terça-feira, 17 de dezembro de 2013

SUMÁRIO -




NA RECEPÇÃO (1)






GRUPO DE TRABALHO (2)






GRUPO DE TRABALHO (2.1)






GRUPO DE TRABALHO (2.2)






CURRUTELA (3)






EXTREMOS INATINGÍVEIS (4)






ESTÁGIO DE TRÂNSITO (5)






COMO NO INFERNO (6)






VÊNUS DE LESBOS (7)







EQUAÇÃO-TÓXICA (8)






ESTRANHOS EMBORA ÍNTIMOS (9)






OLHO DA CÂMERA (10)






CONTRA A PAREDE (11)






NIGREDO (12)






ALBEDO (13)






RUBEDO (14)






LOBBY LADY (15)






ORQUIDÁRIO (16)






O ADEPTO (17)




FIM

A modernidade em Baudelaire



A definição de modernidade para Baudelaire

Segundo o filósofo Walter Benjamim, Baudelaire é o primeiro poeta a trabalhar em sua obra a crise e os constrastes da modernidade capitalista e industrial.
Em seu ensaio "Le peintre de la vie moderna" que foi dedicado ao pintor Constantin Guys por quem Baudelaire não esconde admiração e não poupa elogios à sua arte, vemos a demonstração mais clara do conceito de modernidade em Baudelaire quando ele afirma que o artista, ou melhor, como ele recoloca , o homem do mundo, ou seja aquele que não está submetido à uma área específica , mas que se interessa e aprecia assuntos do mundo inteiro (assim ele define Guys); retira da moda atual e de seu momento histórico o que tem de poético, portanto, retira do transitório o que tem de eterno para alcançar a essência do belo.
 

 "A modernidade é o transitório,o efêmero,o contigente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável"


 Baudelaire não foi entendido por sua época sendo pouco lido e tendo alguns de seu poemas proibidos.

 

 Talvez, porque tenha provocado na sociedade um certo horror por representar com muita maestria o choque que a modernidade capitalista e industrial causou em seu tempo.



 Uniu o clássico com o moderno, denunciou por meio de uma dualidade sempre presente em seus poemas (pois para ele a modernidade está ligada à noção de conflitos) os constrastes sociais de sua cidade, aproximando a arte da vida, promovendo importantes reflexões que ecoam até os dias de hoje.


Bibliografia:
BAUDELAIRE, Charles. "O pintor da vida moderna". In: Obras Completas


Por:
Lúcia R. R. (DRE 086210714) e Taáte P. Tomaz Silva (DRE 107369090)

 
 

 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O insondável mar de energia do qual emerge o mundo que percebemos


 
Nova evidência parece confirmar o proposto pela teoria das cordas: existe um vibrante mundo oculto na profundidade da matéria, o qual afeta a realidade macroscópica que percebemos.

We are like islands in the sea, separate on the surface but connected in the deep. — William James

¿Qué río es éste
por el cual corre el Ganges?
¿Que río es éste cuya fuente es inconcebible? – Jorge Luis Borges


La raíz del loto es el agua toda

Uma nova teoria sugere que por trás das coisas, do mundo das aparências e dos objetos, jaz um mar de energia radiante onde inclusive as partículas atômicas se diluem em uma unidade holográfica. Desde o início da física quântica foi observado uma espécie de carreira intra-espacial para chegar ao fundo da matéria e definir um limite: um ladrilho fundamental (building block) do qual tudo se constrói. Esta empresa atômica é a essência da ciência: segmentar um fenômeno até seu mais mínimo denominador para poder analisá-lo como uma entidade separada. Mas o que sucederia se não existissem as entidades separadas, se as partículas e os fenômenos que integram fossem apenas uma percepção superficial de uma realidade mais profunda, como uma onda em um mar sem fundo? Provavelmente nos veríamos abrumados, como em uma miragem que mistura o limite entre o céu e a terra. Ao mesmo tempo em que estaríamos nos aproximando de um entendimento mais profundo da matéria - nos aproximando talvez, á crista da sede de totalidade, ao levar a sensação oceânica do mistiscismo a um corpo de conhecimento científico.

A ciência admite a intuição poética - enquanto a imaginação é o conducto ou a ferramenta epifânica para descobrir ou levantar o véu da natureza e do que ela esconde. Que exista uma unidade subjacente da qual emergem os fenômenos que percebemos como a realidade é algo que foi proposto por diversas filosofias místicas em diferentes tempos e tradições. Um exemplo é o conceito de vazio e ilusão do hinduismo que foi tomado por Arthur Schopenhauer para conceber seu sistema baseado em um Mundo de Vontade e um Mundo de Representação. A filosofia de Schopenhauer tem seu avatar na física com a Ordem Implicada e a Ordem Explicada proposta por David Bohm


...em parte como uma forma de conciliar irregularidades entre a física quântica e a da relatividade, mas também a partir da influência do pensamento oriental, especificamente de Krishnamurti, com quem travou uma larga amizade. Sondando a profundidade interior do espaço - as variáveis ocultas - ,Bohm utilizou a metáfora do holograma para comunicar a natureza incomensurável da matéria em sua ordem implicada: que cada partícula e cada fenômeno eram na realidade apenas uma representação da totalidade, sulcando o espaço -tempo como ondas de água na superfície de um estanque. ''Proponho que cada momento no tempo é uma projeção da Ordem Implicada Total''.

A teoria quântica adverte que existem campos de energia que permeiam o universo, os quais se comportam em ocasiões como partículas e em outras como ondas. Nova evidência sugere que as partículas e as ondas que medimos são somente a manifestação superficial do mar e das ondas e as partículas a turbulência nessa superfície. Cientistas de Harvard e da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara consideram que o nível superficial de descrição do mundo sub-atômico já não é suficiente para descrever todos os fenômenos. Estudando uma estranha forma de matéria conhecida como ''cuprates'' - metais que contém cobre e que exibem a propriedade de super-condutividade em altas temperaturas - , concluíram que a matéria sub-atômica parece estar refletindo uma série de propriedades mais profundas, que poderiam estar ''vibrando'' em outras dimensões, em sintonia com os postulados da teoria das cordas.

