quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

ORQUIDÁRIO (16)





 

Orquidário (take 2)

----- Queria levar você para conhecer o meu pai, hoje(..) já tinha planejado fazer alguma outra coisa(?) ----, ela perguntou, sem levantar as vistas do jornal, deitada no sofá de camisola preta de rendas após tomar banho. Ela lia os jornais como se aquela esbatida visão do mundo dos outros pudesse de repente mostrar uma saída para nossas vidas, mas ainda acho que era culta demais para acreditar no que lia. Olhei para o suplemento literário que ela estava lendo e disse: ---- Como diria Raymond Chandler: "Há muita hipocrisia social e emocional nos dias de hoje. Adicionem-lhe uma dose generosa de pretenciosismo intelectual e obterão o teor da crítica literária do vosso jornal diário e a zelosa e imbecil atmosfera proposta nos debates em pequenas colunas semanais. São estas as pessoas que produzem best-sellers e ladainhas ensaísticas, tarefas promocionais baseadas numa espécie de atrativo snob e indireto, cuidadosamente escoltadas pelas focas amestradas da fraternidade crítica, e adoravelmente acarinhadas e regadas por determinados e demasiadamente poderosos grupos de pressão, cujo negócio é vender e consagrar a filosofice meritocrática de uma democracia monopolista criminosa e destroçada, embora queiram que pensem que estão a encorajar a cultura e o ''pensamento de direita'' (risos).  Atrasem-se nos vossos pagamentos e verão como são idealistas esses neuro-marketeiros de si mesmo." -----, logo depois completei minha oração dizendo que não ainda nao tinha nada planejado mas que tampouco estava com vontade de conhecer alguém quanto mais o pai dela e que hoje talvez não fosse o dia bom para aquilo e ela me chamou de chato e anti-social. Vi que o suplemento literário era sobre as novas traduções de Jack Kerouac no Brasil e disse á ela: ----- Uma vez perguntaram a opinião de Truman Capotte sobre Jack Kerouac e sabe o que ele respondeu(?) Jack kerouac não é literatura, é datilografia(.) kkk(!!) -----, quase engasguei com o café, pensando na cara de alguns fãs de Kerouac ouvindo isso. Complementei: ----- Está sendo bom pra mim ficar com meu cachorro de tarde ouvindo música e treinando kung fu(.) ele está velho e abatido, acho que vai morrer em breve(.) fico feliz de ter voltado a tempo de me despedir(.) acha que é realmente uma boa idéia ir conhecer o seu pai hoje, ele já está muito velho, não é(?) -----............................................................................................................................................................................................................................................................................ O pai dela, o Sr. Wagner O´mara, o velho O´mara da família O´mara, embora ainda fosse vivo e lhe fizesse generosos donativos de incalculáveis somas de dinheiro, era um sujeito tão anti-social quanto eu. Além do mais, mesmo que tivesse se apegado á religião nos últimos anos, depois da morte da esposa, era um homem rico demais para ir á Igreja aos Domingos. Enquanto eu tergiversava e diluía no ar o convite para ir conhecer o velho O´mara, ela sentia o elogio dos meus olhos á sua carne dormida esparramada no sofá da sala. -----Quando for assim(...) me peça(...) -----, ela disse. Não entendi muito bem o que ela quis dizer: ----- O quê(?) -----, ela riu maliciosamente e eu entendi ----- Acho que o meu pai sempre foi um homem dominado e sozinho, durante o casamento, só se divertia com o trabalho(.) minha mãe, enquanto foi viva, sempre fez dele o que bem entendia(.) apesar de todo o conservadorismo, meu pai é um homem surpreendente em alguns aspectos(.) queria que você fosse vê-lo comigo hoje á tarde e que depois voltasse para a pousada comigo(.) -----, ela se voltou para mim com uma careta de falsa irritação e com ar de proprietária dos seus pensamentos. ----- Para a pousada, só se eu puder levar meu cachorro comigo(.) -----, ela continuou: ---- Que tal tentarmos nos humanizar um pouco(?) tenho certeza que pode ser divertido tentar(...)  -----, quem sentiu aquele estalo primeiro e quem primeiro tentou explora-lo em proveito próprio(?), eu não saberia dizer, mas ela deve ter ficado assim depois de tanto ler obras sobre quarto caminho e arte da espreita tolteca. ----- A Carmen está dormindo até agora, naquele quarto ali(.) não quer tentar acordar ela pra mim(?) -----, ela disse de repente ----- Ela é sua filha, agora(?) faz parte do processo de humanização(?) cachorro, filha, rs(...) ----- perguntei, curioso e provocativo. ----- Algo assim(.) -----, ela respondeu e eu engoli seco, minhas palavras não foram para ela a água perfumada com a qual lavar a boca antes de responder. ----- Onde ficamos parados com essa novidade(?) ------, perguntei mais uma vez. -----Não sei, ela pediu para ficar comigo na pousada, não se dá bem com a família(.) disse que está muito concentrada no livro de poemas que está escrevendo e que na pousada o pensamento dela flui melhor e que só virá até Salvador de vez em quando e voltaria logo(.) disse que tinha como pagar uma taxa mensal, mas eu disse que não precisava(.) crianças, ela é doidinha, rs(...) ------ CORTA: por volta das três da tarde, estávamos já os três (eu, Beatriz e Carmen) parados diante do portão de entrada da mansão-edifício do qual os O´mara ocupavam a cobertura no Corredor da Vitória. Na verdade, atualmente o velho morava sozinho com um batalhão de empregados e enfermeiros que se revezavam durante o dia e a noite. Eu já havia passado mais da metade do dia longe do meu cachorro e dos meus livros e isso subitamente começou a me fazer suar frio. Para piorar, eu ainda teria que conhecer e conversar com o velho O´mara, o que era apenas uma questão de tempo, mas pedi á Beatriz para me apresentar como namorado de Carmen e não dela mesma. Só que não foi fácil convencê-la inopinadamente de última hora, com Carmen á nossa frente ouvindo e rindo de tudo. Atravessamos a entrada principal do edifício-mansão com guarita dos dois lados e altas grades pretas com setas douradas no fim e entramos no elevador que abria diretamente na sala principal do apartamento. Estavam pendurados inúmeros quadros nas paredes, a maioria retratos. Havia um par de estátuas e diversas armaduras escurecidas pelo tempo, sobre pedestais de madeira também escura. Em cima da gigantesca estante de mármore, havia duas bandeirolas de cavalaria cruzadas (com buracos de balas ou roídas por traças) dentro de uma caixa de vidro. Por baixo estava pendurado o retrato de um homem magro, de olhar enérgico, barba preta e bigode, com um uniforme de gala do tempo do Brasil-Império. Só podia ser um ancestral inglês do velho O´mara. Afinal, por mais velho que fosse, não podia ser tão velho assim. Uma empregada vestida á caráter saiu da cozinha naquele instante e disse que o Sr. O´mara estava no orquidário, na parte externa da cobertura, e pediu que nós a acompanhássemos até lá. Saímos por uma porta francesa ao fim do corredor e atravessamos uma porta de vidro roliça até a área externa. A vista da Baía de Todos Os Santos dali era absolutamente hipnótica e deslumbrante, havia teleféricos e escadas ligando o apartamento do Sr. O´mara e o edifício-mansão á praia embaixo, com barcos, caiaques e jet-skys estacionados como se fosse uma praia particular. Atravessamos um pequeno gramado japonês e entramos num imenso pavilhão de vidro. A empregada abriu a porta e nós passamos abaixando um pouco a cabeça. O calor era sufocante ali dentro, o ar parecia fumegar áquela hora da tarde. As paredes e o teto de vidro daquela estufa pareciam gotejar. Á meia-luz, enormes plantas tropicais estendiam suas flores e seus galhos por toda parte. O cheiro era quase tão opressivo quanto o de álcóol fervendo. Íamos afastando os galhos das plantas com os braços para poder avançar, e finalmente chegamos á uma clareira no meio da estufa. Um tapete turco