) não é para qualquer um(:) deux person nes et demie(.) ----, ela respondeu, e ficou esperando que eu dissesse alguma coisa sobre Beatriz: ----- Quando eu e Beatriz estamos sozinhos um com o outro é uma coisa que você não pode nem imaginar, de tão bom(.) chega a ser irresistível(.) -----, mas tão logo penso que não tenho uma materialização efetiva, com compromissos de vida e sentimentos recorrentes e previsíveis, sinto borbulhar o riso ante o peculiar presente do indicativo da minha consciência, que vê no passado recente, enquanto recupera o futuro e, não obstante, não faz qualquer das duas coisas, pois talvez eu misture a ordem do Tempo para recuperar a ordem daquilo que não tem forma e ainda assim é mais do que real. ----- Todas nós mulheres somos assim, a irresistibilidade está diretamente em função da decisão da mulher resistir ou não(.) particularmente, não sou o tipo de mulher que gosta de ser instigada e provocada superficialmente, é preciso em primeiro lugar fazer da mulher uma amiga(.) -----, com a pluma da atenção, facilmente distraída nos vendavais do momento presente, passo do receio á diversão leve e desta á certeza metafísica, e novamente me afasto para dentro da subconsciência, como se ninguém fosse tão real quanto á subcosnciência que me leva agora para o sopro infinito da narrativa. ----- Sou seu amigo desde o primeiro instante em que te vi deitada de comprido sobre aquela bola vermelha de teflon, Carmen(.) e fiquei completamente apaixonado por você quando te ouvi relatando seus transes de meditação durante sua apresentação no grupo de trabalho de Beatriz, a ponto de ter decorado suas palavras para nunca mais esque-las(.) "boiando em volta das pessoas"como spaguettis de luz escorrendo pela boca do Demiurgo, na maioria das vezes sao mais aquelas manchas de energia, tipo cargas energéticas amorfas, que mais parecem auras ou contornos luminosos em volta de pessoas, animais, plantas e coisas. os pontinhos as vezes aparecem mas é uma superposição(...) ----, ela bocejou desdenhosamente em seguida, e suas virilhas esparramadas no sofá, em represália por este triunfo melodramático do casual, fizeram-na sentir uma pontada de desejo físico muito evidente na altura do pescoço. Agora eu estava vazio novamente, depois de desabafar ou desabar diante dela, aquela carga emotiva reprimida dentro do meu peito havia descido rolando ribanceira abaixo. Me sentei no sofá ao lado dela e ela não se moveu do lugar. Alisei o braço dela abaixo da blusa de rendas azuis. ----- Você não sente falta de um namorado (?) você é tão bonita e novinha, e embora já seja um pedaço de mau caminho, não tem nenhuma confiança em si mesma(.) acertei(?) ----, me senti novamente ingressando na idade madura dos trinta e poucos anos, um Dorian Gray cujo retrato secreto estava encerrado em si mesmo, pintado pelos danos impostos a cem mil nervos. ----- E você, como um idiota míope que também escreve contos, tem confiança até demais em si mesmo(.) ----, eu já podia capturar o odor do fato e perceber a mim e a ela como amantes que logo estariam se impregnando de ritmos e reflexos mútuos sobre o tapete branco. ----- ''A confiança nasce do conhecimento'', Bruce Lee(.) ----, uma espécie de tato com muitas ramificações no desejo de Beatriz de que eu voltasse para pousada com ela e Carmen e uma trama de preocupações articiais momentâneas estava dando áquela sala parcamente iluminada pelo sol da tarde um ar insalubre de conspiração amorosa proibida. O hábito da lascívia é muitas vezes algo paralisante diante de uma jovem dama reservada e alerta aos mínimos detalhes como Carmen, e a intimidade verbal nascente entre nós naquele momento era algo que não me satisfazia de jeito nenhum. Os móveis eram belamente harmonizados naquela sala onde o vime e o veludo alaranjado predominavam, era uma sala impossível de se escandalizar com um simples ato sexual furtivo e as magnólias começavam a florir