Cuprates sob o microscópio
  
Esta correspondência multidimensional de eventos foi demonstrada pelo físico Juan Maldacena, quem logrou correlacionar matematicamente eventos diferentes sucedendo-se em 3-D com eventos em regiões de 2-D (eventos em 4-D correspondem a eventos em 3-D e eventos em 5-D com eventos em 4-D, e assim sucessivamente). Segundo este modelo a massa e as propriedades macroscópicas correspondem á vibrações e interações de diferentes formas de matéria (possivelmente a espectral matéria escura) e forças que surgem das conexões das cordas - ás quais vivem dentro desse mar metafórico. Isto se conhece como dualidade holográfica, segundo denominou Maldacena em 1997: a superfície bidimensional deste mar seria descrita pela mecânica quântica; os eventos dentro do mar seriam descritos pela teoria das cordas, se traduziriam matematicamente em eventos na superfície e incluiríam a força da gravidade. Paradoxalmente, quando a superfície do mar imaginário se encontra em calmaria, isto é reflexo de complexidade e agitação interna (a tranquilidade é resultado de uma grande quantidade de energia). A maioria dos objetos materiais têm partículas relativamente estáveis , pelo que ao que parece são o resultado de uma espécie de tormenta interna perfeita.

Materiais como os ''cuprates'' pertencem á categoria de uma forte interação na superfície, até o ponto de perder sua própria individualidade na força de sua correlação. ''Estes efeitos coletivos sumamente complexos da mecânica quântica são belissimamente capturados pela física dos buracos negros'', disse Hong Líu, professor de MIT (Massachussets Instituct of Technology). '' Para os sistemas de forte correlação, se colocas um elétron no sistema, imediatamente ele desaparecerá e já não poderá ser rastreado''. Assim estes elétrons que em alguns casos se comportam como ''ladrilhos de construção'',em outros se comportam como excitações coletivas - mesmas que não podem descrever-se pelos modelos quânticos atuais e poderiam corresponder ás propriedades de buracos negros em dimensõe superiores.

Um teoria da gravidade quântica poderia ter que abandonar a noção de que os constituintes básicos da matéria são partículas, e considerar que os eventos que surgem na superfície do ''mar'' são eventos unidos a uma série de eventos a partir de uma maior profundidade. As implicações filosóficas disto seriam enormes, já que em certo sentido tudo o que ocorre a nossa volta seria a manifestação superficial de um ordem mais profunda, de uma vibração hiperdimensional. O fundo desse mar (do qual surge o mar) é incomensurável, sua fonte é inconcebível.

David Bohm via a relação entrea consciência e amatéria de maneira muito similar á dualidade holográfica: o conteúdo implicado da consciência se manifesta no espaço-tempo como um fenômeno material que guarda relação com a totalidade da qual emerge. Na visão de Bohm, a matéria escura e as supercordas extra-dimensionais seriam articulações da consciência. Segundo o AdvaitaVedanta, a consciência não é uma propriedade do Brahman (o incomensurável, o imutável, deus), mas ésua própria natureza. Não há diferença entre esse mar do qual emerge o mundo e a consciência? Segundo Herr von Welling, com apenas um grão de sal e uma partícula de Pedra Filosofal na água, sepode construir um novo universo; segundo William Blake em um grão de areia se encontra um mundo inteiro:

"Ver o Mundo num Grão de Areia
E o Céu numa Flor Silvestre,
Agarrar o Infinito na palma da mão
E a Eternidade num instante."



 (William Blake)

Dossiê Simenon

 
 


"Simenon é um grande romancista, o maior e o mais verdadeiro da literatura francesa contemporânea." (André Gide)
 



Georges Simenon, considerado por André Gide como "o maior de todos, o mais autêntico romancista da França contemporânea". Nascido em 1903, em Liège, na Bélgica, Simenon foi um dos maiores fenômenos literários de todos os tempos.

Sua capacidade de escrever uma novela em uma ou duas semanas – exatamente em onze dias, segundo ele, – datilografando um capítulo por dia numa média de 92 palavras por minuto, rendeu-lhe a espantosa produção de aproximadamente 420 volumes durante meio século de trabalho. Cerca de 200 destes foram escritos com o único objetivo de ganhar dinheiro e publicados sob vários pseudônimos. O restante, mais de 150 romances e 50 contos (sendo 84 "casos" do inspetor Maigret) são thrillers psicológicos, pequenas novelas de não mais de duzentas páginas, conhecidas pelos leitores europeus como "simenons".

Mas quem foi Simenon? Quem foi esse homem capaz de escrever tanto e tão rapidamente novelas excelentes, a ponto de a crítica reabilitá-lo no seu centenário de nascimento, acariciando-o depois de tê-lo desdenhado por longo tempo por achá-lo um escritor menor, comercial? Quem foi esse homem que produziu romances psicológicos tão densos e profundamente humanos, a ponto de ser comparado a Balzac, Dostoievski e Dickens?

A resposta é difícil. A primeira dificuldade está no excesso que caracteriza o homem que nasceu na Bélgica, foi repórter de jornal provinciano, mudou para Paris com menos de vinte anos, viajou pela Europa e pela África, esteve nas ilhas Galápagos, na Polinésia e na Turquia, e morou nos Estados Unidos e na Suíça.