avermelhado estava estendido sobre as lajes hexagonais. No centro do tapete, sentado numa cadeira de rodas metálica e motorizada e com uma toalha branca aberta sobre o colo, um homem já muito idoso observava nossa aproximação. A única coisa viva em seu rosto eram os olhos. Olhos negros, profundos, brilhantes, alertas, assustadores. O resto do rosto era uma máscara mortuária, com as têmporas afundadas, o nariz afilado, os lóbulos das orelhas saltadas, a boca que parecia apenas um risco ainda mais branco que as faces. Ele estava vestido em parte com um roupão vermelho e puído e em parte com uma camisa branca muito fina. As mãos, com as unhas arroxeadas, agarravam frouxamente a toalha, completamente imóveis. Havia alguns fios de cabelos brancos dispersos em sua cabeça. Após beijá-lo e abraçá-lo efusivamente, Beatriz disse: ----- Esse é o amigo de que falei com você, papai(!) -----, o velho olhou-me atentamente. Algum tempo se passou antes que uma voz aguda e autoritária dissesse: ----- Arrumem uma cadeira para ele, meninas(.) andem(!) -----, Beatriz e a empregada voltaram lá de dentro com três cadeiras de vime e eu me sentei numa delas. ---- Bebe alguma coisa, rapaz (?) ----, o Sr. O´mara me perguntou. ---- Qualquer coisa gelalada, que nao seja cerveja(.) -----, o Sr. O´mara soltou uma risada curta e desdenhosa. A empregada afastou-se, enquanto o velho continuou olhando para mim, enquanto Carmen e Beatriz acendiam seus respectivos cigarros, admiravam as flores da estufa e conversavam alguma outra coisa paralelamente que meus ouvidos não alcançavam. O velho praticamente não piscava os olhos. Depois soltou outra risada brusca e disse: ----- Eu sempre tomo conhaque com champagne(.) um terço de conhaque e o champagne por cima, tão frio quanto eu mesmo(.) mais frio até, eu diria, se é que isso é possível(.) -----, o velho parecia estar querendo fazer ou dizer alguma coisa para me deixar assustado e imediatamente isso me fez refletir sobre que tipo de coisa Beatriz, sua filha caçula e a única que ainda lhe aturava e amava de verdade, teria dito á ele sobre mim ou sobre a relação que ela mantinha comigo. Apesar do nosso acordo de última hora, em momento nenhum ela me apresentou ao velho O´mara como namorado de Carmen. De repente, um ruído estranho saiu da garganta do velho (que parecia ser uma nova gargalhada) e ele acrescentou: ----- Não precisa ficar com medo de mim, garoto(.) se a minha filha gosta de você, é porque você deve estar fazendo bem á ela, é porque seu truque está melhor que o dos outros(.) além do mais, não sou tão frio assim, he he(...) pode fumar, se quiser (.) ----, agradeci e disse que fumava muito pouco e que não estava com vontade de fumar naquele momento. Meu rosto começou a pingar de tanto suor. ----- Pode tirar a camisa(.) todo mundo tira, quando vem até aqui(...) mas as orquídeas precisam de calor, como os homens velhos e doentes(.) Beatriz me disse que você é escritor---- , e para mim, sinceramente, ela já tinha dito demais, pensei, enquanto o velho O´mara completava: ----- Apenas alguma coisa que ouvi dizer a seu respeito(.) ----, os olhinhos de cobra não se afastavam do meu rosto, e devem ter captado a minha sensação de mal-estar. ---- Escrevo nas horas vagas, quando estou com a corda dada(.) ----- para um velho engenheiro de sucesso, sócio-majoritário numa das maiores empreiteiras do país e podre de tão rico, aquilo devia soar como uma piada de mau gosto, sua filhinha caçula desposada por um... ''escritor''. De onde Beatriz tirou que aquele velho ranzinza poderia gostar de mim ou que tipo de ''humanização'' aquele contato poderia nos proporcionar era para mim um mistério. A empregada voltou antes que o velho O´mara pudesse fazer qualquer comentário, empurrando um carrinho metálico de bebidas e gelo no meio daquela selva intrincada. Deixou ao meu lado, preparou-me um troço qualquer com soda e depois saiu. Tomei um gole e disse de novo: ---- Apenas nas horas vagas, quando