nos canteiros das janelas amplas da frente. Fui relativamente paternal, reminescente e comovente para convence-la a baixar a guarda e se entregar. Carmen deixou que eu tirasse suas roupas e, sentindo-se prontamente excitada, acabou junto comigo no tapete, como previ. Mais tarde, após um cigarro e um pouco de licor 43, deixou que eu me arrojasse mais uma vez nas dilatadas amplitudes medianas dela. O verão se encarregaria de esmagar todas aquelas conjecturas sobre o futuro da nossa vida amorosa e nos arrastaria para um mar onde haveria uma série de casais uns iguais aos outros na praia do Farol da Barra parecendo á distância, pela janela do apartamento, um fio de contas coloridas ---- espelhados na parede do corredor, os compactos cones cor de vinho das plantas que eu tinha notado ao hesitar diante da porta do elevador do edifício Oceania tinham se desprendido e expandido com a primeira semana realmente quente de dezembro de 2013 ----- mitras papais de flores ---- aquelas plantas haviam murchado e morrido, e suas grinaldas de noivado caíram e se empoeiraram ao lado dos caminhos e das entradas da garagem ---- Carmen estava com uma leve queimadura de sol no lado direito da testa e se aventurou á sair ás três e meia da tarde com um chapéu de abas enormes para comprar cigarros e cerveja gelada. Entrou no chuveiro assim que voltou, encharcada de suor e ofegante ---- Beatriz telefonou e disse que só chegaria ás nove da noite, e que eu a esperasse se fosse possível --- á noite, a Flecha, a mais elegante das constelações, voava no céu sem se mover entre o Cisne e a Águia, gigantescos aviões de pedras preciosas cujos pilotos eram Deneb e Altair. A Via-Láctea vagueava como uma corda de roupas no céu esbranquiçado pelo calor. Milhares de festas privadas esparsas brotavam simultaneamente na noite escaldante de Salvador, organizadas com dificuldade e usura, urtigas sociais ---- noite esbranquiçada pelo horário de verão ---- festas mistas de sobrados no curto-circuito Barra-Ondina ---- meios casais queimados de sol ---- molho fumegante de pratos italianos nas cantinas da Barra ---- mariscos crus e cheiro de batom ---- pizzas compradas feitas e xingamentos na rua ----- trios elétricos e crianças esquecidas na areia da praia embaladas pelo clarão azul da televisão e fones de ouvido ----- sim, parece-me como um desses jogos que incluem psicologia e sociologia numa caixa de papelão de trinta reais, poderia ser chamado de ''Teatro'' ---- tudo o que éramos reduzido á uma molécula cujas derivações menores da forma clássica da cadeia gigante de proteínas recaptura (como todos os desvios de forma clássica) alguma cabeça encolhida, retorcida, de um íon das contradições e possibilidades que foram outrora um ser humano, um general dos exércitos de suas células, Deus de seu corpo-universo. Mas agora eu vou, o vórtice não pára, os ventos do turbilhão ---- a rotação de Deus, novamente(?) ----- estão carregados de consequências ---- e eu afundo ou vôo(?) ----- todos os vetores desapareceram, enquanto no centro de mim, claro como o olho gelado de Hórus, precipito-me para um ponto de não-julgamento contra o caos cheio de objetos de qualquer ego. No curto espaço de tempo entre o estribo e o chão, talvez estivesse pensando nisso e ela pensou em sua cama de casal como um par de óculos pelos quais a cada noite eu esquadrinhava o tecido dos seus sonhos galopando dentro deles á cavalo: Pelas gêmeas transparências dos óculos o cavalo ainda galopa com seu entrançado tumulto de flamas agitadas. Para frente e para trás contra a rotundidade tesa de seu ventre a rainha e suas pernas balançam, ritmicamente avançando e ultrapassando o meu sonho contra seu peito, enquanto á cada chute pontuado por um ágil luzir de cascos ferrados incendeia o olho escondido num angulo oculto da mente fundindo-se como lava pingando.
 
(continua)
KALKI-MAITREYA


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