A segunda dificuldade em dizer se Simenon é um grande artista está na sua popularidade. Desde sempre, seus livros venderam às toneladas. Só os 25 volumes de suas obras (quase) completas venderam mais de 1,5 milhão de exemplares, sem contar as edições avulsas e de bolso. Mundialmente, ele é o sétimo autor mais lido – ganha até de Agatha Christie – tendo vendido mais de 1 bilhão de exemplares. Ao contrário de artistas da escrita, o estilo de Simenon não perde quase nada na tradução. Sua fluidez e vocabulário são facilmente adaptáveis a outros idiomas.

Seus livros deram origem a 56 filmes, feitos entre 1932 e 1998, que se confundem com a história do cinema francês. Adaptações de sua obra foram dirigidas por Jean Renoir, Marcel Carné e Claude Chabrol e interpretadas por Jean Gabin, Pierre Renoir e Brigitte Bardot. Histórias de crime, policiais e detetives, esses filmes tiveram sempre boa bilheteria. A extrema comunicabilidade da obra de Simenon tem pouco a ver com a noção de grande arte. Pense-se em Proust e Céline, para ficar na França.

A terceira e última dificuldade em se considerar Simenon um romancista sublime está na personalidade do autor, que foi tão excessivo na vida quanto na obra. "Ele era prolixo em tudo: na sua maneira de falar, de escrever, de publicar, de fazer amor", disse Denyse, sua secretária e amante antes de ser sua segunda mulher, com quem teve três filhos. "Nós fazíamos amor todos os dias, três vezes por dia, antes do café da manhã, depois da sesta e antes de dormir".

Depois de poucos anos de casamento com Denyse, Simenon adotou a bigamia, tornando-se amante de sua cozinheira, mas sem abandonar a mulher nem as relações com prostitutas, fãs, jornalistas, arrumadeiras de hotel, garçonetes e qualquer rabo-de-saia que lhe passasse pela frente. Velho, jactou-se de ter feito amor com mais de dez mil mulheres.

Aos vinte anos, Simenon registrou que seu objetivo era "ganhar o máximo de dinheiro possível escrevendo livros fáceis, e depois fazer literatura". Com menos de trinta anos, estava rico, mas continuou a escrever para ganhar dinheiro, que gastava a rodo. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, assinou um contrato milionário, nunca igualado na França: 250 mil euros para cada livro; 15% dos direitos autorais nos primeiros dez mil exemplares vendidos, e, a partir daí, 20%; mais a totalidade dos direitos de publicações no exterior e adaptações cinematográficas.

Simenon não era um intelectual. Abandonou a escola quando tinha dezesseis anos. Menino, parece ter lido os romancistas do século 19: Balzac e Dumas, Dickens e Stevenson, Gogol e Dostoievski. Depois, teria lido Proust e Conrad. E nada dos clássicos, de crítica e história literária, de teoria, de filosofia ou de estética. Jamais ligou para isso, como nunca se interessou por política.

Já a política se interessou por ele: um de seus biógrafos, Pierre Assouline, diz que ele era um "populista conservador" que escreveu artigos anti-semitas no começo dos anos 20, teve um irmão que foi condenado à morte por ter colaborado com os nazistas durante a Ocupação e passou dez anos nos Estados Unidos no pós-guerra por medo de ser processado na França. Os romances sérios e as memórias de Georges Simenon fascinam os críticos. Ele é e será lembrado, contudo, por ter criado o inspetor Jules Maigret, personagem de 84 de seus romances.
 
 
 

O primeiro deles, Pietr le Letton, foi publicado em 1931, quando Simenon tinha 27 anos. O último, Maigret et Monsieur Charles, saiu em 1972, quando o escritor ia completar 70 anos. Nesses quarenta anos, o inspetor Maigret continuou a ser um cinqüentão pacato, modesto, apegado à rotina, que anseia por estar em seu apartamento na hora do jantar, que sua mulher mesmo prepara.

Nessas quatro décadas, houve o fascismo, o stalinismo, a Segunda Guerra Mundial, a Ocupação, Vichy, a Resistência, a Libertação, o gaullismo, a Guerra na Argélia, o Maio de 68, inovações científicas e tecnológicas, a mudança no mundo – e Maigret continuou indo cotidianamente ao número 36 do Quai des Orfèvres, sede da Polícia Judiciária, dar expediente como comissário-chefe, e dela sair para percorrer Paris e a França profunda, medíocre como ele.

Maigret é um detetive singular. Não é particularmente arguto nem dispõe de grandes poderes dedutivos ou intuitivos. É um homem um tanto anódino, até medíocre. Mas ele entende a lama humana, os desejos torpes, os passos em falso de gente comum que, em condições nenhum pouco especiais, pode cometer um assassinato. Maigret não tem idéias nem se interessa pelas alheias. Ele presta atenção aos detalhes, ao que as pessoas fazem.

O crítico Pierre Marcabru diz que Maigret tem dois vícios: o cachimbo e a curiosidade: "Essa curiosidade o faz entrar nos motivos dos outros. Sobretudo nos dos pobres-diabos. Ele se coloca no lugar deles sem tentar compreendê-los e, menos ainda, explicá-los. Ele os aceita. Daí vem a sua simpatia atenciosa pelos criminosos de ocasião, pelas lastimáveis vítimas da fatalidade. Não é sem melancolia que eles os manda para o cadafalso. O mundo é triste, feio, malfeito, desencorajante".

O mundo criado por Simenon, o mundo mecânico e medíocre que impregna a trama mesmo dos romances de Maigret é uma forma de arte. Uma arte aborrecida, cuja trama se esquece dias depois de fechar o livro, mas cujo tom cinzento e frio parece ser o da vida que se levou e, em parte, ainda se leva na França pequeno-burguesa de hoje. Mas para se conhecer a história desse autêntico Maigret existem pelo menos dois livros fundamentais: O homem que não era Maigret, de Patrick Marnham, e O mistério de Georges Simenon, de Fenton Bresler, um advogado inglês e correspondente do "Daily Mail", em Londres.