estou com a corda dada(...) escrevo como um bom lutador, humildemente (.) ----, eu disse, e sorri cinicamente para o velho. ---- Já sei de tudo isso, meu jovem(.) apesar da minha idade, sei navegar na Internet e tenho total conhecimento do tipo de coisas que você escreve e de quem é você(.) minha filha não guarda segredos para com seu velho pai, além do mais gostei de alguns dos seus contos, apesar de não entender muito sobre literatura(.) sei muito bem como você vive solto no mundo e não me importo absolutamente(.) se você é feliz assim, não vejo porque a opinião de um velho doente e sozinho poderia te fazer mudar de idéia, nem perderei meu tempo te oferecendo um emprego na minha empresa, pois já convivi com gente como você no passado e sei que é inútil tentar modificar esse tipo de indivíduo genioso e radical(.) -----, arregalei os olhos de espanto. Os dedos do velho O´mara sacudiram ligeiramente a ponta da toalha e sua cabeça mexeu-se talvez um centímetro apenas, achei que ele estava abaixando um pouco a guarda diante de mim ou tentando fazer algum tipo de média que nos aproximasse intimamente. Então o velho disse, pausadamente: ---- Provavelmente já estou falando demais para minha saúde, mas queria te contar a história de um sujeito que conheci nos meus tempos de universidade(...) sou deficiente físico, minhas duas pernas estão paralíticas e uma parte dos meus intestinos não funciona, quase não como, durmo muito pouco, estou cansado de mim mesmo e sei que sou um incômodo para todo mundo(...) portanto, deixe-me aproveitar a oportunidade para recordar uma pequena história que nunca saiu da minha cabeça ao longo de todos esses anos, mas que tampouco andei lembrando por aí com quem quer que seja, acho que tem uns quarenta anos que não toco no nome de Antônio Yeager com ninguém(.) 


----- ESCURECIMENTO. ----- Antônio Yeager passou a vida de estudante com um grupo criativo de jovens talentos universitários que consideravam a poesia experimental uma moda vanguardista naquele verão de 1943(...) sentia no fundo de si mesmo certa integridade, um sentimento que lhe dava a certeza de que iria pintar muitas telas e estampar a mentira na qual nosso país vivia mergulhado com sua arte, que levaria desse modo a beleza a um milhão de pessoas que nunca havia conhecido, que ajudaria a formar as pessoas, deixaria nelas uma marca contra a ignorância e a mediocridade, arrancaria delas a pretensão e diria: ''obrigado por falsificar e vulgarizar, mas o brilho da mentira agora está brilhando muito acima de tudo isso ............................................--- ao odiar tudo isso, Antônio estava a meu ver se afirmando, pois estava naquele ponto de ingenuidade em que sentia que era o único ser humano no planeta a ter visto já uma favela de perto ou reconhecido a mentira na voz de um político(.) Antônio Yeager tinha chegado á universidade cheio de indagações, mas ainda era jovem e entusiasta: mais tarde, ele próprio diria -''pretendia pintar mas acabei tendo que ir vender refrescos numa lanchonete da Avenida 07 de Setembro e deixei crescer a barba por conta disso'' - foi nessa época que se ligou á uma revista literária independente aqui da capital, em meados dos anos quarenta. --- ''A gente pára de acreditar em Deus aos dezessete e no comunismo aos vinte e sete'' --- eu não saberia dizer direito que diabos aconteceu com ele, pois ele nunca nos falou sobre sua família e vivia como se nunca tivesse tido uma, mas o fato é que recusava veementemente todas as formas de ajuda que nós os seus amigos lhe oferecíamos -- do dia para a noite, tornou-se o artista mais talentoso da universidade e participou de manifestações de rua antes de decretarem o fim do Estado Novo -- escreveu um conto que provocou a suspensão da revista por seis meses - mas suas posições não eram exatamente intelectuais, e sim emocionais(.) nesses dias era comum escuta-lo dizer que ''a única coisa infinita que há no homem é sua vaidade