No seu livro, Bresler promove uma devassa na vida de Simenon, apresentando-o ao público como um homem neurótico, compulsivo e maníaco por escrever e fazer sexo. Quanto a esta última atividade, o autor não prova documentalmente, como no caso da superprodução literária, as dez mil mulheres que Simenon alega haver "conhecido" (8 mil delas prostitutas). Simenon, no entanto, declara ter ultrapassado tal marca com a mesma certeza de quem vendeu milhões de livros no mundo todo e não vendo absurdo algum em tal façanha sexual: "É um número normal, quase banal", diz ele.

As pessoas que conviveram com Simenon descrevem-no como um ser autoritário, antipático e difícil de suportar. Seus relacionamentos e uniões conjugais seriam, geralmente, apenas transações físicas, desprovidas de qualquer sentimento e terminavam ou em divórcios ruidosos ou em separações rancorosas. Sua primeira mulher, Règine, detestava sexo e o casamento ruim de vinte anos finalmente terminou quando ele conheceu Denyse, que era sexualmente voraz. Esse casamento também faliu e Denyse acabou sendo internada em uma clínica, de onde nunca mais saiu – foi lá que escreveu um livro de memórias sobre seu casamento.

Fenton Bresler conta, ainda, que os dois filhos de Simenon teriam abandonado a casa paterna tão logo puderam por ser impossível qualquer tipo de convivência.

Esses fatos não parecem ter ocorrido com o Georges Simenon que passou os últimos anos de sua vida encapsulado num refúgio tranqüilo na Suíça, tendo por companhia a antiga empregada Teresa, que esteve com ele até sua morte. Tampouco faz jus à imaginação popular que o vê como um modelo para o famoso Maigret.

Mas o autor não pretende deixar dúvidas a respeito: a única semelhança entre o Simenon e Maigret é o desempenho, a competência. De resto, Maigret, com sua bondade, senso de justiça, simpatia intuitiva pelos seres humanos e fidelidade a uma mulher é o homem que Simenon jamais teria sido.

Quando começava a escrever um livro, era como se entrasse em transe mediúnico. Não admitia interrupções. Essa escrita obsessiva explica talvez um dos supremos prazeres de Simenon, a sensação que temos, quando o lemos, de que o tempo parou, um ideal místico que as artes de quando em quando satisfazem. Em toda a obra de Simenon a justiça é feita. Esse, o seu tema, inteiramente realizado, é que é um esteio contra o pessimismo incruado da literatura moderna.
 

Quando alugou uma casa grande em Lausanne, uma das empregadas perguntou ao mordomo: "On passe toutes à la casserole?", ou seja, "vamos todas ser passadas na vara?". A resposta foi "sim". Cama a três e a quatro foram freqüentes nos três casamentos de Simenon, que, não custa nada repetir, dizia ter comido mais de dez mil mulheres...

Quando o romance parecia esgotado na totalidade psicológica de Proust e na exploração completa da linguagem de Joyce, Simenon ressuscitou sozinho a narrativa, onde eventos e pessoas são vistas num relance de extrema nitidez, que nos satisfazem perfeitamente como seres humanos e nos provêm o prazer ancestral, pré-histórico, de uma história contada à tribo em volta de uma fogueira. Não é pouca porcaria.

Georges Simenon morreu em Lausanne, França, em 5 de setembro de 1989 e suas cinzas estão espalhadas ao pé de uma árvore que ele amava, em frente à casa cor-de-rosa, na avenida Figuiers, onde morava.




AUTODICITIONNAIRE-

Em Setembro, festejando os vinte anos que passaram sobre a morte do grande escritor belga, saíu, na França, um livro escrito com o que Simenon "disse" e "escreveu", "falou", "comentou": é o seu "Autodictionnaire"(1).

Georges Simenon, esse fenómeno -como diz André Gide...Saíu em Paris o seu "Autodictionnaire" apresentado por Pierre Assouline

A televisão Eurochannel durante o mês de Setembro também homenageou Georges Simenon com um ciclo de filmes sobre o Inspector Maigret



Pierre Assouline é o inventor do tal "autodiccionário": foi ele que teve a ideia, juntou em ficheiros com milhares de páginas tudo o que pôde - tarefa não-fácil, desproporcionada... Como o era o escritor a que se dedica: Exagerado, excessivo em tudo... excepto na feitura dos romances que, esses, têm uma estrutura perfeita, equilibrada..


Não devemos esquecer que Simenon não é só um autor de livros policiais: há os seus romances" duros" -"les romans romans", como ele lhes chama -obras de grande fôlego do dia a dia, das vidas das "pauvres gens" de que tão bem sabia falar.



Simenon é um "fenómeno", o fenómeno Simenon, como lhe chamava o grande André Gide...



Da Wikipedia: "Georges Simenon foi um romancista de uma fecundidade extraordinária: escreveu 192 romances, 158 novelas, alem de obras autobiográficas e numerosos artigos e reportagens sob seu nome e mais 176 romances, dezenas de novelas, contos e artigos sob 27 pseudónimos diferentes. As tiragens acumuladas dos seus livros atingem mais de 500 milhões de exemplares. É o autor belga, e o quarto autor de língua francesa, mais traduzido em todo o mundo. O seu personagem mais famoso é o Comissário Maigret, personagem de 75 novelas e 28 contos."


E quando estava cansado de escrever... começava a escrever uma história com o inspector Maigret, para descansar.

Sim, porque era assim que repousava: escrevendo.

Pierre Assouline, na entrevista que lhe faz a revista francesa, "Nouvel Observateur", falando da figura e biografia "excessivas" de Simenon e do seu extraordinário poder de trabalho conta como André Gide se sentia fascinado com a sua "mecânica narrativa". De facto, devora os seus romances à medida que saem...

"No total, diz Assouline, escreveu 400 romances, (70 do Comissário Maigret), viveu em 33 domicílios diferentes, diz ter tido 10.000 mulheres... "

Recordemos um pouco da biografia e da obra de Simenon:

Quando chega a Paris vindo de Liège, nessa época -os famosos anos 20- aprofunda o seu conhecimento do meio boémio, das prostitutas, dos bêbedos, dos anarquistas, e dos artistas e mesmo futuros assassinos. Frequenta também um grupo de artistas chamados "La Caque", onde encontrara uma estudante de Belas-Artes, Régine Renchon, com quem se casa em 1923.


São os anos da descoberta da grande capital que aprende a amar com as suas desordens, os seus delírios. Parte para a descoberta dos bistrots, brasseries e restaurantes e cabarets, encontrando seus personagens na população parisiense, artesãos, serviçais, pobres das ruas.


Encontra também Joséphine Baker por quem tem uma grande paixão, indo de férias com ela para a ilha de Aix (1927)

Entretanto casara com Tigy segundo ele próprio conta: "para não fazer muitas asneiras..."


Em 1928 faz uma longa viagem de barco, para suas reportagens, descobrindo a água e a navegação, que aparecem sempre em sua obra.

Em 1929 decide fazer uma viagem pela França, explorando os canais num barco que mandou construir, o ‘’Ostrogoth’’, no qual viverá, com Tigy, e a criada, Boule, até 1931.

Em 1930, numa série de novelas escritas para ‘’Detective’’, uma colecção nova criada por Joseph Kessel, aparece pela primeira vez o personagem ‘’Comissário Maigret’’.

Descobre, também, por essa altura, uma paixão pela navegação e por La Rochelle, onde no "Café de la Paix’’, -que aparece em obras suas e se tornaria seu quartel-general- pediu uma garrafa de Champagne ao ouvir a declaração de guerra alemã em 1939; ante ao espanto dos presentes, disse: "ao menos não será bebida pelos alemães".

Passa a morar em La Rochelle, onde nasce seu filho Marc, em 1939, filho de Tigy (Régine, pintora, belga como ele, com quem casara em 1923).

Em 1945, depois do fim da guerra, vai viver nos Estados Unidos, percorrendo nos dez anos seguintes o continente, para saciar sua curiosidade e seu apetite de viver, quase diria, bulimia de viver...


Durante esses anos americanos, visita sempre Nova Iorque, Flórida, Arizona e a Califórnia e toda a costa Leste, milha a milha, os motéis, as estradas e as paisagens grandiosas.

Vai conhecer a sua futura segunda mulher, a canadiana Denyse Quimet, 17 anos mais nova, com a qual vai viver uma paixão intensa de ciúmes, discussõe e álcool.

Denyse que vai ser sua secretária e, depois, mulher e com quem tem 3 filhos: Jean, Marie-Jo e Pierre. Ligação acidentada, violenta, possessiva, doentia. Que continua para lá da separação, com livros escritos pelos dois -vingando-se ("Un oiseau pour le chat", de Denyse Simenon, é um exemplo disso), ofendendo o outro no que escrevem. Que vai marcar o destino da filha, Marie-Jo, muito ligada ao pai e que não aguenta, suicidando-se aos 25 anos

Escreve vários textos autobiográficos, desde "Pedigree".

"Des traces de pas" espécie de diário que começa em em 20 de Setembro de 1973 e acaba a 30 de março de 80 (publicado em 1975, por Presses de la cité)


 

Em 1981, dois anos depois do suicídio da filha, publica

"Mémoires Intimes" (seguidas do "livro de Marie-Jo": cartas, poemas, bilhetes de Marie-Jo escritos ao pai desde Dezembro de 72 até 1978, a última carta, sem data).

No prefácio "carta-dedicatória datada de 16 de Fevereiro de 1980 começa um diálogo (monólogo) com Marie-Jo.

Já no fim da vida conhece a italiana Teresa que vai ser a companheira dedicada, atenciosa, suave, dos últimos anos. Simenon morre a 4 de Setembro de 1989, há vinte anos pois.

No "Nouvel Observateur" de 10-16 de Setembro de 2009, sai essa longa entrevista -que acima referi- com Pierre Assouline, escritor e biógrafo de Simenon ("Simenon"), autor do tal "autodiccionário" de Simenon.


Quando o entrevistador lhe pergunta se também ele, Assouline, é excessivo -tendo em conta o trabalho que fez: as milhares de páginas que teve de ler, cartas, "files", entrevistas ou intervenções que ouviu, cartas inéditas, ficheiros etc. na rádio ou na televisão sem citar a sua [de Assouline] enorme bibliografia, os inúmeros livros publicados, o blog, prefácios e artigos que escreve, etc, Assouline responde:

"Nem pensar: eu escrevo um livro por ano. Ele escrevia cinco. Tudo nele é coerente [na desmedida]: nasceu sob o signo do excesso. Quando fala é durante horas; quando escreve é um livro de 3 em 3 meses e perde 5 kg por livro; quando escreve cartas são 10 por dia; quando ganha dinheiro é uma fortuna; quando é adaptado ao cinema passa a ser o escritor "mais adaptado"...

Não é só Assouline que se "espanta" com este escritor: é o leitor comum que pega num dos seus romances e lê, lê até o acabar, sem largar um momento; é o professor sueco que ensina francês com o livro "Maigret et le clochard" porque considera que nesse livro está tudo o que é preciso para se ficar a saber o essencial do francês falado; são as inúmeras colecções que o publicam nas línguas faladas neste mundo: traduções em dezenas de línguas.....