e não Deus'' - gostava de andar pelas ruas de tardinha e á noite, ver e sentir as pessoas do povo com os próprios sentidos - pintava muito, lia muitos livros de crítica de arte e por isso sua pintura era sempre consciente e articulada: era um dos poucos artistas da cidade naqueles dias que sabiam explicar claramente seu trabalho, em público ou em algum jornal -sem dúvida, suas telas progrediam, ele acreditava em si mesmo e em mais nada, eu admirava isso - no último ano da universidade, contudo, iria acreditar em alguém: numa festa, conheceu uma garota chamada Luísa - bebeu-se muito - e acabou dormindo com ela naquela noite - e acabaram conhecendo-se muito bem na sequencia - : a paixão intelectual ramifica-se em suas implicações, mas a do artista cresce com elas. - Luísa tornou-se para Antônio Yeager um absoluto e, sob muitos aspectos - já que ela era bela, intensa e inteligente, e portanto era como a imagem que Antônio fazia de si mesmo (a imagem do artista) ----, ele também decidiu que se tornaria um absoluto para aquela moça. - chegaram desde logo á um acordo, pois Luísa tinha outros amantes além de Antônio Yeager: o acordo foi recebido com espírito saudável por ele, por uma melhor compreensão das coisas(.) ---- CORTA(:) -


--- Bem, é um tanto estranha essa última parte, ainda mais naquela época(...) -----, eu disse, olhando nos olhos do velho O´mara que já estava ficando ofegante de tanto falar. ---- Cale-se(!) você é apenas um rapazinho para mim e por isso sinto toda a liberdade para tratá-lo rudemente(.) ----, eu ri, mas Beatriz repreendeu docemente seu velho e rabugento pai perguntando se ele já não tinha feito esforços demais por hoje e se aquele assunto do seu antigo amigo Antônio Yeager não estava lhe fazendo mau. ----- Não está me fazendo mau lembrar do meu velho amigo Antônio, ora(!) -----


 ESCURECIMENTO. ----- ''Não posso pintar(...)'' ----, disse Luísa um dia á Antônio. ----''Não componho e não escrevo tão bem quanto gostaria(.) você precisa compreender, Antônio ----, de certa maneira, ele compreendeu aquilo na época, enquanto eram apenas amantes, mas depois de um tempo estavam casados e Luísa ainda não tinha modificado seu jeito de pensar e agir. Antônio foi visto pelos bares bebendo demais e falando com qualquer um que aparecesse na sua frente coisas como -gente desse tipo é o que não falta - e eu disse isso para ela, você não pode saber como é isso, Luísa -engraçadinha - eu não tolero isso de mulher nenhuma - depois que me fizeram, jogaram a forma fora - bem, depois disso ela ficou mais dócil(...) '' ----, bater nervosamente os cigarros na unha do polegar, esperar, esperar o vendaval se dissolver na noite, não sei, todos ficavam com preocupados quando o viam assim, pois dava nos nervos de todo mundo e assustava a gente que não tinha se casado ainda- gostaria profundamente de ter podido fazer alguma coisa para ajudá-lo, na época, além de comprar os cigarros importados que gostávamos de fumar juntos quando ele me convidava para tomar alguma coisa com ele e Luísa no seu apartamento - ''Estes cigarros têm um gosto bom, quero dizer, a gente fuma eles todos e o gosto é o mesmo, e então talvez a gente encontre um de que realmente goste''----, pobre Antônio Yeager(!) - eu entendia o que ele queria dizer quando se revoltava com a esposa ---- ''Bem, eu gosto do meu rosto, viu, Luísa(?), e não quero que ele seja deformado por esse caco de vidro que você tem na mão(.), há garotas na minha terra que gostam muito dele(.)'' ---- Durante algum tempo, o velho Antônio ainda resistiu bravamente áquilo, pois começou a trabalhar no Departamento de Obras Públicas da Prefeitura. Mas ele e Luísa estavam perdendo alguma coisa a cada dia que passava --- os homens já não estavam mais tão interessados em conquista-la ou mesmo em leva-la para a cama - ninguém mais do nosso antigo grupo de amigos considerava Antônio e Luísa pessoas inteligentes e talentosas - para Antônio, ela se tornou