E é o conhecido e exigente escritor francês, André Gide, que já em 1938 se espanta. E fala de "fenómeno". E refere sua fantástica "mecânica narrativa"dos seus romances. De facto, por causa dessa narrativa, lê os livros de Simenon uns atrás dos outros à medida que vão saindo:

É André Gide que diz na "Correspondência Georges Simenon-André Gide", intitulada: "...sans trop de pudeur, Correspondance 1938-1950" (prefácio e notas de Dominique Fernandez e a edição é curada por Benoït Denis, da Universidade de Liège, Carnets, Omnibus), em carta de 31 de Dezembro de 1938, dirigida a Georges Simenon:

"Todos estes livros [seus] (os que publicou de há dois anos para cá) espantaram-me imenso, especialmente "Le Cheval Blanc" que acabei mesmo ontem à noite e do qual li algumas páginas a Jean Schulemberger e depois a Roger Martin du Gard: as do extraordinário diálogo entre Arbelet e o Tio Felix, que me encantou."


Mais adiante acrescenta, quando lhe diz que planeava escrever um longo artigo sobre Simenon:

"Mas, o que queria dizer, precisamente, no meu artigo [sobre si], é o curioso malentendido que se estabeleceu no que diz respeito a si; passa por um autor popular e a verdade é que não se dirige ao grande público (gros public). Os próprios temas dos seus livros, os mínimos problemas psicológicos que levanta, dirigem-se aos delicados, aos sensíveis; àqueles que, precisamente, pensam, enquanto o não lerem: "Simenon não escreve para nós." E, no meu artigo, quereria dizer-lhes que se enganam..."

Num pequeno dossier com alguns rascunhos de Gide para o tal artigo (que aparecerá nos "Cahiers du Nord, 1, 2 (13º ano -1939)", número dedicado a Simenon, escreve:

"Simenon tem admiradores por toda a parte e mesmo os que se fazem esquisitos e dizem: "Oh, Simenon escreve de mais! (...) desejo declarar que considero Simenon um grande romancista, o maior talvez e o mais verdadeiro que temos hoje em França."

E logo adiante fala dos temas, das personagens escolhidas, as tais "petites gens":


"A horrível mediocridade da vida quotidiana. O esforço desesperado, criminoso para escapar ao aborrecimento (l'ennui), ao cansaço de andar à roda. De repente, um sobressalto fortuito, provocado por quase nada e eis que o autómata sai da pista do seu carroucel. É uma inconsequência que dura apenas um instante, e toda a vida que lhe resta para viver a seguir é para se arrepender. Oh! não nada de arrepemndimento religioso, simplesmente não pode voltar para trás para dentro da sociedade daqueles que continuam a andara à roda como antes."

 

SANGUE NA NEVE -


Terminei está manhã o livro de Georges Simenon, Sangue na Neve, em edição dos anos de 1980, da Nova Fronteira. Em sua contra-capa, o que pode ser lido são as palavras de Otto Maria Carpeaux: um dos romance que "darão um testemunho de nossa época". Simenon, pra quem não oconhece, é um grande escritor de livros policiais, tendo escrito mais de cem deles. Sangue na Neve, porém, não é policial, mas sim uma dura história antiditatorial, e foi escrito em 1948. Não tome o livro, contudo, apenas com um livro político - Simenon sai dessa esfera e nos traz a humanidade na sua forma mais natural.

Temos Frank Friederich, e sua mãe que tem um bordel disfarçado de manicure. Ele, em seus dezenove anos de idade, vive num mundo da pós-segunda guerra, num cenário do centro-leste europeu. Mas poderia ser, perfeitamente um cenário tropical, latino-americano, por que o que acontece à Frank, é uma reação à imposição de ditaduras. Seus crimes, seus dramas, sua frieza...

Ao longo do livro, vamos acompanhnando Frank e seu mundo, sua falta de esperança e credibilidade, e todos os efeitos negativos que são inerentes aos marginalizados de governos extremistas. E nos arrastando pelo livro, cansados com a tortura social que é a vida nestas sociedades, a pergunta desesperadora persiste: há uma solução?

E sem procurar uma resposta, Simenon e seu narrador extremamente subjetivo, vão nos conduzindo a um final estrondoso e agudo, que tira o livro dos idílios que tentamos espelhar nossas vidas, e nos joga na realidade fria como a neve - elemento tão essencial para a história, tão presente ao longo dela.



 

ENTREVISTA -

Entrevista publicada na revista Oitenta, da L e PM Editores, em 1984. Traduzida por Ana Paula de Melo Mendonça


Por Roberto Gervaso
Milão – Georges Simenon, um grande escritor que há meio século é lido em todas as partes do mundo, que é belga e não francês como muitos pensam. Só produz livros de sucesso: não há aventura do seu famoso "inspetor Maigret" que não tenha se tornado best-seller.

Mas não é somente o sucesso comercial que lhe é reconhecido. Há um consenso também em torno da qualidade literária do seu trabalho. "É o mais autêntico romancista da literatura francesa contemporânea", celebrou André Gide. "A sua arte é de uma beleza intolerável", disse Mauriac. Entre os seus leitores mais célebres e mais fanáticos nesses cinqüenta anos estão Mao Tse-tung, Lyndon Johnson, Charles Chaplin, o rei da Suécia, Céline, Maurois, Henry Miller.

Depois de repudiar o seu suntuoso e inacessível retiro de Epalinges, Simenon, embora cada vez mais rico com os incalculáveis direitos autorais que recebe de mais de cem países, decidiu há dez anos morar num pequeno apartamento de poucas peças no centro de Lausanne. Mora com Teresa, sua última mulher, de sangue italiano, com ele há mais de vinte anos, que recorda o que ele esquece, fazendo os contatos com editores e protegendo-o da curiosidade pública.