a última tábua de um naufrágio: geralmente fazia sexo com ela de uma forma que isso ficava evidente, como se em cada respiração sentisse a premência da última penetração na carne de Luísa - tentavam prolongar tudo, incapazes de acreditar em mais nada(.) - foi nessa altura que ele começou a escrever sua auto-biografia - aceitou um emprego de desenhista e trabalhou durante meses naquele livro sombrio e amorfo - de fato, passaram a viver muito melhor e a morar bem e jantar fora várias noites por semana - Mas Antônio já não sentia nenhuma vontade de pintar... para compensar, trabalhava constantemente no seu livro - ''Não sei, Antônio, acho que estamos ficando podres(.)''----, Luísa disse numa certa noite. Parece que não acreditar em nada tinha deixado de ser um comportamento revigorante ou reconfortante e revelou-se de repente pura vaidade e egoísmo, entre os dois - no escritório de arquitetura, os dias passavam cada vez mais lentamente para Antônio Yeager - na maioria das manhãs, fazia uma careta ao acordar- compreendeu rapidamente que Luísa estava ressentida com ele, achava que Antônio tinha se vendido. Mas ao mesmo tempo, se confessava cansada de viver sem dinheiro. O fato era que a arte era o que mantinha os dois unidos - uma noite estavam bebendo num bar com um amigo de Antônio e depois de se embriagarem silenciosamente com coquetéis esse amigo começou a cantar ''Somos aqueles que querem morrer'' em alto e bom som no meio do bar . ---- ''Mande esse idiota calar a boca(!)'' ----, Luísa exclamou de repente para Antônio - Luísa então teve uma atitude inesperada. ---- Não bata nele, Luísa(!) -----, gritou Antônio, então Luísa olhou dentro dos olhos dele e começou a chorar. ----- ''Vamos embora pra casa'' ---- disse Antônio ---- ''se não formos, chegarei atrasado amanhã no escritório(...)''' ----- Parece Eliot isso ---- completou seu amigo ----- ''se não formos embora agora chegarei atrasado amanha no escritório''(...) parece Eliot, não(?) ----Antonio ignorou seu amigo uma vez mais e se voltou para Luísa: ---- ''Muito bem, meu amor, não foi de todo mal dar-lhe umas pancadas(...)'' ---- e tirou um dos sapatos com irritação no meio da rua ---- ''Mas a verdade é que já não sou mais um artista, ele tem razão(...) não se pode pintar estando assim, não é(?)'' ----, respirou profundamente --- com cada vez maior empenho, Antônio trabalhava nas plantas dos edifícios de apartamentos, ou encontrava uma mulher qualquer que lhe atraía e ia para a cama com ela, ou mesmo tentava pintar inutilmente, sentindo a raiva crescer em seu peito á medida que a tinta se acumulava na tela, até o momento em que aquilo que desejava expressar nao predominava de jeito nenhum sobre o que havia expressado de fato, e destruía o quadro. Estavam chegando ao ponto em que faltava muito pouco para o último impulso que os separasse: já haviam rompido várias vezes, mas em todas as ocasiões, receosos do passo do sensualismo decadente para o cinismo derradeiro e irrevogável, voltavam. Mas já não havia mais nada que segurasse aquilo. ----- O que está acontecendo, Luísa(?) ----, perguntou Antônio ---- Vá para o inferno, Antônio(!) ---- ela acendeu um cigarro. ---- O que se passa desta vez , diga logo(.) ---- deixou cair cinza no colo do vestido ----- ''Não sei, Antônio, acho que agora estamos definitivamente podres(.)'' ---- ele sentou na poltrona e respirou fundo mais uma vez ---- ''Ainda não acho que estamos podres(.) passamos por muitas coisas juntos, acho que duas pessoas talvez se esgotem mutuamente uma á outra depois de um tempo(.) talvez tenha chegado a hora de colocar um ponto final na nossa história(.)'' ---- Está certo ----, disse Luísa ---- Eu nunca fui mesmo muito criativa, sempre fui uma p......(.) ----- Não quiz dizer isso, Luísa(.) -----, Antônio Yeager fez muitas depois coisas da separação definitiva: deixou o emprego, mudou de endereço e concluiu sua autobiografia(.) ----- UM ARTISTA EM TRÂNSITO ---- , era um livro escrito com raiva, publicado por uma pequena editora independente. Pensou em voltar a pintar, mas aquilo lhe pareceu imediatamente uma piada de mau gosto - passou cerca de um ano pulando de um emprego para o outro -analisava profundamente a própria vida, nestes dias, e poucos ainda tinham algum contato com ele, eu (O´mara) era um deles- dizia sentir alguns acessos á outros caminhos completamente bloqueados, por haver ignorado alguns sinais de tráfego ao longo da vida, parando quando deveria ter seguido em frente. Então pensou em Luísa: se os dois tivessem acreditado em alguma coisa fora deles mesmos, tudo ainda estaria bem, mas tudo foi se tornando motivo de distanciamento entre eles, até que forma e matéria nao coincidiam mais em nada. Tinham tentado se manter unidos única e exclusivamente pelo estilo de vida, e como em suas vidas não haviam acreditado em nada exterior á eles mesmos, nunca lhes pareceu que o que estava em jogo valesse a colisão de um esforço qualquer em outra direção. De alguma forma, Antônio sentiu que era necessário morrer para tudo aquilo que havia deixado para trás - a partir daí, tudo que se sabe sobre Antônio Yeager são lendas: que se casou com uma milionária austríaca, que se retirou para as montanhas de Monte Santo, que viajou para a Amazônia e voltou com várias outras identidades, etc - na minha opinião particular, penso que Antonio ingressou numa loja de ocultismo e á medida que ascendeu na hierarquia iniciática da loja foi acumulando encargos e missões tão elevados que tornaram sua existência visível praticamente impossível dentro do mundo, daí a ambiguidade e confusão das informações sobre seu paradeiro e identidade, ele simplesmente havia percorrido a ponte que leva do materialismo decadente do nosso tempo ao misticismo e nisto encontrou a necessidade de cerrar as portas do passado atrás de si e optar por um labirinto de sombras biográficas que desnorteiam qualquer um que tente se aproximar dele de forma inapropriada. ----- ESCURECIMENTO. -----, (...) 


-----Mas o que de fato aconteceu com ele, Sr. O´mara(?) ----, perguntei ao velho, antes de acender meu primeiro cigarro desde que tinha entrado no edifício-mansão. ----- Uma noite pegou o carro e saiu de casa(.) é tudo que sei(.) desde então, ninguém mais teve qualquer noticia dele(.) se ele se cansou de sua mulher idiota ou se estava já querendo outra mulher, ninguém sabe e isso não é problema meu(...) sabe, ele costumava vir até este orquidário logo depois que me casei com a mãe de Beatriz, o orquidário já existia no tempo do meu pai(...) passava bastante tempo aqui em minha companhia, fumando e falando das suas recentes leituras místicas: Ellemire Zollá, René Guenón, Jacob Boheme, etc(..) foi então que comecei a suspeitar que tinha se ligado á uma ''loja''(...) de fato, -----, o rosto pálido do velho agora estava quase rosado de tanto cansaço. Os olhos pretos pareciam ainda mais brilhantes, mas não achei que ele estivesse a ponto de chorar. Ele recostou-se lentamente na cadeira de rodas e fechou os olhos. Tomei quase todo meu drink num só gole prolongado, depois disse: ----- Obrigado pelo conhaque com soda, Sr. O´mara(...) estava simplesmente.... horrível(.) porque o Sr. me contou toda essa estória, Sr. O´mara(?)  -----, perguntei, depois que o velho reabriu os olhos e que me certifiquei de que Beatriz e Carmen continuavam do lado de fora do pavilhão de vidro do orquidário, enquanto o velho ranzinza concluía sua estória. ----- Cale-se, garoto(!!) você é só um pirralho que não sabe nada da vida(.) algum dia se lembrará da minha estória e do meu amigo Antônio Yeager e espero que possa fazer um bom proveito dela(.) ----, depois o velho me pediu que levantasse e empurrasse sua cadeira de rodas para fora dali, não tinha forças nem para dirigi-la com o controle remoto. ---- Quero ver Beatriz, ande logo(!) quero ver minha menininha(.)






K.M.

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