O "pai da literatura policial feita com arte" ou o "patriarca belga da literatura francesa" produziu em cinqüenta anos mais de quatrocentos volumes. A Universidade de Liége, sua cidade natal, fundou o Centro de Georges Simenon, que recolhe os manuscritos, a interminável correspondência e as edições nas várias línguas das obras do mestre. Este Centro é muito procurado por estudantes de literatura de vários países da Europa que escrevem teses sobre Simenon.

Dizem – e deve ser verdade – que nenhum escritor do mundo recolhe tanto dinheiro em direitos autorais. Dizem também – e também não há por que duvidar – que ninguém teve mais mulheres: cerca de dez mil, contra as cinco mil de Frank Sinatra, as 1,2 mil de John Kennedy, as aproximadamente mil de Don Juan e as 180 ou duzentas (há divergência na cifra) de Casanova.

Aos 76 anos, que não demonstra, sempre a fumar um dos seus vinte cachimbos, usando aparelho para surdez, o copo na mão (cerveja, bordeaux ou chá), passa a maior parte do seu tempo numa das peças do seu pequeno apartamento que serve como estúdio e quarto. Ali, ele dorme, come e dita ao gravador suas inesgotáveis Memórias, num esforço para entregar a própria vida aos pósteros. E, talvez, também aos contemporâneos. À noite, depois do telejornal, antes de se recolher, dedica algumas horas a reler, com o mesmo gosto e a mesma surpresa da primeira vez, os Essais de Montaigne.

Foi ali, no escritório-alcova de Simenon, que o repórter Roberto Gervaso, do Corriere della Sera, de Milão, encontrou-o. Esta foi a conversa entre os dois:
* * * * * * * *

É verdade que você é o autor mais lido, depois de Marx?
SIMENON – Segundo as estatísticas da Unesco, sim. Mas, há outros, além de Marx, mais lidos do que eu.

Quais são?
SIMENON – A Bíblia e Lênin, que são mais lidos do que Marx também.

Onde você tem mais leitores?
SIMENON – Nos Estados Unidos e na União Soviética.

Mais mulheres ou mais homens?
SIMENON – Tomando como ponto de referência as cartas que recebo, é meio a meio.

O que lhe dizem as mulheres nas cartas?
SIMENON – Fazem confidências e pedem conselhos.

E os homens?
SIMENON – Contam-me os seus problemas. São, sobretudo, médicos e psiquiatras.

Mais lido pelos jovens ou pelos menos jovens?
SIMENON – Dos treze aos oitenta anos.

Pelos intelectuais ou pelo homem médio?
SIMENON – Por estes e por aqueles.

Como se desenvolve a sua inspiração literária?
SIMENON – Jamais tive inspiração literária.

Você se define como um artesão, eu sei. Por quê?
SIMENON – Porque eu, efetivamente, trabalho como um artesão. Sento-me à mesa de trabalho – isto é, na poltrona – numa hora determinada, trabalho um determinado tempo e, só depois de cumprir o expediente, me levanto."

Onde termina o artesanato e começa a arte?
SIMENON – É muito difícil dizer.

Por quê?
SIMENON – No artesanato, seguidamente, tem arte, e na arte tem artesanato.

Acredita no estado de graça?
SIMENON – Acredito no escritor se desfazer da sua pele e entrar na pele do personagem.

Ainda diria a frase que disse certa vez: "Não sei e não saberei jamais se tenho talento"?
SIMENON – Sim. O talento é algo que avaliam os pósteros e não os contemporâneos.

Mas o que é o talento?
SIMENON – É a capacidade de inventar um caráter, uma situação, uma paisagem.

Escritor é só aquele que se faz ler?
SIMENON – E quem mais seria?

A desenvoltura faz o perfeito narrador?
SIMENON – Sempre se deve escrever como se fala.

E fácil escrever fácil?
SIMENON – Não. É dificílimo.

E as suas relações com os adjetivos?
SIMENON – Péssimas. Odeio-os, como também detesto os advérbios. Aborrecem-me os enfeites e as lantejoulas do texto. Acabam por torná-lo obscuro. É preciso ser compacto, reduzir tudo ao osso.

Um escritor é sempre autobiográfico?
SIMENON – Eu não sou. Mas alguns são.

Primeiro dever de um escritor?
SIMENON – Tornar-se lido e ser sincero.

De um jornalista?
SIMENON – Idem.

O escritor-personagem nasce só do juízo do público?
SIMENON – O sucesso é determinado pelos leitores.

É mais rara uma vida bem vivida ou bem escrita?
SIMENON – Bem escrita. É melhor, porém, se for bem vivida.

Chegará também para você a hora do Prêmio Nobel?
SIMENON – Se chegar, recusarei.

Por quê?
SIMENON – Os prêmios são como as medalhas, os laços de fita e os penachos que enfeitam as vacas e os touros vencedores nas exposições de animais.

Quem lhe inspirou Maigret?
SIMENON – Os vários policiais que conheci.

Quando nasceu?
SIMENON – Quem?

Maigret.
SIMENON – Em fevereiro de 1929.

Onde?
SIMENON – Num vilarejo holandês de pescadores. Lá, hoje, há um monumento para ele.

Quantos livros você dedicou a Maigret?
SIMENON – Oitenta e nove.

Por que Maigret agradou e ainda agrada tanto?
SIMENON – É um homem comum, como tantos, que sabe compreender, mas não julga.

O melhor Maigret no cinema?
SIMENON – Nenhum.

Como nenhum?
SIMENON – Maigret existiu e existe somente na minha cabeça. É meu, exclusivamente meu.

Por que você o aposentou há sete anos?
SIMENON – Não foi ele o aposentado. Fui eu que me retirei.

Nas suas histórias, não existe o tempo: nem a guerra, nem a resistência, nem a era atômica. Por quê?
SIMENON – O homem, no seu íntimo, não tem nada a ver com a guerra, com a resistência, com a era atômica.

As piores armadilhas do romance policial?
SIMENON – Mas Maigret não é Poirot, e eu não sou Agatha Christie.

Explique-se.
SIMENON – Os romances policiais têm regras bem precisas, enquanto eu não tenho. Na segunda página, posso tranqüilamente revelar o nome do assassino.

Com quantos anos escreveu o primeiro romance não-policial?
SIMENON – Aos 31 anos.

Quantos escrevia, em média, por ano?
SIMENON – Policial, um; não-policiais, cinco.

Nunca renegou uma obra?
SIMENON – Não. Basta não relê-las, como o meu amigo Fellini nunca revê os seus filmes.

Voltaire escreveu Candide em três dias. Você, em quanto tempo escrevia, ou escreve, um romance?
SIMENON – No início, levava onze dias.

E no fim?
SIMENON – Uma semana.

Usou muitos pseudônimos?
SIMENON – Dezessete.

Quando começou sua autobiografia?
SIMENON – Dia 13 de fevereiro de 1973.

Título do primeiro volume?
SIMENON – Um homem como qualquer outro.

Você?
SIMENON – Sim, eu.

Em que ponto estão suas memórias?
SIMENON – Estou concluindo o décimo nono volume.

O seu autor policial favorito?
SIMENON – Nenhum. Não os leio.

Nem mesmo Agatha Christie?
SIMENON – Nem mesmo ela.

E não-policial?
SIMENON – Refere-se aos meus autores de cabeceira?

Sim.
SIMENON – Antes de tudo, Montaigne.

E depois?
SIMENON – Conrad, Gogol, Tchékhov, Dostoiévski, Faulkner.

Você disse que, se recomeçasse, seria biólogo.
SIMENON – Amo o homem. Quero conhecê-lo e entendê-lo. A biologia ajudaria muito.

Você é considerado um homem de esquerda?
SIMENON – Sou um individualista empedernido.

Os burgueses não o agradam. Por quê?
SIMENON – São convencionais demais, e pouco individualistas demais.

Já fez política alguma vez?
SIMENON – Não. Nunca votei ao menos.

Você diria com Clemenceau: "Quem faz política para valer suja as mãos"?
SIMENON – Com as mãos limpas, não se faz política.

Como nasce a violência política?
SIMENON – Quem não tem o poder político quer tirá-lo de quem o tem. E quem o tem, para protegê-lo, usa agentes provocadores.

Como se extirpa?
SIMENON – Sobretudo extirpando-se os nacionalismos, fomentadores de violência.

O que é, para você, o amor?
SIMENON – A mais bela invenção do mundo: entender-se sem necessidade de palavras.

Quantas mulheres você conheceu biblicamente?
SIMENON – Falaram em dez mil.

E você, o que diz?
SIMENON – Talvez uma a mais, ou uma a menos.

Profissionais ou amadoras?
SIMENON – Muitas jovens atrizes e bailarinas.

É ciumento?
SIMENON – Gostaria de não sê-lo. Mas sempre fui, e o sou. Terrivelmente.

Quando o ciúme impede o adultério?
SIMENON – Casei em primeiras núpcias com uma mulher ciumentíssima, que, depois do primeiro dia de casados, ou da primeira noite, não recordo, ameaçou de se suicidar se algum dia eu a traísse.

E você?
SIMENON – Eu a traí escondido durante vinte anos, odiando-a.

Odiando-a?
SIMENON – Sim, porque não há nada mais humilhante, mais ofensivo à nossa dignidade do que a coerção à mentira.

E vocês se separaram.
SIMENON – Sim, e uma semana depois, ela, que tinha quarenta anos, passou a andar com um garoto de dezesseis.

Você esteve verdadeiramente apaixonado por Josephine Baker?
SIMENON – Eu tinha 22 anos, inexperiente, desconhecido, e ela era ultracélebre. Mas foi uma relação brevíssima.

Como acabou?
SIMENON – Num certo momento, fugi para uma ilha.

Por quê?
SIMENON – Não queria me tornar o sr. Baker.

É mais difícil viver ou conviver?
SIMENON – É melhor conviver. A solidão é atroz. Sobretudo para o homem a quem faltam a força de caráter e o espírito de iniciativa femininos.

Chega-se mais bem preparado ao casamento ou à morte?
SIMENON – A morte é previsível. O casamento, sempre uma incógnita.

As mulheres devem ser tratadas com cavalheirismo?
SIMENON – Sim.

E os homens com amabilidade?
SIMENON – Sim.

É mais fácil entender os outros ou a si mesmo?
SIMENON – A si mesmo.

Você sempre foi ao fundo de si mesmo?
SIMENON – Sou o meu melhor psicanalista.

Nunca deixou alguma coisa pela metade?
SIMENON – Jamais.

Qual é o conselho que lhe foi mais útil durante a vida?
SIMENON – Não julgar nunca. Foi um conselho do meu pai.

Já esteve ameaçado de falir?
SIMENON – Não. Mas tive meus altos e baixos.

O sucesso modificou-o?
SIMENON – Em nada.

Dizem que é um misantropo.
SIMENON – Ao contrário: adoro as pessoas, a vida.

E que é cínico.
SIMENON – Se cínico é quem diz o que pensa, sim.

Quem são seus amigos?
SIMENON – Pouquíssimos.

Diga um.
SIMENON – Fellini. Embora fiquemos meses sem nos vermos, nem nos telefonarmos.

E os seus inimigos?
SIMENON – A minha última mulher. Eu, porém, não a considero assim.

Também para você, como para Voltaire, o trabalho é alegria?
SIMENON – Sim, mas a que preço!

No seu passaporte está escrito "aposentado"?
SIMENON – Não: sem profissão